sábado, 14 de julho de 2018

A sempre repetida revolução-restauração da nossa história e as favelas

A transformação da Itália
Antonio Gramsci teve como um de seus principais temas, o Risorgimento italiano, que em português significa Resurgimento, e que ocupa parte substancial da história do século XIX (1815-1870), como o movimento de construção da unificação do Estado nacional na Itália. O mapa italiano em 1829 era composto por uma série de reinos, que aqui podem ser resumidos do norte para o sul, como; o Piemonte-Sardenha com a capital em Turim, a Lombardia cuja a capital era Milão, o Veneto onde a principal cidade era Veneza, os reinos de Parma e Módena, o Ducado da Toscana onde estava Florença, os Estados papais polarizados por Roma, e o Reino das duas Sicílias que tinha sua centralidade em Nápoles. Essa configuração de diversas Cidades-Estados, muitas vezes ocupados por potências européias como o Veneto pelo Império Austríaco, ou Roma por Napoleão III, e a Sicília também pela França chegaram ao final do século XIX (1870) como a Itália que hoje conhecemos. Gramsci em sua caracterização desse periodo, como uma revolução burguesa, que diferentemente da França, declinava da ruptura violenta, e enveredava por uma modernização sem a mobilização popular, uma Revolução-Restauração, ou uma transformação por cima. Essa revolução-restauração burguesa liberal e tardia, que envolvia o nacionalismo contra o inimigo austríaco, na verdade não rompia seus compromissos com a velha ordem social, apesar da presença de uma série de posicionamentos mais populares pulverizados entre; maçons carbonários, republicanos, democráticos e jacobinos. Essa operação de conservar mudando, significava uma desorganização molecular da hegemonia dominante, ao mesmo tempo em que procura manter acordos e privilégios dos grupos instalados no poder. O modelo de pensar a história em Gramsci, sempre envolveu essa complexa relação entre transformação e preservação, que desemboca na estrutura das lutas ideológicas, que podem se consolidar em predominâncias ou hegemonias. A política para Gramsci é sempre um jogo de convencimento, onde grupos de interesses específicos constroem narrativas explicadoras (ideologias), que por obter um poder de convencimento amplo (hegemonia), se consolidam  como predominâncias.

"O capitalismo é um fenômeno mundial e seu desenvolvimento desigual significa que as nações não podem estar individualmente no mesmo nível de desenvolvimento ao mesmo tempo...o ímpeto de progresso não estar firmemente vinculado ao vasto desenvolvimento local [...] mas, ao contrário, ser reflexo de desenvolvimentos internacionais que transmitem suas correntes ideológicas para a periferia - correntes nascidas do desenvolvimento produtivo dos países mais avançados." GRAMSCI Q19 página90

Gramsci sempre mencionou a necessidade das narrativas dos grupos de interesses superarem os limites corporativos, ou dos interesses imediatos, sensibilizando parcelas mais amplas da população, alcançando o consentimento geral, ou hegemonia. O sistema de pensamento gramsciano envolve a expansão capitalista no mundo, seu poder de convencimento e sua persuasão, a interdependência entre Estados nacionais e suas especificidades culturais e econômicas são levadas em conta. Dentro dessa estrutura de pensamento há claros conceitos espaciais e históricos como, a centralidade e a periferia, ou a vanguarda e uma certa retaguarda tardia, que organizavam uma hierarquia de pensamento. A ampliação do sistema social baseado na concorrência, o capitalismo, do qual as Revoluções Inglesa, Americana e Francesa eram ao mesmo tempo seu centro e também sua vanguarda, se espalhando pelo mundo europeu, atingindo a Alemanha e a Itália  de forma tardia, determinando especificidades como a via prussiana, ou a revolução passiva. Tais acontecimentos eram explicados pela ampliação tardia do capital pelo mundo, que invariavelmente envolviam soluções autoritárias e autocráticas, onde o Estado assume uma clara hipertrofia frente a fraqueza da sociedade civil. Gramsci por sua origem na Sardenha, tinha uma consciência apurada das noções de periferia e subalternidade, que perpassavam as mentalidades do sul da Itália, agrário e atrasado, em relação ao norte, urbanizado e desenvolvido. Noções como dirigente, comando, intelectual estão estruturadas em seu pensamento para romper a estrutura de dominação vertical e autoritária, estabelecendo-se uma relação com mais horizontalidade, permitindo manifestações moleculares e dispersas.

A via reacionária de modernização capitalista é um pouco a tônica da nossa história, tanto no caso da Revolução de 1930, como também na Ditadura Civil e Militar de 1964, ambas com claras conotações autoritárias, que afastam os setores populares sempre com o argumento do despreparo ou imaturidade das massas de defender seus interesses. Na verdade, alguns autores (VIANNA 1997) retrocedem ainda mais atrás em nossa história nessa analogia com o conceito gramsciano da Revolução Passiva, na transmigração da familia real portuguesa para a Colônia, que se deve a um movimento defensivo em relação à irradiação da Revolução Francesa, sob Napoleão. Nesse contexto, a condução da expansão da acumulação capitalista é feita também a partir do Estado, com uma clara hipertrofia das suas iniciativas frente as dos indivíduos e cidadãos. Uma espécie de minoridade das ações moleculares, dispersas na sociedade civil, que invariavelmente esperam a iniciativa indutora do Estado, que estão presentes nas nações de desenvolvimento tardio do capitalismo; Alemanha e Itália, mas também o Brasil. O modelo de capitalismo renano-prussiano, aonde o Estado assume maior protagonismo traz consigo uma via autocrática e autoritária, que ao mesmo tempo que implanta a nova ordem concorrencial, também paternaliza e reprime as iniciativas moleculares na sociedade. Essa argumentação possui profundos vínculos espaciais, determinando um centro irradiador e a periferia, mas também sub centros modernizadores, como o norte da Itália ou São Paulo, e periferias arcaicas como o sul da Itália ou o Nordeste do Brasil. Nesse quadro a modernização periférica não é só penalizada pela proximidade do arcaico, mas também e principalmente é beneficiada, super explorando e se apropriando da proximidade da precariedade, depreciando os salários. O fenômeno também se manifestava nos países centrais do desenvolvimento capitalista, determinando centros dinâmicos, Londres e periferias subalternizadas, Irlanda. Esse processo impulsionava desenvolvimentos desiguais, determinando fluxos migratórios, que ao final deprimiam o valor da mão de obra nos centros dinâmicos, a partir da super oferta de mão de obra.

Nesse contexto, o interesse pela manutenção do arcaico e da proximidade do subdesenvolvimento passa a ser funcional, possibilitando os acordos entre elites modernizantes e antigas oligarquias arcaicas, que realizam o benefício mútuo, represando as explosões revolucionárias. A modernização se beneficia do arcaico, pois esse último garante um processo de acumulação muito mais vantajoso, que ao final consolida o acordo entre realidades que pareciam irreconciliáveis. Esse contexto também determina uma certa subalternidade do nosso pensar, que literalmente não enxerga nossa realidade, se refugiando em outros modelos, que fatalmente não se ajustam as nossas condições. Um campo emblemático dessa condição é a política habitacional no país, que invariavelmente tem como premissa, o não reconhecimento da favela, como um fruto particular de nossa realidade, e, que num determinado estágio no futuro de nosso desenvolvimento nacional poderia ser suprimida integralmente. A habitação precária sempre foi fruto do não atendimento de parcelas expressivas de nossa população pelo mercado formal de produção habitacional no Brasil, que mesmo nos momentos de grande boom econômico, nunca conseguiu atender uma faixa entre 30 a 40% de nossa população, que não acessa o financiamento da casa própria. Essa minoridade do nosso desenvolvimento, que perpassa todas as cidades brasileiras, afinal todas possuem assentamentos improvisados tipo favelas é por um lado, a demonstração da precariedade de nosso mercado imobiliário, mas por outro também pode ser vista como uma potente solução elaborada pelo conjunto da sociedade civil molecular, diante dessa inacessibilidade a moradia. A favela brasileira não deve ser nunca romantizada, afinal ela é claramente consequência da não universalização do nosso mercado imobiliário, portanto de uma precariedade efetiva, mas deve ser vista como uma solução criativa e potente, encontrada por uma parcela de nossa população, que parecia ter sido abandonada pelo país.

O pensamento de Gramsci, que possui profundas conotações espaciais e históricas sobre o desenvolvimento da economia capitalista no mundo, como um sistema único e interdependente nos ajuda a construir a consciência de uma certa subalternidade, presente no pensar brasileiro, que nos impede de identificar as especificidades de nosso processo. A emergência tardia de uma economia concorrencial, represada pela escravidão e por outros traços de nossa história, determinou uma incapacidade de identificação de manifestações positivas em nossa precariedade, como a favela, que precisam mudar. A leitura de Gransci, através do cientista político Luiz Werneck Vianna, no livro A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil, nos permite refletir de forma mais estruturada nossa inserção na economia mundo, passando a identificar nossa subalternidade dentro de suas reais potencialidades, e não apenas como negatividade.

BIBLIOGRAFIA:

VIANNA, Luiz Werneck - A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil - Editora Revan Rio de Janeiro 1997

DEL ROIO, Marcos org. - Gramsci, periferia e subalternidade - Editora EDUSP São Paulo 2017