domingo, 30 de janeiro de 2022

As sociedades Pré colombianas, o exemplo do Império Inca na América do Sul


A capital do Império Inca, Cuzco e sua sobreposição de
Patrimônios; pré colombianos e espanhóis

No âmbito da disciplina de História e Teoria da Arquitetura 1, na contextualização das civilizações da antiguidade pré clássica, uma outra sociedade também foi apresentada aos alunos fora do eixo euro-cêntrico, o Império Inca. Uma organização social com alto desenvolvimento tecnológico, que também se articula com um acontecimento que é uma dádiva do planeta, o Vale Sagrado do Urubamba no altiplano dos Andes, assim como as sociedades que se desenvolveram em torno dos rios Tibre, Eufrates e Nilo, no Oriente Próximo. Uma síntese referente a um tempo posterior ao período estudado pela disciplina, mais vinculado ao período da Reforma e da Contra Reforma do Maneirismo europeu, a inserção de uma cultura pré colombiana cumpre o papel de abrandamento da vertente euro cêntrica de nossa matriz arquitetônica e urbanística, buscando a multilateralidade do desenvolvimento cultural. O Império Inca, nos coloca diante de um relato histórico que problematiza a visão centrada numa unidirecionalidade evolutiva e hegemônica da cultura ocidental europeia, questionando e oferecendo a visão de uma diversidade de desenvolvimentos que reforça a ideia de reavaliação da linearidade evolutiva das sociedades humanas. A multipolaridade do desenvolvimento das civilizações humanas, que na verdade não podem ser avaliadas como mais capacitadas ou menos, simplesmente pela manipulação de tecnologias destrutivas, ou de guerra.

"Como sugeriu Hobsbawn, uma das peculiaridades das quais nasce o marxismo de Gramsci está exatamente no fato de ele haver vivido tanto a experiência de uma região extremamente atrasada, marginal e periférica, como a Sardenha, quanto a de uma grande cidade industrial capitalista como Turim." DEL ROIO 2017 página 38

Na verdade, a história e a teoria inferida a partir dela, não é um relato apenas sobre o passado, mas é uma reflexão sobre o nosso presente e o nosso futuro, enquanto identidade, tecnologias e compartilhamentos. Essa trans temporalidade tão presente nas ações de plano e projeto, a partir da lógica de gestão do território, seja na constituição do abrigo, da cidade, ou da região, precisa se debruçar sobre a história a partir dos novos olhares do presente e do futuro. Nosso presente impôs de forma determinante um novo paradigma da adequação entre atividade e produção humanas e os impactos sobre os humores do planeta Terra. Nesse sentido, relatos, narrativas, vestígios e conhecimentos esquecidos pela história estão abertos a apropriações variadas e ricas, capazes de mudar trajetórias e comportamentos. Uma questão central, em nossa contemporaneidade é que o silenciamento dos grupos subalternos ou derrotados pela colonização europeia invisibiliza identidades, tecnologias, conhecimentos, comportamentos e culturas, que devem ser reavaliados e problematizados frente ao novo paradigma. Longe da mistificação romântica ou dos alinhamentos automáticos, o que se pretende para a teoria do plano e do projeto é entender como a manipulação de recursos e dádivas naturais podem trazer o bem viver para o humano, buscando sempre a consciência, sem qualquer traço arrogante, que a sucessão de fatos nos ensina. É sempre bom lembrar, que o que se busca é uma nova forma de interação entre homem e natureza, uma sintonia fina entre ocupação e manipulação do território mais sensível e delicada do que aquela que hoje exercemos.

"Não fiquemos demasiado lisonjeados com nossas vitórias sobre a natureza. Esta se vinga de nós por toda vitória desse tipo. Cada vitória até leva, num primeiro momento, às consequências com que contávamos, mas, num segundo e num terceiros momentos, tem efeitos bem diferentes, imprevistos, que com demasiada frequência anulam as primeiras consequências. As pessoas que acabaram com as florestas na Mesopotâmia, na Grécia, na Ásia Menor e em outros lugares para obter terreno cultivável nem sonhavam que estavam lançando a base para a atual desertificação dessas terras, retirando delas, junto com as florestas, os locais de acúmulo e reserva de umidade [...] Os introdutores da batata inglesa na Europa não sabiam que, com o tubérculo farináceo estavam disseminando a escrofulose. E, assim, a cada passo somos lembrados de que não dominamos de modo nenhum a natureza como um conquistador domina um povo estrangeiro, ou seja, de alguém que se encontra fora da natureza - mas fazemos parte e estamos dentro dela com carne sangue e cérebro e todo o nosso domínio sobre ela consiste em que, distinguindo-nos de todas as outras criaturas, somos capazes de reconhecer suas leis e aplicá-las corretamente." (ENGELS, A Dialética da Natureza contracapa Boitempo

Enfim, a sucessão factual da série histórica não nos autoriza a novas arrogâncias e certezas desmedidas, mas demanda um outro pensar, agir e atuar, que não condene ou celebre de forma mecânica e automática os impasses e opções por que passamos, mas nos cobra a conformação de formas de monitoramento e medição constantes que pautem de forma continuada nossa ocupação. O fato, é que a sociedade Inca com um domínio mais apurado de técnicas agrícolas e colheitas muito mais generosas será derrotada pelo Império Espanhol, no massacre da Batalha de Cajamarca, em 16 de novembro de 1532 mostrando-nos que, na verdade, o domínio de artefatos de destruição e guerra (o mosquete e o canhão) determinaram a sua derrota. Apesar da inferioridade numérica da Espanha, pois segundo relatos eram 168 espanhóis, 62 cavalos, vários mosquetes e um canhão, contra 30 mil soldados incas acampados em Pultumarca, nas proximidades da cidade inca de Cajamarca, na região da cordilheira andina (2.720 metros de altitude), no norte do atual Perú, próximo a fronteira do atual Equador. Francisco Pizarro era o espanhol que recebeu a nomeação do rei de Espanha como governador e capitão geral para promover a conquista do Vice Reinado do Perú era então o comandante das tropas espanholas. As armaduras, capacetes e espadas metálicas, os cavalos, os mosquetes e o canhão, artefatos e técnicas de longo desenvolvimento foram confrontados com boleadeiras, arcos e flechas, armaduras de lã de alpaca e ornamentos de ouro e prata. Na verdade, além das fragilidades de suas tecnologias bélicas, havia uma guerra civil em curso no Império Inca entre dois pretendentes ao trono; Atahualpa e Huáscar, filhos do imperador, que reinvindicavam a coroa para si, e que, fragilizaram a resistência a conquista espanhola. Esse silenciamento, ou a supressão das culturas, comportamentos e hábitos dos incas impacta nossa compreensão daquilo que consideramos o patrimônio a ser preservado e referenciado, determinando a unidirecionalidade emburrecedora da colonização. A proteção, preservação e a reavaliação da forma como gerimos a ocupação do território conforma a memória que temos de nós mesmos, sendo importante para nossa identidade.

"O que protegemos ontem é o que temos hoje. O que protegemos hoje é o que teremos amanhã." reflexão apresentada na aula da arqueóloga e professora Mariana Peltry Cabral sobre a elegibilidade do nosso patrimônio a ser preservado, contrapondo as imagens da Igreja setecentista na Serra da Piedade no município de Caeté MG e o sítio arqueológico de Calçoene, de população pré colombina no Brasil, no estado do Amapá. PELTRY 2021

A redenção de Cam (1897) do pintor Modesto
Brocco representa o desejo do Embranquecimento
da população do Brasil

O que a professora Mariana Peltry Cabral nos mostra é que a valoração daquilo que elegemos para ser preservado é de suma importância para a promoção da diversidade dos nossos modus vivendi, dos relatos e narrativas que nos conformam. Em nossa história há uma sucessão interminável de fatos e acontecimentos que foram arbitrariamente apagados, e, que contam formas diferenciadas de apropriação do território. O Quilombo de Palmares, na serra da Barriga, no estado de Alagoas, que representa uma outra forma de gerir um território, e que, é suprimido em 20 de novembro de 1695 com a morte de Zumbi, o que isso representa como Patrimônio para a História do Brasil. O sítio de Bom Jesus de Canudos, no sertão da Bahia, que abrigou a revolta de Antônio Conselheiro, que envolvia 5 mil domicílios e 20 mil pessoas, e que, também foi suprimido pela forças do Estado brasileiro em 1897, na nossa primeira república. Ou, a própria história da escravidão negra no Brasil, que é até hoje apagada e suprimida por nossos representantes conservadores, que desejam embranquecer nossa cultura, nossos hábitos e nossos procedimentos. Todos nos mostram, que a história verdadeira integral, como destacou Antonio Gramsci no Caderno 25 do Cárcere, aquele dedicado ao estudo dos grupos subalternos, no qual está escrito; “...todo traço de iniciativa autônoma por parte dos grupos subalternos deve ser de valor inestimável para o historiador integral.” GRAMSCI 1934 Q25. E, mais a tentativa de caracterizar o outro, o desconhecido, o dominado como bárbaro, que foi tentado de forma recorrente pela historiografia oficial deve ser questionado:

“...Este era o costume cultural do tempo: em vez de estudar as origens de um acontecimento coletivo, e as razões de sua difusão, de seu ser coletivo, isolavam o protagonista e se limitavam a fazer sua biografia patológica, muito frequentemente partindo de motivos não comprovados ou passíveis de interpretação diferente: para uma elite social, os elementos dos grupos subalternos têm sempre algo bárbaro ou patológico” GRAMSCI 1934 Q25

A cantaria Inca de pedra é até hoje um mistério de precisão 
e apuro construtivo

Mas muito longe de qualquer idealização, a estrutura hierárquica da civilização inca não era exemplo no que concerne a dominação de outros povos; o termo Inca significa "governante" ou "senhor", que em quechua era usado para se referir à classe dominante ou à família governante. Os incas em si compunham uma porcentagem muito pequena da população total do império, provavelmente numerando apenas 15 mil a 40 mil indivíduos, mas governando uma população de cerca de 10 milhões de pessoas. A federação desses povos diferenciados e plurais desenvolveram tecnologias de medir o tempo notáveis, muito mais precisas do que as europeias, o que lhes garantia uma manipulação muito mais precisa dos procedimentos de seleção de sementes, plantio, desenvolvimento e colheita, garantindo os excedentes alimentares. Os calendários incas estavam ligados à astronomia e a observação dos astros como constelações, o sol e a lua. Os astrônomos incas entendiam os equinócios, os solstícios e as passagens do zênite, assim como o ciclo de Vênus, a estrela mais brilhante em nossos céus. Eles não previam eclipses, e certamente es espantavam e se maravilhavam com esses acontecimentos. O calendário inca era essencialmente lunissolar, pois dois calendários eram mantidos em paralelo, um solar e outro lunar. Com 12 meses lunares ficam 11 dias aquém de um ano solar completo de 365 dias, sendo que os responsáveis pelo calendário tinham que ajustá-lo a cada solstício de inverno. Cada mês lunar era marcado com festivais e rituais, tais procedimentos ainda representam mistérios para a nossa sociedade contemporânea, havendo hipóteses de que tais calendários - lunares e solares combinados - acabavam por representar maior sintonia com os ciclos do milho, da batata, da quínua, ou das suas criações, Lhamas e Alpacas. Aparentemente, os dias da semana não eram nomeados e os dias não eram agrupados em semanas. Da mesma forma, os meses não eram agrupados em estações. O tempo durante o dia não era medido em horas ou minutos, mas em termos de distância percorrida pelo Sol ou de quanto tempo levava para uma tarefa de plantio e de pastoreio.

"Eis por que a categoria de "subalterno" foi retomada  e relançada, e encontrou sucesso crescente a partir dos países da "periferia" capitalista, nos quais a contradição capital/trabalho se enriquece e se complica por meio de muitas determinações, mesmo distantes daquela da subordinação salarial." DEL ROIO 2017 página 39


Aspecto Geral de uma rua de Cuzco, 
a arquitetura colonial ibérica sobre a 
base da cantaria Inca

Os incas fizeram muitas descobertas na medicina, eles realizavam trepanações bem-sucedidas, cortando orifícios no crânio para aliviar o acúmulo de fluido e a inflamação causada por ferimentos na cabeça. As taxas de sobrevivência eram de 80-90%, em comparação com cerca de 30% antes dos tempos incas. Os incas reverenciavam a planta da coca como sagrada e mágica, pois o mascar de suas folhas eram usadas em quantidades moderadas para diminuir a fome e a dor durante o trabalho, sendo também muito usadas principalmente para fins religiosos, nos festivais do solstício e em ritos de saúde. Possuíam também um complexo sistema de contabilidade ligado ao controle da produção de bens Agrários e Pastoris, que era o Quipu Inca, uma espécie de ábaco, feito a partir de uma sucessão de noz em fios de tecido. A tecelagem e a confecção de roupas a partir da lã de Alpaca e Lhama eram muito desenvolvidas, e até hoje ainda movimentam teares e apetrechos compartilhados pelas populações quechua e aymara no Equador, Perú e Bolívia. A alvenaria de pedra das cidades incas encontradas pelos espanhóis e ainda hoje presentes em cidades como Cuzco, Olantaitambo ou Machu Pichu representam um mistério com relação a forma do corte e seu acabamento final. Muitas pedras apresentam várias arestas, assentadas sem argamassa onde não é possível se quer se inserir uma lâmina fina de faca moderna. Há teorias que apontam para a maior adequação desses procedimentos construtivos às instabilidades geológicas dos Andes, inclusive o terremoto de 1986, na cidade de Cuzco revelou que o Convento dos Franciscanos estava sobre o Antigo Templo de Coricancha em homenagem ao Sol, e que, abriu um amplo campo de explorações arqueológicas na antiga capital Inca. Uma das imagens mais marcante das cidades do Vale Sagrado, na região de Cuzco, que receberam edificações ibéricas é justamente esta sobreposição de processos construtivos. Uma expressão particular e única do maneirismo ibérico, que combina uma interação, dominação e sobreposição mostrando-nos que no campo da cultura a fusão visual dos elementos é recorrente. Ao final, uma síntese única e particular, que numa analogia por exemplo, com uma escola de pintura, a Cuzquenha, que ocorre ao mesmo tempo e lugar, mostrando-nos que o hibridismo prevaleceu. A combinação de um lirismo com uma religiosidade exagerada e excludente acaba nos demonstrando um traço único de uma América Latina dramática, que aparece eternamente envolta num sonho utópico, que nos traga de novo a ingenuidade dos povos primitivos.

Os alunos são apresentados a obras e esforços construtivos notáveis, como; a síntese da Cidade de Cusco, o umbigo do mundo, a fortaleza de Sacsuahaman, as ruínas de Pessac, a cidade de Olantaytambo e seus mistérios cósmicos e a interação entre sítio arqueológico e vida contemporânea, culminando em Machu Pichu, um lugar que nos arrebata, mostrando-nos uma síntese geográfica inusitada de onde parece emergir uma conexão cósmica entre humanidade e planeta. O Vale Sagrado, região do hinterland da capital Inca de Cuzco, parece nos mostrar uma estruturação única e sensível de um lugar humano. As lições da cultura inca e de outros traços abandonados pela exclusidade medrosa do catolicismo espanhol e português, parecem ainda nos mostrar que a interação entre técnicas e comportamentos ainda está para se realizar. Tudo isso, nos mostra de forma contraditória, as imensas potências presentes na estruturação do "Genius Locci", categoria da fenomenologia do arquiteto Christian Norberg Schulz, presente em cada local de forma isolada e também no seu conjunto. No século XX, um arquiteto dos EUA, de família imigrante de origem na Rússia, Loui I. Khan, nos perguntou que; "precisamos parar para ouvir, aquilo que o lugar quer ser". Essa condição aparece de forma indelével, naqueles que visitam esses lugares - Cuzco, Sacsuhuaman, Pessac. Ollantaytambo e Machu Pichu - nos mostram ainda de forma velada e subliminar como essa condição pode ser alcançada pela cultura humana.

BIBLIOGRAFIA:

CABRAL, Mariana Peltry - Aula Como valorizamos nosso patrimônio? - História e Teoria da Arquitetura 1 2021-1 EAU-UFF
DEL ROIO, Marcos (org.) - Periferia e Subalternidade - USP São Paulo 2017
ENGELS, Friedrich - A Dialética da Natureza - Boitempo São Paulo 2018
GRAMSCI, Antônio, tradução  - Cadernos do Cárcere, volume 25 -