quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Aymonino e Rossi, a cidade contemporânea, tipologia, origens e desenvolvimento

Os preciosos croquis de Aymonino, no livro Origenes y desarrollo de la 
ciudad moderna
A cidade contemporânea, tal como ela se apresenta nos diversos contextos, aonde se insere em diferentes países e realidades sociais pode ainda ser descrita de uma forma geral, e sintética? Esquecendo-se de seu contexto geográfico, mas apenas por sua condição presente? E, se ela pode assim ser descrita, quais suas origens e desenvolvimento? Essa é uma pergunta complexa, pois a cidade está sempre enraizada no seu contexto específico, que envolve, um lugar e uma história particulares. Mas, será que não há traços compartilhados entre as condições de Roma, Rio de Janeiro, Nova York, Lobito (Angola), Seul (Coreia do Sul), e outras, advindas de nosso tempo presente? Há muito tempo, o arquiteto italiano Carlo Aymonino (1926-2010) escreveu um livro emblemático, que teve grande impacto sobre minha geração de estudante, nos idos do final da década de 70, e começo dos anos 80 na FAU-UFRJ. Mais precisamente o livro é de 1971, em sua primeira edição italiana, Origini e sviluppo dela cittá moderna, e a edição mais popular no Brasil é a da sua tradução espanhola pela editora Gustavo Gilli, Origenes y desarrollo de la ciudad moderna, do ano de 1972*. O livro ainda reunia publicações clássicas do pensamento urbano do final do século XIX e início do século XX, tais como; Ebenezer Howard, Ciudades-Jardim del mañana, ou Tony Garnier, Una ciudad industrial, ou J. Hilberseimer, Proyectos, ou N.A. Miljutin, Sosgorod. Aymonino era então um dos mais importantes arquitetos de uma corrente, que florescia na Itália, desde os anos 60, que num claro movimento contra tendência geral celebrava o racionalismo e a autonomia dos campos do plano e do projeto. Havia na verdade, no grupo diferentes posicionamentos, mas que nos meus tempos de juventude na FAU-UFRJ (1978-83) era visto como um grupo coeso, do Instituto de Arquitetura e Urbanismo de Veneza (IAUV).

"El desarollo urbano está entonces bastante más caracterizado por el aumento em extensión de los asentamientos, con la constante agregación de periferias programadas o "expontáneas", que por um diseño em algún modo unitário que estabelezca prioridade, puntos de referencia, cualidad, o sea el entramado sobre el qual centrar las razones del desarollo mismo." AYMONINO 1972, página72

De certa forma, essa segue sendo uma das características da cidade contemporânea, a explosão do seu território, que cada vez mais se torna indefinido e impreciso, assinalando que as periferias recém ocupadas acabam semelhantes em todas as partes do mundo. Aymonino também se perguntava se o termo cidade, que se referira ao longo da história a assentamentos humanos com mais de cinco mil anos de história, ainda podia ser aplicado às modernas cidades industriais. Tanto por conta de sua dimensão quantitativa, que se referia a sua dimensão populacional e territorial, como também as transformações qualitativas, como as comunicações e conexões. Mas, esse movimento italiano urbano-arquitetônico de contra corrente, pois naqueles anos a arquitetura e o urbanismo eram cada vez mais contaminados de forma positiva pela sociologia e antropologia, voltando sua prática para suas características de arte utilitária. O ato de planejar e projetar era cada vez mais encarado como um ato arbitrário e autoritário, que pouco contemplava seu usuário, e suas complexas apropriações no pós obra ou inauguração. Além disso, havia uma clara condenação da racionalidade ocidental homogeneizadora do mundo, que era atacada por sua lógica redutora e eurocêntrica de celebração de um módus operandi colonizador e sem respeito pelas diferenças. Aymonino não negava ou se afastava desses posicionamentos, assim como a grande parte da tendenza** italiana, mas reafirmava a racionalidade e a relativa autonomia de determinadas atividades humanas, como a arquitetura e o urbanismo, mesmo dentro desse contexto. Enfim, apesar de sua clara filiação ocidental e italiana, declarava sua solidariedade aos movimentos de descolonização e afirmação de variadas identidades, sem rejeitar a razão e a autonomia do projeto. A postura envolvia uma afirmação contrária a mentalidade pós moderna imperante então, que negava a modernidade com sua teleologia da história, que acreditava caminhar em direção a um aprimoramento geral das condições de vida, socialmente compartilhadas. A crítica ao Iluminismo, e sua crença no progresso interminável da modernidade da Escola de Frankfurt estava presente no neo-racionalismo da tendenza italiana, no entanto, a crença na razão permanecia intacta, pois era ela que garantia o diálogo entre diferenças. Havia uma certa melancolia, típica da Escola de Frankfurt, na sua referência aos filósofos; Adorno, Hockheimer e Benjamim, que haviam produzido críticas ácidas ao otimismo iluminista, a partir da ascensão do fascismo na Europa, em vários contextos.

"Ni tampoco estoy de acuerdo con las conclusiones del estúdio de Leonardo Benevolo, em las cuales - reexaminando los Orígenes de uma desviación que hoy es sólo aparente - se afirma que "las instancias renovadoras de la cultura urbanística moderna sólo pueden traducirse em realidade reencontrando los contactos con las fuerzas políticas que tienden a uma análoga transformacioón general de la sociedade"  en cuanto "la urbanística es uma parte de la política, necessária para concretar todo programa operativo y al mismo tempo no reducible a las fórmulas programativas generales." Como para muchas otras disciplinas, el afortunado encuentro con la política sólo se ha dado y se dará em circunstancias excepcionales: recordemos la Viena de 1918, las nuevas ciudades soviéticas de 1925, la Inglaterra de 1945." AYMONINO 1972 página19

O livro, como o próprio Aymonino declara é uma resposta crítica à construção de Leonardo Benevolo, que havia lançado As origens da urbanística moderna em 1963 na mesma Itália, que fazia identificações descaracterizadas entre urbanística e política. Existia um clima geral de revisão política, que se iniciara em 1956 no âmbito do XX Congresso do Partido Comunista em Moscou, onde Nikita Khrushchev admitia e criticara os excessos de Stálin, e do Exército Vermelho na Hungria. Na Itália e na França, vozes como Raniero Panzieri ou Mario Tronti com seus ensaios nos Quaderni Rossi, e Cornelius Castoriadis e Claude Lefort, com sua revista Socialisme ou barbarie já apontavam a burocratização da Revolução Soviética, e o Estatismo opressor. Ainda haviam menções permitidas ao mundo do trabalho, que claramente se contrapunha a lógica dos proprietários, ou a solidariedade contraposta a concorrência, ou ainda, cooperação e luta de classes. Para Aymonino era necessário uma classificação mais precisa da urbanística e da política, que claramente se distinguia entre conservadora e progressista, seguindo os passos de Gramsci, e do programa do PCI, que lançava naqueles anos as bases do eurocomunismo. Havia também um claro esforço de delimitação do campo ou ofício do urbanismo e da arquitetura em conjunto, sem as corriqueiras distinções que então vinham sendo feitas, inclusive pelo próprio Benevolo. A perspectiva de reconstrução do ofício, referenciando essa fortemente na atitude do desenho seduzia de forma definitiva a minha geração, que já se acostumara com uma divisão, algo comportada, entre cidade; formulação escrita, e arquitetura; formulação desenhada. Isto é, urbanistas escrevem, enquanto arquitetos ainda desenham. Havia nessa atitude, um raciocínio implícito algo caricato, de que o desenho era uma atividade arbitrária, autoritária e portanto alienadora de consciência, enquanto a textualidade uma forma mais neutra e acessível a todos.

"Foa a los urbanistas italianos (reunidos em su X Congreso, em octubre de 1964) de no detener el justo critério de interdependência de los fenómenos de asentamiento - puestos de relieve por los estúdios hasta entonces realizados - em los umbrales de las relaciones de producción. Sólo traspassado este umbral, la disciplina específica puede aportar su contribución a uma transformación real del presente y participar de la unidad entre reinvindicaciones económicas (trabajo, salario) e hipótesis urbanísticas (programa, plan). Por outra parte, el movimento obrero sólo puede acentuar su propia hegemonia afrontando el problema de la producción a nível de la ciudad em su conjunto, como processo integral, que involucra cada vez más los problemas de transformación de todo el território nacional." AYMONINO 1972 página11

A afirmação dos fenômenos inerentes aos assentamentos humanos articulados com as relações de produção não nos deixava dúvida, de que as reinvindicações justas do trabalho deveriam estar expressas no programa e no plano, como numa unidade entre desejo e desenho. A explicitação clara do caráter classista da cidade especulativa, que ao contrário de se referir ao território de toda cidade, tentava individualizar intervenções pontuais, nos apontava a necessidade de atuação coordenada em várias escalas, e em toda a cidade. A questão não era de que a intervenção só se justificaria em todo o território da cidade ou do país, mas que qualquer transformação se articula com esse conjunto, devendo portanto ser pensada de forma estruturada, buscando interesses da maioria e não de uma minoria. A referência é aos assentamentos humanos como um todo, em suas diversas escalas e manifestações, envolvendo até o território nacional, como uma continuidade interdependente e relacionada, e a uma mais antiga contradição, entre campo e cidade. Naquilo que Marx e Engels já haviam descritos como a subdivisão de trabalho mais antiga, e, também a exploração ou controle mais primitivo, a relação de dominação entre cidade e o seu entorno, ou seu campo. Apesar da constante referência a outros saberes e ciências há um esforço continuado por definir os limites do profissional que se arrisca na proposição de novas configurações, o arquiteto, que ao estarem claramente formuladas garantem, e só são alcançadas pelo desenho e pela obra. Mas também, por uma gestão territorial que tenha como premissa a inclusão de todos os interesses conflitantes, e não apenas, os de uma minoria promotora do lucro privatizado sempre contraditório com a qualidade. Essa última pressupõe a explicitação dos conflitos de interesses dos diversos setores e extratos sociais, que devem equilibrar a habitação, o lazer, os serviços e o comércio, enfim o trabalho. A realidade física de nossas cidades é um reflexo das nossas relações sociais, exatamente de fragmentação e particularização de determinados trechos em detrimento de outros.

"No soy un economista y no puedo aventurarme em uma demonstración económica: pero em mi campo, el de la arquitetura y de las formas urbanas, no me ha sido dado comprovar em estos años alguna solución de continuidade ni inversión positiva, sino aquella - ya clarificada em el curso del último siglo por muchos marxistas - entre producción y relaciones de producción, entre sociedade y relaciones sociales que tan bien se reflejan y se leen em la realidade física de la relación ciudad-campo." AYMONINO 1972 página12

A capa do livro de Rossi em sua quinta
edição da Gustavo Gilli
Mas para além das reflexões de Aymonino, um outro arquiteto também italiano marcou de forma mais marcante com seus projetos e escritos aquela geração de arquitetos da FAU-UFRJ, entre os anos de 1978 e 1983. Seu nome, Aldo Rossi (1931-1997), através do livro Arquitetura da Cidade, na sua versão em espanhol da Editora da Gustavo Gilli, na sua quinta edição de 1981, que tinha um precioso prólogo de Salvador Tarragó Cid. Nesse prólogo, o arquiteto Salvador Tarragó questionava Rossi, de que, apesar de concordar com a dimensão arquitetônica do urbano considerava importante complementá-la, pela dimensão também urbana da arquitetura.. Na verdade, Tarragó celebrava e questionava o lugar comum partilhado por todos, naqueles anos sessenta, da supremacia da dimensão econômica na cidade, relativizada por Rossi a partir de sua inércia construída e já realizada, suas pré-existências e seus elementos primários. Essa questão envolvia, quase como consequência imediata a consideração do ato arbitrário do projeto, o traçado de ruas e o parcelamento da terra, sua vinculação com a arte, a dimensão do estético, suas respostas às expectativas do programa econômico, a partir de parâmetros atuantes num campo, que desfruta de certa autonomia, que possui seus próprios referenciais e paradigmas. Então, percebia-se na obra dos arquitetos italianos, um enorme esforço para reconstrução do campo autônomo do plano e do projeto, não apenas na dimensão da eficiência quantitativa cobrada pelo capital, mas também em sua importância intuitiva e artística, não mera simplificação e objetivação.

"Asi, mientras que se puede interpretar lo artístico como el campo próprio de lo intuitivo e irracional, valores éstos que al ser assignados desde uma óptica positivista que circunscribe el mundo de lo essencial estrictamente a la dimensión de la realidade con que opera (la de las relaciones cuantitativas), forzosamente ha de conllevar uma subvaloración de la importancia y transcendência del arte al quedar éste ligado a uma forma de intervención no cientificista y por lo tanto secundaria." Salvador Tarragó Cid no prólogo de ROSSI 1981 página 8

O Arquitetura da Cidade, depois apareceu em tradução portuguesa, na edição da Martins Fontes de 1995, que já não tinha o prólogo de Salvador Tarragó Cid, mas ampliou substancialmente seu impacto nas escolas de arquitetura do Brasil. A trajetória do livro é bastante peculiar, tendo sido publicado na Itália em 1966, ele teve uma influência inicialmente restrita as escolas de arquitetura deste país, quando em 1982 Rossi viaja aos EUA, convidado por Peter Eiseman (1932-), que então comandava o Instituto de Arquitetura e Estudos Urbanos de Nova York e lança The Architecture of the city, com prefácio de Eiseman, o livro ganha outra penetração nos meios acadêmicos. A tese de Rossi se ancorava em três debates presentes na cultura arquitetônica italiana, e permanecia com essa capacidade de Aymonino de descrever de forma genérica a cidade contemporânea. A primeira vertente vinha de Bruno Zevi (1918-2000), que celebrava a arquitetura orgânica de Frank Lloyd Wright e havia fundado o Movimento pela Arquitetura Orgânica na Itália. O seu livro Saber ver arquitetura (1948) celebrava a América livre das amarras econômico e culturais da Europa e enfatizava não a materialidade do construído, mas o vazio aprisionado por esta. Outra referência era o pensamento de Giulio Carlo Argan (1909-1992), crítico de arte que havia elegido a arquitetura como obra de arte carregada de impessoalidade, como uma obra coletiva, mas apesar disso única. Seu livro, Walter Gropius e a Bauhaus (1951) celebra a experiência didática da Bauhaus e sua visão de encarar a arquitetura como articuladora de todas as artes. Seu outro livro, Progetto e destino (1965) certamente está presente no pensamento de Rossi, que sempre pautou sua reflexão teórica a partir da concepção de que o ato de planejar e projetar era também uma forma de abordar o real. Por último, o editor de Casabella e Continuittá, (1953-1965) o arquiteto Ernesto Nathan Rogers (1909-1969), que em 1932 fundara o escritório de Milão BBPR, com outros três companheiros. Rogers era um arquiteto atuante e um polemista a frente de publicações especializadas, como Quadrante (1933-1936) e Casabella, que ao assumir a chefia de sua editoria, agrega a palavra continuidade, fazendo clara referência aos conjuntos urbanos, destacando que a beleza da arquitetura se encontrava em sua inserção urbana. Rogers também identificava um claro posicionamento ético e militante nos posicionamentos dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAMs), como um projeto político de trajetória liberal, mas que reforçava um padrão democrático, tanto para a cidade, como para a arquitetura. É nesse contexto rico e diversificado, que Arquitetura da Cidade é publicado, representando para nós um alento positivo, que reavaliava o projeto como um ato autônomo e positivo.

“Entendo a arquitetura em sentido positivo, como uma criação inseparável da vida civil e da sociedade em que se manifesta; ela é por natureza coletiva. Do mesmo modo que os primeiros homens construíram habitações e na sua primeira construção tendiam a realizar um ambiente mais favorável à sua vida, a construir um clima artificial, também construíram de acordo com uma intencionalidade estética. Iniciaram a arquitetura ao mesmo tempo em que os primeiros esboços das cidades; a arquitetura é, assim, inseparável da formação da civilização e é um fato permanente, universal e necessário.” ROSSI 1981 página60

Havia no livro uma clara celebração do ato de planejar e projetar, como a conformação de um discurso persuasivo e de convencimento, comandado pelo arquiteto, mas submetido ao conjunto social, com a clara consciência da natureza coletiva da arquitetura. A presença da escola de geografia francesa era também um fato, que envolviam geógrafos e sociólogo como; Marcél Poëte (1866-1950), Maurice Halbwachs (1877-1945), Jean Tricart (1920-2003), George Chabot (1890-1975) e Max Sorre (1880-1962). Cada um deles com uma contribuição específica, Poëte com as complexas interações entre matéria e memória vindas de Bergson, Halbwachs com o conceito de memória coletiva, Tricart com a geomorfologia e clima, e Chabot e Sorre a partir da conciliação entre geografia humana e física. O livro envolvia a sistematização do ato de projetar, que se apropriava dos fatos urbanos, construindo uma cidade análoga que era fruto do poder discricionário do projetista, que elegia os elementos a serem manipulados, como na pintura de Canaleto para Veneza. O ato arbitrário buscava uma justificação na própria história da cidade, aproximando o ato de projetar de uma cientificidade subjetiva. Havia um resgate do movimento moderno, apesar da identificação de uma simplificação ortodoxa na menção a um funcionalismo ingênuo, que na verdade banalizara e acomodara as decisões projetuais.

"Nesse estudo de arquitetura que considera e cresce sobre todo seu passado, ocupa um lugar proeminente a meditação sobre a teoria da arquitetura do Movimento Moderno; por isso esse livro constitui também uma valoração do legado do Movimento Moderno, por essa herança ter grande significado... Aceitar tal herança significa desde logo por em um plano crítico o material disponível. Atualmente a teoria do movimento moderno como salto qualitativo da arquitetura ou como movimento político moral foi abandonada quase por todos, exceção feita por alguns obstinados que preferem as ideias e as tendências artísticas do passado às modernas, e cuja produção, por outro lado, não aumentou em nenhum sentido o patrimônio defendido. Nesse livro, se oferece uma primeira valoração dessa herança, intentando ver os termos dentro dos quais sua aceitação é positiva." Tradução minha do espanhol. ROSSI 1981 página 41

Outro livro, do mesmo Rossi, que também fez a cabeça dos jovens arquitetos da FAU-UFRJ, naquele final dos anos setenta e início dos anos oitenta, dessa vez para os já iniciados em sua teorização, era o Para uma arquitectura de tendência, escritos de 1956-1972, que trazia uma série de artigos publicado no calor dos debates da imprensa italiana. No qual apenas destaco; La arquitectura de la razón como arquitetura de tendência e Tipologia, manualística y arquitectura, mas isso pode ficar para um outro artigo.

NOTAS:
* Dois livros precedem a Origem e desenvolvimento da cidade moderna; ROSSI, Aldo - A arquitetura da cidade - editora Gustavo Gilli Barcelona 1981, que a primeira edição italiana data de 1966 e SALZANO, E. Urbanística e societá opulenta - editora Bari Milão 1969.
** Os expoentes mais atuantes dessa corrente na Itália eram; Carlo Aymonino, Aldo Rossi, Ludovico Quaroni, Mario Ridolfi, Manfredo Tafuri, Giuseppe Samoná, Ernesto Nathan Rogers (editor de Casabella i Continuitá de 1953 a 1965). Não eram uma unidade fechada de idéias e conceituações sobre a arquitetura e a cidade, como nos parecia no Brasil de então, mas uma pluralidade de visões diversas. Para um mais aprofundado mapeamento ver: AURELI, Pier Vitório - The project of autonomy: Politics and Architecture within and against Capitalism - Princeton Architectural Press Nova York 2008

BIBLIOGRAFIA:
AURELI, Pier Vitório - The project of autonomy: Politics and Architecture within and against Capitalism - Princeton Architectural Press Nova York 2008

AYMONINO, Carlo - Origenes y desarrollo de la ciudad moderna - Editorial Gustavo Gilli Barcelona 1972

ENGELS, Friedrich - A questão da habitação - editora Aldeia Global Belo Horizonte 1979

ROSSI, Aldo - La arquitectura de la ciudad - editorial Gustavo Gilli Barcelona 1981

ROSSI, Aldo - Para uma arquitectura de tendência, escritos 1956-72 - editorial Gustavo Gilli Barcelona 1977

sábado, 5 de janeiro de 2019

O jovem Gramsci, a linguagem e as formas de construir

Capa do livro de Leonardo Rapone
Gramsci chegou a Turim em outubro de 1911, aos vinte anos de idade, havia conseguido em junho o diploma do liceu em Cagliari, capital da Sardenha, e chegara ao Piemonte pretendendo ingressar na Faculdade de Letras. Não era um abastado, se confrontava com uma grande penúria de meios de sustento, sua saúde era precária, e era um imigrante da Sardenha, uma das regiões mais pobres da Itália recém unificada, exatamente pelo Piemonte rico e industrializado. Sua família era bastante precarizada, seu pai em 1898 havia sido preso por peculato, concussão e falsidade ideológica, deixando a família sobreviver com os bens da herança materna, e de seus trabalhos como costureira. Por outro lado, havia sido um excelente estudante, naquele ano de 1911 participara de um concurso do Colégio Carlos Alberto, uma instituição beneficiente que fornecia bolsas de estudos para estudantes em condições desfavoráveis, obtendo a bolsa pelos anos de 1911-12. Naquela sua chegada a uma metrópole como Turim, seu primeiro esforço foi se despir de seu provincianismo paroquial, de um homem da Sardenha do princípio do século, abraçando a modernidade cosmopolita, que rapidamente se industrializava com a instalação de fábricas como a FIAT e a LANCIA. Essa condição de subalterno no espaço social da Itália será uma das fontes mais profícuas do seu pensamento, a noção de um certo centro impulsionador do capital, constituído primeiro pela Inglaterra e depois pelos EUA. A subalternidade da Itália nesse sistema mundial, a minoridade da burguesia italiana frente a inglesa, americana e francesa, sua declaração de dependência do Estado Nacional, a fraqueza do liberalismo italiano frente a essas outras três nações. A posição da Sardenha e a parte meridional da Itália agrária, católica e arcaica, frente ao norte industrializado, urbano e moderno. A reflexão de Gramsci terá sempre esse componente histórico espacial e cultural, que identifica especificidades, mapeia suas potencialidades e problemas, buscando sempre a estratégia da transformação. Mantendo sempre um otimismo propositivo. Sua consciência do desenvolvimento capitalista, sempre nos remete ao confronto entre o arcaico e o moderno, aonde as duas condições não são apenas polos antagônicos, mas realidades que tomam conhecimento mútuo, e muitas vezes exploram sua proximidade de forma complementar.

"Em 1913, nos meses de interrupção da atividade universitária, Gramsci pode assistir na sua ilha à campanha para as primeiras eleições com sufrágio semiuniversal* e dela retirou uma impressão muito viva da eficácia da política como fator de mobilização e transformação das massas camponesas, admitidas pela primeira vez ao exercício do voto. Em setembro, na esteira das eleições, realizou seu primeiro ato político público, aderindo ao grupo de ação e propaganda dos interesses da Sardenha, de inspiração antiprotecionista, que se constituira  no verão**. São particularidades de certa importância, porque nos conduzem ao tema da desprovincialização e nos ajudam a entender a natureza do processo que se realizou no espírito do jovem sardo. A inscrição de Gramsci no PSI é parte integrante de sua nacionalização; com tal ato Gramsci não cortava as raizes territoriais, mas especificava a dimensão intelectual e política na qual buscaria a explicação e perseguiria a solução para as angústias e os problemas específicos da Sardenha, lugar originário e indelével da sua tomada de consciência dos antagonismos sociais." RAPONE 2014 páginas63 e 64

E, mais do que sua nacionalização, Gramsci toma consciência das interações no sistema capitalista entre as nações da Europa e dos EUA, hierarquizando suas histórias e constituições, definindo uma centralidade muito além da mera simplificação econômica. Mas logo após sua chegada a Turim, Gramsci circulava no meio sindical, como produtor de ensaios e textos para jornais ligados ao Partido Socialista Italiano (PSI), ao mesmo tempo, era demandado pela Faculdade de Letras de Turim para temas acadêmicos, como os estudos de glotologia*** do professor Matteo Bartolli, uma referência dos neolinguistas. Também a língua, sua evolução e seu desenvolvimento irão sempre constituir para Gramsci como um ordenamento estruturado de forma molecular e dispersa, e de baixo para cima, com transformações contínuas, que lhe permitiam analogias com a política. Além disso, a questão da língua sempre esteve nas reflexões de Gramsci relacionada à organização da cultura e à função dos intelectuais orgânicos das diferentes classes sociais. Gramsci também construirá um forte vínculo entre linguagem e forma de estruturar o pensamento, negando de forma enfática o naturalismo e o mecanicismo, que imperava nos meios marxista do início do século XX. Mas ao mesmo tempo valorizando de sobremaneira a forma como a linguagem se estrutura, possibilitando a criação, a reformulação e a revolução dentro de parâmetros e regulações socialmente introjetadas em cada indivíduo. Para Gramsci, o estudo e o aprofundamento no fenômeno da linguagem sempre será proveitoso, reunindo criatividade e compreensão socialmente compartilhada, que na verdade impulsionam um devir histórico real e apartado do idealismo.

"Mas aqui quem se pronuncia não é só o discípulo de Bartoli: é também o militante político para o qual opor-se ao esperanto equivale a declarar-se 'revolucionário' e 'historicista': de fato, significa afirmar que na base do devir histórico está 'a atividade das energias sociais livres', excluindo as utopias - isto é, a pretensão de buscar projetos abstratos, ao mesmo tempo arbitrários e ilusórios, sobrepostos ao agir dos homens - e combatendo a ideia de que o movimento da vida e da história, entendido por Gramsci como perpétuo 'fluir de matéria vulcânica liquefeita', possa atingir um estágio último e definitivo, porque hipoteticamente perfeito: 'Por isso abaixo o esperanto, tal como abaixo todos os privilégios, todas as mecanizações, todas as formas definitivas e enrijecidas de vida, cadáveres que empestam e agridem a vida em devir'"****RAPONE 2014 página57

Foi exatamente essa celebração do acaso no devir histórico, que sempre mobilizou a curiosidade de Gramsci, e sua capacidade de pensar estratégico, aonde a pretensão ao controle total, já denotava sua crítica aos processos revolucionários violentos. E, as formulações posteriores da distinção entre guerra de posição e guerra de manobras, e o próprio conceito de hegemonia, que dinamiza a ideologia como instrumento efetivo de ação no cotidiano. Mas, outro professor, que incentivou Gramsci ao ensaísmo foi Umberto Cosmo, livre-docente de Literatura Italiana, que incentivou-o a escrever sobre Maquiavel desde 1917, buscando uma ponte entre a cultura e a política, que tanto seduzia o jovem sardo. Nesse sentido, sua simpatia pela ação de ruptura das vanguardas culturais, que contaminavam o ambiente italiano do início do século XX é apontado sempre com destaque de sua vivacidade intelectual, além de um traço de pertencimento geracional. A revista La Voce de caráter burguês e L´Ordine nuovo fundado em 1919, da qual fazia parte mostram esse esforço de tentar dar agilidade e vivacidade à acadêmica e "balofa cultura italiana", nas palavras do próprio Gramsci. Percebe-se nas posições do filósofo da Sardenha, já na sua juventude um profundo vínculo com a cultura humanista italiana, que muito além da política constroe uma conexão entre vida cotidiana e estratégia de construção socialista. Uma continuidade didática, e que celebra na atividade política uma capacidade pedagógica de constante aperfeiçoamento, cada vez mais distante do idealismo, fazendo um enorme esforço em direção ao pragmatismo. Num exemplo dessa atitude embrionária, a partir de um discurso em 1916 de Filippo Turati, um socialista reformista, que declara ferrenha oposição a qualquer forma de sabotagem do esforço bélico italiano na primeira guerra, finalizando no seu texto com a expressão; "isto seria ao mesmo tempo idiota e nefando", Gramsci nas páginas do Avanti de janeiro de 1917 coloca a questão do léxico do líder reformista contra ele próprio;

"Pesemos as palavras. Idiota: palavra nobilíssima, de origem grega. Idiota significa, antes de mais nada, soldado simples, soldado que não tem galão. Significa em seguida: quem pensa com a própria cabeça, quem é peculiar, quem ainda não se submeteu à disciplina social vigente...Idiota é quem é diferente, quem pensa e fala diferentemente da maioria. Idiotismo é a palavra ou o modo de dizer próprio de uma região, e não usado na língua literária ou nacional... Nefando, palavra igualmente nobre, de origem latina. Significa: quem fala como a divindade proibiu que se falasse, quem faz afirmações proibidas pela lei. Duas palavras que têm um valor autenticamente democrático do ponto de vista social." RAPONE 2014 página55

Fica claro nesse posicionamento do jovem Gramsci, essa dimensão questionadora e fora dos parâmetros de uma zona de conforto cômoda, que esse pensamento nos propõe a nos levar, aonde a mentalidade solidária e socialista não se restringe a conquista do poder, mas permeia o agir diário. O livro de Leonardo Rapone, traduzido em 2014 destaca uma série de textos onde o jovem Gramsci, a partir da ironia e em torno do significado assumido pelas palavras em diferentes ocasiões e contextos fustiga seus opositores levantando a adaptação das palavras à diferentes realidades ideológicas e temporais. Gramsci sempre irá celebrar esse caráter indomável e avesso ao autoritarismo, que a língua carrega, como no caso da unidade linguística da Itália, proposta em seu tempo a partir do dialeto da toscana, proposta por Manzoni, ou no caso da adoção do Esperanto como facilitador da comunicação internacional. O linguista e filósofo sardo irá repelir com veemência a imposição de cima para baixo, sobre o argumento de que "a linguagem, ainda antes de mecanismo comunicativo, é produto em contínuo devir." RAPONE 2014 página56. Na questão da lingua internacional, o Esperanto, Gramsci sem dúvida já celebrava a internacionalização da solidariedade entre despossuídos, mas reafirmava a presença da necessidade pulverizada e molecular, que criaria as condições para a emergência da nova língua a partir do cotidiano, e não por decreto. Há nas referências linguísticas de Gramsci uma constante menção às energias sociais livres, que nunca irão parar de se desenvolver, fazendo pouco caso das narrativas que pensavam num estágio último e definitivo das contradições sociais, que para ele jamais cessariam. Assim como, a linguagem, a arquitetura, que é uma necessidade humana difundida e presente em toda a humanidade, afinal o homem em suas diversas culturas produz seu próprio abrigo, e não reconhece no planeta e no seu ambiente, tal qual está constituído, um acolhimento adequado. Afinal, existe a produção da arquitetura culta dos arquitetos, e aquela produzida pela auto construção, pela necessidade do abrigo, aonde as referências construtivas estão presentes, assim como na língua. Essa condição, de auto reprodução das técnicas de construção do sua própria sobrevivência se dissemina entre as pessoas conforme o vocabulário, que dominam, seja na materialidade disponível, ou na parcela aonde estão autorizados a realiza-la, o que vincula de forma definitiva, a linguagem à cultura do construir, que sempre tem profundos vínculos com o lugar e com o tempo. O que também está constituído na cidade, que nunca é a mesma, justamente em função das variações dessa linguagem do construir, tanto no espaço, como no tempo.

"O povo italiano, há cinquenta anos, não existia, era só uma expressão retórica, Não existia nenhuma unidade social na Itália, existia uma unidade geográfica. Existiam milhões de indivíduos dispersos no território italiano, cada qual vivendo para si mesmo, preso no seu torrão particular; ninguém sabia da Itália, cada qual falava um dialeto particular, acreditava que todo mundo estava limitado ao horizonte de sua aldeia. Conhecia o coletor de impostos, conhecia o carabineiro, conhecia o juiz e o tribunal: sua Itália. E, no entanto, esse indivíduo, muitos destes milhões de indivíduos superaram este estágio particularista, formaram uma unidade social, sentiram-se cidadãos, sentiram-se colaboradores de uma vida, que saia do horizonte da sua aldeia, que se estendia por espaços cada vez mais amplos do mundo, que se estendia ao mundo inteiro.... Ele fez com que um camponês da Puglia e um operário de Biella falassem a mesma língua, passassem, tão distantes, a se expressar de modo igual em relação ao mesmo fato, a dar um juízo igual sobre um acontecimento, um homem..." RAPONE 2014 páginas 66 e 67

Aqui há uma profunda vinculação entre espaço nacional, esforço particular e individual, construção de uma mentalidade coletiva solidária, identidade linguística e cultural, consciência e determinação, particularidades que também estarão presentes na arquitetura. Na verdade, os alicerces conceituais do jovem Gramsci são vários e diversificados, indo do socialista Benedeto Croce ao fascista Giovanni Gentile, ambos neo-idealistas e hegelianos, de Henri Bergson com sua construção da consciência, ao engenheiro sindicalista George Sorel, ambos detratores do positivismo. Sua filiação ao marxismo problematiza sempre a tendência a um certo economicismo, e reafirma a centralidade da cultura e a necessidade de atuação na revolução dos costumes cotidianos dos diversos agentes. Gramsci encara a teoria de Marx não como a elaboração de uma síntese fechada, baseada em ortodoxias, mas como um pensamento sistêmico que permite apropriações variadas em função das conjunturas históricas e espaciais específicas. A identificação da figura do intelectual como uma possibilidade acessível aos diversos extratos sociais, na construção do pensar orgânico, que por vivenciar uma determinada experiência carrega um conhecimento, que merece um espaço de narrativa a ser ouvida. Sua construção da cultura e do pensar humano sempre se afastou de um certo elitismo exclusivo, mirando numa prática cotidiana portadora de uma potência didática e reveladora da liberdade. Seu marxismo jamais tendeu a redução determinista e etapista, suas reflexões a partir do advento da revolução russa e seu ainda embrionário sistema capitalista, sempre enfatizaram a questão do indivíduo como impulsionador da história.

Enfim, o sistema gramsciano de pensamento está fortemente estruturado em torno das dimensões da linguagem, do conceito de centro e de hierarquia, bem como a ideia de espacialidade e temporalidade diversificadas, que geraram especificidades, que precisam ser estudadas. Tudo isso configura um instrumental importante para a compreensão da cidade e da arquitetura no nosso mundo contemporâneo.

NOTAS:

* O sufrágio universal masculino foi decretado em 1912, e apenas em 1945 admitiu a participação das mulheres.
** RAPONE 2014 página 64 destaca que a adesão de Gramsci foi publicada na Voce9 de outubro de 1913.
*** Glotologia, ciência que estuda comparativamente as diversas línguas, considerando suas origens e formação. (Sin.: glossologia, glótica.)
****RAPONE 2014 página57 destaca que Bartoli sempre destacava a mobilidade da vida da linguagem.

BIBLIOGRAFIA:

RAPONE, Leonardo - O jovem Gramsci: cinco anos que parecem séculos 1914-1919 - Editora Contraponto Rio de Janeiro 2014