quinta-feira, 14 de outubro de 2021

A economia compartilhada ou capitalismo de plataforma e um Karl Marx prescritivo, ou a dimensão propositiva da filosofia da práxis

Capitalismo de Plataforma; ineditismo ou permanência
da lógica de acumulação capitalista?


"Quem quer que conheça qualquer coisa da história sabe que as grandes mudanças sociais são impossíveis sem o fermento feminino." MARX 1969, citado em NETTO 2020, página240

Dissemina-se no mundo contemporâneo a ideia de que o advento das plataformas de software, que se instalaram mediando nosso acesso a serviços ou a mercadorias possui um caráter disruptivo. Compartilha-se de uma visão idílica da chamada economia compartilhada, como se esta estabelecesse relações diretas entre as pessoas. O próprio nome, economia compartilhada parece desfrutar de um status que o afasta das inexoráveis tendências monopolistas e concentradoras que o sistema do capital promove, desde sua primeira aparição. Parte-se do pressuposto de que a economia compartilhada ou capitalismo de plataforma oferece possibilidades disruptivas, quando na verdade, ela mantém e celebra o status quo da competição e do individualismo exacerbado, típicos do neo liberalismo dominante. Expressões como; "as plataformas vieram para ficar" ou "não parecem ceder ao seu próprio desenvolvimento" nos indicam a condição de inevitabilidade do desenvolvimento tecnológico como algo autônomo e inexorável, que está acima das escolhas humanas. Sua casualidade é múltipla, mas seu desenvolvimento se atrela a uma evolução científica autônoma, neutra e pulverizada, impossível de ser domesticada, ou isenta de interesses, muito além da vontade dos homens comuns. Mesmo autores críticos, como ZUBOFF 2020, que identificou uma condição "superdescritiva e subteorizada" (1) da nossa sociedade contemporânea, ou STANDING 2013 que apontou um novo agente, "o precariado" (2), nesse nosso tempo apontam ambos, uma situação sem precedentes, um fenômeno inédito. Será que são mesmo sem precedentes? No entanto, a economia compartilhada pode ser responsabilizada pela mais nova crise do sistema capitalista internacional, lançando meios de distribuição e indústria numa encruzilhada na qual o que está em jogo é um novo arrocho na remuneração do trabalho, ou uma clara clivagem entre proprietários e despossuídos. Assim como em outros tempos, os ganhos se concentram em grandes corporações monopolistas, tais como; Google, Facebook, Amazon, AirBnb, Uber, etc, que não toleram a competição. Estruturas que muitas vezes podem até  terem sido concebidas à margem do capital, mas que ao serem monetizadas passam a servir e a alavancar mais concentração e mais desigualdade. Interessante assinalar, que Karl Marx (1818-1883) já referia-se ao caráter social, a que o capital poderia ser alçado, através de seus meios, principalmente pelo seu sistema de valoração das moedas, ou sistema de crédito, ou o sistema financeiro;

"...só se consuma e se realiza integralmente mediante o desenvolvimento pleno dos sistemas de crédito e bancário. Por outro lado, esse sistema segue seu próprio desenvolvimento. Oferece aos capitalistas industriais e comerciais todo o capital disponível da sociedade, inclusive o capital potencial, ainda não ativamente comprometido, de modo que nem o prestamista nem quem emprega esse capital é seu proprietário ou seu produtor. Com isso, ele suprime o caráter privado do capital e, assim, contém em si, somente em si, a supressão do próprio capital. Por meio do sistema bancário, a distribuição do capital é retirada das mãos dos capitalistas particulares e dos usuários como um negócio especial, como função social. Ao mesmo tempo, porém, o banco e o crédito se convertem no meio mais poderoso de impulsionar a produção capitalista para além dos seus próprios limites e um dos mais eficazes promotores das crises e da fraude.[...]

Finalmente, não resta a menor dúvida de que o sistema de crédito servirá como uma poderosa alavanca durante a transição do modo de produção capitalista para o modo de produção do trabalho associado; mas somente em conexão com outras revoluções orgânicas do próprio modo de produção... Assim que os meios de produção deixarem de se transformar em capital [...], o crédito como tal perderá todo sentido [...]. Em contrapartida, enquanto o modo de produção capitalista continuar a existir, perdurará também, como uma de suas formas, o capital portador de juros." NETTO 2020 páginas 383 e 384, citando Karl Marx

Interessante destacar, no pensamento marxista a identificação de crises cíclicas destrutivas, que promovem um rearranjo das forças produtivas que calibravam tendências sempre presentes de declínio das taxas de lucros, superconsumo ou de superprodução. Como a economia capitalista não é planejada por demandas distributivas ou sociais, mas a partir da lógica da competição e da concentração de recursos nas mãos de poucos agentes. Sempre, há em toda crise do sistema econômico em geral um deliberado interesse claramente vinculado aos proprietários do dinheiro ou dos meios de produção para buscar o saneamento das amarras do lucro. Penso, que foi BRAUDEL, que percebeu a partir de seus estudos da longa transição entre o feudalismo e o capitalismo, que o último estágio das crises cíclicas era uma crise especulativa, aonde a forma monetária ou financeira se autonomizava com relação a produção. Essa autonomia retirava do sistema de Bolsa de Valores e do sistema de crédito qualquer racionalidade produtiva, capturando-o num processo especulativo, que não se vincula mais a produção em si, mas a mera possibilidade de auto reprodução das moedas. O dinheiro, perde sua função de facilitador da troca para se metamorfosear numa mercadoria regulada por sua capacidade de ser procurada (valorizada), ou descartada (subvalorizada). Mas, não há como negar, que já em MARX, quando ainda jovem em meados do século XIX já identificava-se essa tendência no sistema capitalista de retorno a constante crise de forma quase otimista;

"A universalidade para a qual o capital tende irresistivelmente encontra barreiras em sua própria natureza, barreiras que, em um determinado nível de seu desenvolvimento, permitirão reconhecer o próprio capital como a maior barreira a essa tendência e, por isso, tenderão a sua superação por ele mesmo." NETTO 2020 página 378, citando Marx nos Grundisse 

Havia no raciocínio do manchesteriano de Karl Marx, aquilo que Marshal Bermann muito bem captou no livro Tudo que é sólido desmancha no ar, que era uma crença na capacidade intrínseca do capital para o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho de maneira inusitada. Dentro de um otimismo típico do século XIX, notava-se o germe da teleologia de Hegel, despida agora de seu idealismo e centrada na experiência material e concreta dos despossuídos, mas ainda assim, crente num aprimoramento positivo da humanidade. Sempre, a partir da experiência acumulativa da história em direção a um futuro grandioso e redimido, centrado no fenômeno da produção do trabalho e na conscientização dos desapropriados, que acabariam impondo a cooperação e a solidariedade no seio da humanidade. Mas apesar desse otimismo, Marx nunca afirmou a inevitabilidade da revolução, que em seu pensamento dependia fortemente da intervenção política organizada dos prejudicados/despossuídos da humanidade. O tema do confronto definitivo entre as classes sociais mostrou-se ao longo da história do século XX, particularmente a partir de 1917, com a Revolução Russa, perpassado por nuances e gradientes, que na verdade significaram um período de grande desenvolvimento e de ascensão das massas a padrões melhores de consumo. Aparecia para a geração de meados do século XX (1950), a geração pós segunda guerra, que o incremento produtivo e o desenvolvimento das forças produtivas eram fator de um progresso e desenvolvimento contínuos e inabaláveis. No entanto, na década de setenta nos confrontamos com a primeira crise do petróleo, o sistema que parecia haver se regenerado a partir da regulação fordista e keynesiana (3), e da ameaça da revolução socialista enfrenta uma crise sem precedentes, que desemboca nas eleições de Thatcher 1979 e Reagan 1981. Os discursos por trás dessas eleições seduziam pelo apelo a uma desregulamentação generalizada, que condenava a estabilidade do fordismo e a regulamentação financeira do Estado, como bloqueadores do legítimo desenvolvimento, num esforço de esquecimento do que havia sido a grave crise de 1929 da Bolsa de Valores de Nova York. Essa crise havia interrompido a confiança no liberalismo, desenfreado do século XIX e começo do século XX, e sinalizado para necessidade de regulação estatal da economia, face as suas tendências monopolistas e concentradoras, que determinaram movimentos sociais explosivos, como os de Paris em 1871 e o de Moscou de 1917, dentre outros.

"'Globalização' é uma forma de nomear as forças que exauriram a velha ordem - é uma palavra que pode significar tudo, mas relaciona-se de várias maneiras com a transformação social das instituições. No início da década de 1980, uma enorme demanda reprimida por produtos e serviços tornou-se aparente em todo o mundo. Havia uma grande quantidade de capital em busca de alvos de oportunidade depois da quebra, em 1973, dos controles de Bretton Woods sobre a movimentação monetária... As inovações tecnológicas, através do computador, possibilitaram o 'tempo real global', a sincronia das comunicações e das transações financeiras em todo o mundo... Por fim, e talvez mais importante, houve uma mudança no poder: os acionistas começaram a reafirmar as exigências por retornos de curto prazo sobre o investimento, desafiando burocratas gerenciais que se contentavam com que as coisas simplesmente se arrastassem como antes.(4)" SENNETT 2004 páginas 208 e 209

Enfim, o que me parece importante destacar aqui nesse texto é que mais uma vez o sistema se trasveste de novidade para continuar repetindo o mesmo, a acumulação do capital retrocede as suas condições primitivas, maravilhando a sociedade que se lança no precipício. Particularmente, as cidades e suas arquiteturas passam a ser pressionadas para a realização de lucros rápidos e quase imediatos, que confrontam a construção do patrimônio comum construído pela humanidade. Essa mesma, humanidade se confronta com a questão ambiental, que demanda dela atitudes de efetiva mudança do poder político, no qual é preciso declarar não mais a exclusão de parcelas significativas de nossa população, mas sua inclusão massiva e extensiva. Sob pena, de nos orientarmos para nossa auto extinção. A citação no início desse artigo, mostra-nos a fala de um homem do século XIX, Karl Marx, sobre a atuação das mulheres no impulso da transformação humana, talvez um pouco paternalista, ou até mesmo culinária, mas ela nos lembra apenas, que a novidade não deve ser absolutizada, mas confrontada com o contexto geral contemporâneo, que permanece o mesmo.

Notas:

(1) ZUBOFF 2020 página83, menciona; "Com tanta verborragia, esses desenvolvimentos são ao mesmo tempo superdescritivos e subteorizados... Qualquer confrontação com a situação sem precedentes requer um léxico novo, e introduzo novos termos quando a linguagem existente falha em capturar um fenômeno inédito."

(2) STANDING 2013, emerge na página164, CAVALCANTE e FILGUEIRAS in ANTUNES (org.) 2020; "As características desse 'novo mundo do trabalho', ainda que tomadas de maneira crítica, também informam a análise de Guy Standing. Segundo o autor, o mundo está passando por uma 'transformação global', análoga à 'grande transformação' identificada por Karl Polanyi.'

(3) O argumento está em ARRIGHI 1996 e também em SENNETT 2003 de declínio do Welfare State e do mundo regulado pelo fordismo e keynesianismo.

(4) Nesse ponto do texto SENNETT 2004 página 209 puxa uma chamada para o livro da Cidade Global de Saskia Sachen, mostrando-nos como a ansiosa pressão dos acionistas pela materialização de lucros rápidos impactam o desenvolvimento das cidades contemporâneas.

Bibliografia:

ANTUNES, Ricardo (org.), CAVALCANTE, Sávio e FILGUEIRAS, Vitor - Um novo adeus a classe operária? - Editôra Boitempo São Paulo 2020

ARRIGHI, Giovanni - O longo século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo - editora Unesp São Paulo 1996

BERMAN, Marshal - Tudo que é sólido desmancha no ar, a aventura da modernidade - Editora Companhia das Letras São Paulo 1994

NETTO, José Paulo - Karl Marx: uma biografia - Editora Boitempo São Paulo 2020

SENNETT, Richard - Respeito a formação do caráter em mundo desigual - Editora Record Rio de Janeiro 2004

ZUBOFF, Shoshana - A era do capitalismo de vigilância; a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder - Editôra Intrínseca Rio de Janeiro 2020

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

O filme a Guerra do Fogo e a disciplina de Teoria e História da Arquitetura 1 (THA 1)

A manutenção da brasa acesa como única forma
de domínio do fogo
Nesse segundo período do ano de 2021 estarei ministrando para os alunos da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU-UFF) a disciplina de História e Teoria da Arquitetura 1 (HTArq-1), em função da aposentadoria do professor Juarez Duayer. Tal tarefa, tem demandado um esforço de estudo e de sistematização da minha parte, que vem sendo auxiliado pelo professor Juarez, que disponibilizou suas anotações, programas e sistematizações de forma generosa. O período histórico da disciplina HTArq-1 abarca desde a pré história até o Renascimento no século XVI, um marco temporal ao qual ainda não tinha me dedicado de forma sistemática. A ênfase da disciplina recai sobre a antiguidade clássica, Grécia e Roma, seguida da Idade Média, chegando ao Renascimento dos século XV e XVI. Mas a pré história e as sociedades da antiguidade oriental devem ser abordadas para que se reduza o caráter eminentemente Euro cêntrico da nossa construção histórica, que aliás também é reduzida pela menção nas aulas do Professor Juarez da arquitetura pré colombiana e dos povos originários da América. Na minha trajetória, na EAU-UFF, como professor de projeto com concentração em história e teoria da arquitetura e do urbanismo já havia me dedicado a disciplina de HTArq-3, que aborda o modernismo e a contemporaneidade. Portanto, esse texto se insere nesse esforço de estudo de se apropriar de um período histórico distante, de forma que ele faça sentido para os estudantes do século XXI da EAU-UFF, no ano de 2021. Aqui, cabe um alerta em nome da sinceridade, no campo da história e da teoria considero impossível a divisão entre abrigo e cidade, ou arquitetura e urbanismo que os cursos de arquitetura no Brasil adotam. O fenômeno da ocupação do espaço pelo homem não distingue interior de exterior, moradia de cidade, intenção e projeto, arquitetura de urbanismo, àqueles que discordam apresento a definição de cidade de Leon Battista Alberti no De re adificatória de 1485. Livros I a IV 

"A cidade segundo sentença dos filósofos é como uma casa grande, e vice versa, a casa é uma pequena cidade... As coisas públicas pertencem a todos os cidadãos; é sabido que a importância e a razão de fazer cidades deve ser esta: que os habitantes vivam em paz, e dentro do possível livre de incômodos, livres de toda moléstia. E sem dúvida se deverá considerar e novamente examinar desde o princípio em que lugar, em que situação e com que muralhas se deve fazer." PATETA 1997 página77 

A tomada de consciência da formulação de
utensílios humanos a partir do barro
Assim, devo a escolha do filme a Guerra do Fogo, lançado em 1981, do diretor Jean Jacques Annaud, numa produção franco-canadense também ao professor Juarez, como abordagem inicial da problemática da relação do gênero humano com a natureza e com nosso planeta. E, nesse texto pretendo destacar os aspectos levantados no filme a respeito do habitat do homem e das diversas formas de ocupação do território do nosso planeta pelo ser humano. Um ser, que intrinsecamente não reconhece como dado no planeta terra, a sua casa, mas que modifica a natureza para adequá-la a suas necessidades, essa premissa, que não é exclusiva da humanidade, pois; castores, joãos de barro, abelhas e outros também a promovem, modificações notáveis para otimizar a reprodução de suas espécies. Nos manuais de história a pré-história é qualificada como o período de 200.000 antes de Cristo, datação da provável aparição do homo sapiens, até 4.000 antes de Cristo, quando ocorre a descoberta da escrita nas sociedades do Oriente Próximo. Tal situação, determina que esse imenso período seja lido e descrito a partir de pinturas, registros gráficos, arqueologia, e outros, o que determina uma ampliação das suas possibilidades, e da capacidade de interpretação da nossa contemporaneidade. A história será sempre uma apropriação do tempo passado por uma contemporaneidade, que avalia os fatos ocorridos a partir de sua perspectiva, e diante dos dilemas vividos no seu tempo presente. Mas, a pré história por seu caráter ainda não auto documentado (ausência da escrita) enfatiza essa condição de interpretação e de apropriação do período pelas angústias do nosso tempo. Ao final, o patrimônio construído pela humanidade é dela própria, e deve ser entendido como "O Comum", que não é propriedade de ninguém especificamente, mas de todo gênero humano, aberto a novas narrativas e interpretações. É claro, no entanto, que essa história da eleição de um filme franco canadense, aqui apresentada possui uma matriz Euro Cêntrica, e portanto limitada aos pressupostos impostos por essa narrativa, mas que pretende trazer de forma despretenciosa o instrumental para sua descolonização por parte dos alunos. Afinal, o lugar onde está sendo formulada e construída, essa HTArq-1 é a cidade de Niterói, dentro da cidade metropolitana do Rio de Janeiro, no Brasil, um país latino americano, periférico ao sistema de domínio mundial denominado, Euro Atlântico e Estadounidense de nossa contemporaneidade.

"E finalmente ao eleger o sítio para construção da Vila deve se fazer todas aquelas considerações que se fizeram para eleger o sítio para a cidade: posto que a Cidade não é outra coisa que uma casa grande e, ao contrário, a casa é uma cidade pequena." Andrea Palladio Os quatro livros da Arquitetura 1570, página46 do livro II in PATETA 1997, página 77

A aglomeração de cabanas de uma tribo primitiva
 protegidas e resguardadas de inimigos
pelo pântano
O tema central do filme é o domínio da tecnologia de controle do fogo pela espécie humana, localizado num tempo arbitrário de aproximadamente 80.000 anos antes de Cristo, quando a humanidade encara o fogo como um objeto cercado de mistérios, que poucos grupos governavam na sua geração. Essa informação temporal é comunicada logo no início do filme através de um texto escrito que rola na tela, sendo a única informação textual e objetiva da experiência cinematográfica. Aliás, uma das virtudes da película é a ausência durante suas 1 hora e trinta e cinco minutos de duração, de qualquer diálogo inteligível pelo espectador. A linguagem oral, que já está presente entre os grupos humanos do filme é incompreensível para sua audiência, o que demanda dos atores um esforço maior para transmissão clara dos desejos e vontades dos personagens através do corporal. Tal decisão, enfatiza a comunicação da imagem e do cinema e da representação, e nos transporta a um mundo de absoluta supremacia da imagética, que coloca a audiência livre de uma descrição oral e literal precisa, acentuando nossa atenção a expressividade dos rostos e ao corporal dos atores. Além disso, o recurso abre a audiência uma ampla gama de interpretações, como numa obra aberta, onde as narrativas podem ser construídas a partir da livre associação de ideias e gestos, que ao final se constituem no texto objetivo do filme. Essa característica nos remete aos filmes mudos do começo da história do cinema, ou a cineastas como Alfred Hitchcok, que sempre lançaram mão em seus filmes de longos trechos sem diálogos ou legendas, enfatizando a ideia da comunicação direta apenas pela imagem, reforçando a ambiência da livre interpretação e da associação de ideias pelos expectadores. E, aqui é importante assinalar que o estudo dos objetos primitivos, enfim da arte primitiva não deve ser considerado um mero documento etnográfico mas como fato artístico vivo e atuante. Pois como disse Marc Bloch, não se faz história daquilo que não mais nos atinge, mas sim dos fenômenos que continuam atuando, como uma linha mestra da civilização, como enfatiza Giulio Carlo Argan sobre a atemporalidade dos objetos artísticos;

"De fato, cada obra não apenas resulta de um conjunto de relações, mas determina por sua vez todo um campo de relações que se estendem até o nosso tempo e o superam, uma vez que, assim como certos fatos salientes da arte exerceram uma influência determinante mesmo à distância de séculos, também não se pode excluir que sejam considerados como pontos de referência num futuro próximo e distante. Basta lembrar a arte pré-histórica e primitiva..." ARGAN 1992 página 15

Imagem da cabana da tribo sedentária do filme
A Guerra do Fogo, mostrando técnicas de 
vedação a partir do couro e do barro

Ao longo do filme também percebe-se diferentes tipos de clãs e grupos humanos, que além de guerrearem entre si também se relacionavam, inclusive sexualmente, com diferentes conotações, que denotam que o intercâmbio humano entre diferentes bio-tipos é a verdadeira fortuna da humanidade. De certa forma, essa característica que será enfatizada com o sedentarismo e a revolução agrícola, ocorrida segundo a periodização dominante entre 18.000 e 4.000 anos antes de Cristo. Essa tendência é anunciada pelo filme como uma presença já existente entre os grupos humanos, e que será claramente impulsionada pela posterior revolução urbana, 4.000 anos antes de Cristo. Particularmente, no episódio que levanta a hipótese de  cobrança e obrigatoriedade pelo grupo sedentário ao membro do grupo da caverna para que fertilize as suas mulheres mais gordas e avantajadas. Ao mesmo tempo, tal tendência está longe de ser romantizada pelo filme, como uma ética humana determinada naturalmente, pois há menção inclusive a práticas antropofágicas, que ocorreriam não entre os iguais, mas entre os diversos. Há, também uma certa diferenciação pré-conceituosa, no universo intra-comunidade, envolvendo portanto semelhantes no episódio, que claramente  mostra o tratamento diferenciado às mulheres mais magras do clã, que são preteridas na pretensa seleção reprodutiva da tribo sedentária. O fato é que o filme claramente apresenta a hipótese de busca por uma seleção reprodutiva controlada, por parte da comunidade sedentária, que visa o aprimoramento da constituição física e estrutural das futuras gerações. Será, que tal episódio pode ser comprovado pelos vestígios e rastros deixados por nossos antepassados, nos sítios arqueológicos existentes? Ou, como uma ética das relações humanas deve incluir sempre como premissa o livre arbítrio e a escolha do indivíduo, frente até as determinações do grupo? Importante, destacar que o argumento ou narrativa é plausível, mesmo que pendente de comprovação factual pelo sítio arqueológico ou vestígio, mostrando-nos que a história, seja pré escrita ou pós escrita está aberta as nossas leituras e narrativas.

"Direi agora brevemente, o que é que creio que seja a arquitetura. Arquitetura em sentido positivo, para mim, é uma criação inseparável da vida e da sociedade na qual se manifesta; em grande parte é um feito coletivo. Ao construir suas habitações, os primeiros homens realizaram um ambiente mais favorável para suas vidas ao construir-se um clima artificial, e construíram de acordo a uma intencionalidade estética. Iniciaram a arquitetura, junto com os primeiros indícios da cidade; de essa maneira, a arquitetura é co-natural com a formação da civilização, e é um feito permanente, universal e necessário. Seus caracteres estáveis são a criação de um ambiente mais propício a vida e a intencionalidade estética." ROSSI, in PATETA 1997 página75

Mas, além da comprovação o fato é que somos uma espécie, que claramente apresenta fragilidades com relação a sua reprodução e manutenção, frente ao mundo natural, que foram compensadas exatamente pelo compartilhamento de saberes e tecnologias. Efetivamente, o ser humano nasce extremamente dependente das gerações mais velhas, forjando sua independência natural a partir dos cinco anos de idade ou mais, afinal sua conformação cerebral, por exemplo, estará plenamente constituída apenas a partir dos dois anos de vida, e, na dependência da recepção adequada de alimentos e proteínas. Mas, o filme explora claramente a marcação das diferenças entre os grupos humanos, que é feita por diferentes sinais corporais e faciais, tais como; mais ou menos pêlos, a presença de um certo prognatismo de sobrancelha e queixo ou sua ausência, a utilização de vestiário ou não, dentre outros.  Esses grupos, dominam e possuem diferentes acessos a tecnologias de apropriação do fogo, mas também de construção de moradias e do seu agrupamento, bem como de sua defesa e do cultivo de plantas, frutos e sementes. É representativo da questão do domínio do território e da escolha do melhor local para a aglomeração de moradias - uma vila, ou mini cidade - no episódio da aproximação de um membro do grupo que vive em cavernas, do grupo, que já produz sua habitação, com uma estrutura de galhos flexíveis e vedação com peles, couros de animais e barro. O episódio nos mostra um representante de um grupo de estatura e compleição física mais avantajada (o grupo da caverna), que é capturado pelo pântano, e é submetido a uma sub imersão progressiva pelo alagado. Tal fato, denota o domínio da tecnologia da escolha do sítio para a aglomeração das barracas a partir de uma estratégia de defesa, a partir da utilização do alagado natural, que fragiliza os indesejados visitantes, desconhecedores das sutilezas do caminho seguro à vila. Como uma muralha da cidade medieval, ou como a Laguna da cidade de Veneza percebe-se a estratégia da escolha do lugar da aglomeração como um conhecimento, ou o domínio empírico experiencial da defesa da aldeia frente aos estranhos.

"A arquitetura consiste de algum modo em ordenar o ambiente que nos rodeia, oferecer melhores possibilidades ao assentamento humano, portanto, as relações que tem a missão de estabelecer são múltiplas, inter atuantes entre si; se referem ao controle do ambiente físico, a disposição de certas possibilidades de circulação, a organização das funções, de seu agrupamento ou segregação de suas relações; responde a certos critérios econômicos, se move em, e move, certas dimensões tecnológicas, provoca modificações na paisagem, etc... Mas organizar estas relações é algo completamente diferente de sua simples soma, é o significado que deriva do modo de lhe dar forma, é colocar-se dentro da tradição da arquitetura como disciplina, com um novo gesto de comunicação, com uma nova vontade de transformação da história." GREGOTTI in PATETA 1997 página 75

Enfim, o Filme a Guerra do Fogo coloca nos a questão de um debate fundamental inserido em nossa contemporaneidade; a quem pertence o desenvolvimento das técnicas, que criam um ambiente mais favorável a vida humana, com intencionalidade estética? A quem pertence o tijolo, a taipa de pilão, o solo cimento, a telha moderna de barro, a esquadria de madeira ou PVC, tecnologias, que assim como a geração do fogo foram gestadas pela humanidade num longo processo de compartilhamento. A arquitetura é um fato "permanente, universal e necessário", garantir que seu acesso seja universalizado a todos os membros da espécie humana, talvez seja o maior desafio colocado para o nosso ofício em nossos tempos contemporâneos. Tal objetivo é muito mais fácil de ser atingido, a partir da premissa da colaboração, solidariedade e do compartilhamento comunitário, do que pela competição desenfreada, ou pelo conflito de todos contra todos.


BIBLIOGRAFIA:

ARGAN, Giulio Carlo - História da Arte como História da Cidade - Editora Martins Fontes, São Paulo 1992

PATETA, Luciano - Historia de la Arquitectura, Antologia Critica - Editora Herman Blume, Madrid 1997