quinta-feira, 4 de agosto de 2016

A dialética do esclarecimento

O livro A dialética do esclarecimento, fragmentos filosóficos foi escrito por Theodor W. Adorno (1903-1969) e Max Hockheimer (1895-1973) em pleno exílio nos EUA, nos anos da ascensão do Partido Nacional-Socialista, que impediu as atividade do Instituto de Pesquisas Sociais, a Escola de Frankfurt, dentro da Alemanha de 1933 a 1945. Esse periodo, do ponto de vista das expectativas utópicas representou um enorme achatamento das energias, se configurando como um momento onde totalitarismos de diferentes origens dominaram o horizonte, assim como no nosso tempo presente. Os dois filósofos alemães escrevem o livro exilados na costa oeste americana, na cidade de Berkeley próxima a San Francisco, convivendo com a emergência do modelo de uma cidade espalhada e de baixa densidade, dominada pelo automóvel e o pneu, que assiste ao surgimento da moderna industria da cultura de massas, representada pelo cinema e pela música. Na Alemanha, o nazismo fora eleito determinando a perseguição aos judeus e aos intelectuais de esquerda, na União Soviética, Stalin havia assumido o controle do Partido Comunista calando vozes de diversos opositores. Mesmo nos EUA e na Califórnia, distantes das terríveis convulsões da Europa se iniciava a perseguição aos comunistas, que impuseram aos dois filósofos alemães uma série de constrangimentos. Consta, que Adorno, que não possuía o visto americano permanente, não podia se afastar mais de cinco quilômetros da Universidade e de sua casa, sem comunicar a polícia da Califórnia, o que já denotava o surgimento do Macartismo.

O livro, lançado em 1947, carrega uma forte carga pessimista, principalmente no que corresponde a cultura de massas, ou industria do entretenimento, ou as novas técnicas de reprodução da obra de arte, encaradas como meio de alienação, repressão e dominação. A auto-destruição do esclarecimento, que dominado pelo positivismo reducionista da celebração científica, reduz a capacidade reflexiva encaminhando a humanidade para uma nova barbárie. Por isso, aqui emerge um marxismo desconfiado da coletividade e mesmo do proletariado, que radicaliza um discurso vanguardista e isolacionista, que Horkheimer já prenunciava no livro A teoria tradicional e teoria crítica de 1937;

"...a verdade buscará refúgio entre pequenos grupos de homens admiráveis." HORKHEIMER, citado por MERQUIOR 1987 página160

O livro é composto por um breve Prefácio, que sistematiza a ideia de esclarecimento como destruidor dos mitos e ritos explicadores e instrumentador de uma ciência desmemorizada, simplificadora e unilateral. Seguido por O conceito de Esclarecimento, no qual a razão instrumental e tecnológica é vista como legitimadora da dominação e do poder sobre a natureza ou outros seres humanos, que passam a ser objetivados. Seguido por dois excursos, um sobre o mito de Ulisses na Odisséia grega - Excurso I: Ulisses ou Mito e Esclarecimento - visto como um testemunho precoce da civilização burguesa, onde sacrifício e renúncia prenunciam o domínio total da natureza humana e não-humana. E, o segundo excurso sobre Kant, Sade e Nietzche - Excurso II: Juliete ou Esclarecimento e Moral - onde emerge um sujeito autocrático, que descamba para uma objetividade cega, não admitindo mais o contraditório. Após esses dois excursos, que segundo alguns dicionários tem como significado; desvio, digressão, divagação, ou desvio do tema principal; seguem-se dois capítulos; A industria cultural e Elementos do Anti-semitismo, que são seguidos por Notas e Esboços, que anunciam pesquisas futuras. Por essa estrutura, o livro denota uma certa processualidade inconclusa, ou uma perplexidade diante da transformação do esclarecimento em barbárie, a sombra do nazismo e de suas atrocidades domina a reflexão, sinalizando que o aumento do consumo de bens materiais não elevou o padrão da sociabilidade.

"Numa situação injusta, a impotência e a dirigibilidade da massa aumentam com a quantidade de bens a ela destinados. A elevação do padrão de vida das classes inferiores materialmente considerável e socialmente lastimável, reflete-se na difusão hipócrita do espírito." ADORNO e HORKHEIMER 1985 página14

Não concordo em definitivo com o capítulo sobre A Industria cultural, que no meu entendimento gerou muita quantidade, que em alguns casos apresenta qualidade e reflexão, e não apenas divertimento e alienação, como manifestado no livro. O jazz, a música e o cinema, atividades culturais que foram multiplicados pela reprodutibilidade técnica da obra de arte, demonstram de forma clara essa presença, atingindo muitas pessoas e impulsionando uma reflexão de maior qualidade e profundidade. Na verdade, com o livro, fica clara a incomunicabilidade entre as teorias sociais da Alemanha e da Itália, nesse período, demonstrando a falta que as categorias mais otimistas de Gramsci, tais como; hegemonia cultural, contra-hegemonia, intelectuais orgânicos e outras fazem ao pessimismo germânico, apesar das também terríveis condições, dentro dos cárceres de Mussolini, nas quais foram formuladas, No entanto, não há como negar que o citado capítulo contém algumas antevisões esclarecedoras de como os bens culturais passaram a ser encarados de forma rentista, no nosso mundo contemporâneo;

"O que se poderia chamar de valor de uso na recepção dos bens culturais é substituído pelo valor de troca; ao invés do prazer, o que se busca é assistir e estar informado, o que se quer é conquistar prestígio e não se tornar um conhecedor....Tudo só tem valor na medida em que se pode trocá-lo, não na medida em que é algo em si mesmo." ADORNO e HORKHEIMER 1985 página148

Em tempos de Olimpíada no Rio de Janeiro, o livro traz uma reflexão importante sobre a espetacularização geral das mais diversas ações humanas; esportes, artes, informação, arquitetura e urbanismo. O texto, de certa forma pode ser datado num tempo que parecia justificar as mais diversas exceções contra os procedimentos democráticos, promovidos pelo positivismo, anti-semitismo, nazismo e um forte investimento em superficialidades redutoras. A racionalidade objetiva, um formalismo ortodoxo lógico, o positivismo e as ciências práticas dominam o horizonte humano, determinando um imediatismo. A destruição da individualidade emerge da homogeneização do mercado, que modela as particularidades inatas de todos a uma mesma violência da maioria.


"Aquilo que acontece a todos por obra e graça de poucos realiza-se sempre como a subjulgação dos indivíduos por muitos: a opressão da sociedade tem sempre o caráter da opressão por uma coletividade." ADORNO e HORKHEIMER 1985, página35

Ulisses amarrado ao mastro com os remadores sem ouvir
sofre o assédio das sereias e seu canto
Uma das construções mais fundamentais do livro é a manipulação do duodécimo canto da Odisséia de Homero, quando é descrito o encontro de Ulisses com o mar das Sereias, durante sua longa viagem de volta à Itáca, após a vitória sobre a cidade de Tróia. Ulisses determina  que seus companheiros na nau remem com todas as suas forças, e tenham seus ouvidos tamponados, evitando que ouçam os cantos das sereias. Ao mesmo tempo, se amarra ao mastro central da nave, pois quer ouvir, mas não quer se deixar levar pela sua sedução. Segundo Adorno e Horkheimer, esse entrelaçamento de mito, dominação e trabalho irá pelo sofrimento promover a emancipação, fazendo uma analogia com a obstinação dos burgueses, que recusavam a felicidade e o prazer em nome da ampliação de seu poderio. A arte quando não inserida na vida cotidiana tende a uma fruição regulada e neutralizada, onde a contemplação passiva se separa dos objetos assumindo um caráter de idolatria alienada, negando sua potência de conhecimento e auto-esclarecimento. Ulisses acaba suplicando a seus companheiros, que o soltem das amarras para se reunir ao belo canto das sereias, mas esses seguem remando, indiferentes e alienados. Há aqui uma clara identificação da arte com o prazer, o rito e o mito, que pela divisão social do trabalho guarda apenas para o senhor ou o líder a possibilidade exclusiva de sua fruição e deleite. A reprodução da vida do senhor é garantida pela distribuição das tarefas, não havendo possibilidades de escape do papel social pré-determinado, força física e repetição das remadas salvam e ao mesmo tempo mantém preso a Ulisses, que representa o espectador passivo e separado da beleza como um espectador. Enfim;

"As medidas tomadas por Ulisses quando seu navio se aproxima das Sereias pressagiam alegoricamente a dialética do esclarecimento." ADORNO e HORKHEIMER 1985 página45


BIBLIOGRAFIA:

ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max - A dialética do Esclarecimento, fragmentos filosóficos - Editora Jorge Zahar Rio de Janeiro 1985
MERQUIOR, José Guilherme - O marxismo ocidental - Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro 1987