quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

A Revolução Cubana; e um projeto comum e compartilhado para a América Latina

Ernesto Che Guevara e Fidel Castro, com menos de trinta
anos conquistam o poder em Cuba
Além do primeiro dia do ano, o dia 01 de janeiro de 2020 comemora  os 61 anos da Revolução Cubana, que alcançou Havana vitoriosa em 1959 nesse mesmo dia. Longe da perfeição ou da celebração acrítica, a Revolução Cubana construiu índices invejáveis em relação com outros países latino americanos; inexistência de crianças fora das escolas, um serviço de saúde pública
universalizado e invejável mesmo em relação a países super desenvolvidos, e analfabetismo zerado. Passados 61 anos, ela nos traz a um debate importante em nosso mundo contemporâneo, haveriam áreas ou regiões de nosso planeta que representam unidades históricas e geográficas, que compartilham passados comuns? E, que por isso se constituiriam em unidades solidárias, que compartilham anseios e desejos comuns? A América Latina do sul do Rio Bravo até a Patagônia se constituiria nessa unidade histórica e geográfica, que compartilha passados comuns, e portanto anseios de autonomia comuns. A Revolução Cubana, em seu tempo produziu essa identidade com uma certa celebração da conquista do Estado por meio violento, a partir da guerra de guerrilhas, que de certa forma já foi superado (0), mas a mensagem de construção autônoma dos países latino americanos ainda permanece atuante.

É claro, no entanto que tal construção jamais poderia ser tocada por um governo como o de Jair Bolsonaro, que não se remete a coletivos, não se considera representativo de nenhum grupo, mas apenas afirma uma vontade de destruição do anteriormente constituído, celebrando um anti intelectualismo, um espontaneísmo anti científico e primário. O próprio economista Paulo Guedes, que se diz ligado a Escola de Chicago foi recentemente classificado por seu colega Pérsio Árida como um desqualificado. Em setembro de 2018, Arida declarou ao jornal O Estado de S. Paulo que “Paulo Guedes é um mitômano (…). Nunca escreveu um artigo acadêmico de relevo e tornou-se um pregador liberal. (…) Ele nunca dedicou um minuto à vida pública, não tem noção das dificuldades. Partiu para uma campanha de difamação que é de um grau de incivilidade que não se vê em outro assessor econômico”.  Envolvido em acusações de fraudes em fundos de pensão, Guedes pode ser classificado sem erro como um representante de si mesmo.(1) Enfim, o governo Jair Bolsonaro, por característica inata, é avesso a qualquer projeto coletivo de longo prazo, que a União Latino Americana poderia vir a representar.

"Não é classe, não é coletivo, não forma grupos. Não há previsibilidade ou rotina possível em um conjunto de indivíduos para os quais vigoram as saídas individuais e a disputa de cada um contra todos." (2)

Mas deixemos passar esses quatro anos de desconstrução desse governo torpe e despreparado, avesso a solidariedades ou projetos de identidade coletiva ou de mais longo prazo. Devemos lembrar que a identidade latino americana é uma construção, que não se iniciou com a Revolução Cubana, ela retrocede a tempos anteriores, como no texto abaixo de 1924;

"Formar uma frente unida é executar um ato de solidariedade no que diz respeito a um problema concreto e uma necessidade urgente. Isso não significa renunciar às teorias que cada partido sustenta nem à posição que cada um ocupa na vanguarda. Uma variedade de tendências e de grupos bem-definidos e distintos não é um mal; ao contrário, um sinal de um período avançado no processo revolucionário. O que importa é que esses e essas tendências saibam como agir concertadamente ao confrontar a realidade do dia... Que não empreguem suas armas... para ferir um ao outro, mas para combater a ordem social, as suas instituições, as suas injustiças e os seus crimes." MARIÁTEGUI citado em LÖWE 2016 página65 

O texto acima é uma citação de um marxista peruano conhecido, José Carlos Mariátegui, em 1o de maio de 1924, defendendo a ideia de uma frente única, uma proposição que passados noventa anos segue sendo importante para os países latino americanos. Principalmente, para aqueles que lutam por um desenvolvimento com maior inclusão social, um projeto que rompe com a inércia de nossas histórias, que sempre se pautaram por uma dinâmica de submissão aos ditames internacionais. Um desenvolvimento autônomo, que inclua a maioria de sua população, e não apenas uma minoria de privilegiados. Na verdade, desde os diferenciados processos de independência do colonialismo ibérico percebe-se nos países latino americanos, que uma minoria se apropria do Estado, usando-o em seu benefício. Uma das características mais marcantes de nossas histórias, apesar de suas diferenças e especificidades, é a ausência de uma elite pensante autônoma, que não estivesse desde a independência comprometida com os mecanismos do império, sejam às antigas ou novas metrópoles. A presença e proximidade dos Estados Unidos no mesmo continente, nação hegemônica e central no sistema capitalista mundial condicionou uma dependência cômoda, que bloqueou a construção autônoma de um projeto de inclusão geral, mantendo o processo econômico capitalista restrito a uma minoria privilegiada. A construção de um bloco de países latino americano deveria se esforçar para contemplar pelo menos economias como as da: Argentina, Brasil, Bolivia, Colômbia, Chile, México, Paraguai, Perú, Uruguai e Venezuela.

Todas essas nações são manifestações de um desenvolvimento capitalista tardio, desigual e combinado, apresentando cidades nas quais a inequidade é um fato, que está emblematicamente representada em baixos indices de saneamento, coleta precária de lixo, déficit habitacional, periferias precarizadas, transportes públicos deficientes e caros, patrimônio dilapidado, etc.... Todos esses sintomas demonstram um desenvolvimento sem autonomia própria, que atendeu a interesses exteriores articulados com elites exclusivas, que não souberam generalizar seus benefícios. A espacialidade latino americana, principalmente em suas grandes cidades manifesta esse estágio da distribuição desigual do desenvolvimento. A divisão social do trabalho, no sistema produtivo contemporâneo condenou à exclusão parcelas significativas das suas populações, que não conseguem acesso a; saneamento básico, habitação, segurança, coletas de esgoto e lixo, iluminação, transporte público, etc... Uma urbanidade incompleta, desigual e combinada. No regime atual de desenvolvimento do mundo percebe-se uma clara produtividade socializada e disseminada no mundo, enquanto sua apropriação é particularizada e individualizada num universo restrito. Tal regime fez com que a concentração de renda se disseminasse pelo mundo de uma maneira explosiva, gerando indices nunca vistos de excluídos e deixados a margem. Reverter essa tendência e incluir parcelas expressivas da nossa população estava no programa da Revolução Cubana, no Governo da Unidade Popular de Allende e segue sendo uma demanda importante para a América Latina.

NOTAS:

(0). Um texto clássico de Carlos Nelson Coutinho de 1979, tem como título; A Democracia como valor universal, e procura reforçar o vínculo estreito entre democracia e socialismo, que não foi realizado no modelo soviético. Em 1994, o talentoso jornalista mexicano Jorge Castanheda publicou A utopia desarmada, que também aborda como a conquista violenta do poder condicionou um modelo autoritário do seu exercício. Interessante também destacar, que a experiência de acesso ao poder por meio do voto universal ocorreu no Chile com a coalizão de esquerda comandada por Salvador Allende, a Unidade Popular, que foi destituída a força pelo General Augusto Pinochet em 1973, num golpe de Estado violento, comandado pela direita.
(1). Retirado de reportagem do Le Monde, intitulada ¨O lumpesinato no poder - Bolsonaro,100 dias¨. Especial da edição digital de Le Monde Diplomatique Brasil, assinada por Gilberto Maringoni e Artur Araujo.
(2). Retirado da mesma reportagem do Le Monde.

BIBLIOGRAFIA:

LOWE, Michael (org.) - O Marxismo na América Latina, uma antologia de 1909 aos dias atuais - Expressão Popular: Perseu Abramo São Paulo 2016