Capa do livro da Editora Boitempo |
O livro publicado pela Boitempo Sobre a Questão Judaica de Karl Marx, que constou dos Anais Franco-Alemães de 1844, uma publicação de número único, e que foi escrito em 1843 quando o autor tinha apenas 25 anos é de uma atualidade enorme. Não apenas na sua relação, com as complexas relações do Oriente Médio atual entre Israel e a Palestina, mas também sobre uma celebração desmensurada sobre o direito de expressão de uma religiosidade particular e específica, bem como por uma certa absolutização do papel do Estado em nosso mundo contemporâneo. Acusado, muitas vezes de anti semita, por leitores diversos tais como: Robert Mishari, Francis Kaplan, Raimond Aron, e até mesmo Isaiah Berlim, "Zur Judenfrage" - Sobre a Questão Judaica - está longe de ser uma leitura desprovida de polêmicas. Como aliás, é grande parte da produção de Marx e Engels, que muitas vezes nos retiram de zonas de conforto automatizado, nos fazendo pensar a partir de uma complexidade em torno do significado da verdadeira emancipação humana. Na verdade, grande parte dessa produção literária nos arranca do conforto dogmático, nos ajudando a obter clareza quanto às nossas proposições e posicionamentos, nos dando capacidade crítica, vinculando a humanização à capacidade de desenvolvimento da auto consciência. Importante mencionar, que Marx quando criança conviveu com o antissemitismo da antiga Prússia, em 1824, com apenas seis anos de idade entrando para o Ginásio de Trier, sua cidade natal, seu pai Heinrich Marx, nascido Hirschel foi obrigado a abandonar o judaísmo por motivos profissionais e políticos. Afinal, os judeus estavam proibidos de assumir cargos públicos na Renânia. Isaiah Berlim que escreveu uma excelente biografia intelectual de Marx, que não pode ser vista como celebratória, identifica em Sobre a Questão Judaica, uma série de clichês antissemitas decorrentes dessa origem renegada pelo pai, e a uma aparência estigmatizada pelo seu meio. Marx, desde muito jovem carregou o apelido de "mouro" em função de sua cor de pele, diferente do padrão geral da Renânia. Misrahi acusa Marx de ser um oportunista, naquilo que viria a se constituir como a Alemanha atual, ajustando seus posicionamentos aos ventos dominantes;
"Nos anos 1840, toda a opinião pública alemã é antissemita e dá poder as forças reacionárias germano cristãs, enquanto Marx escreve seu artigo violentamente antissemita...; após 1847, um segundo movimento de emancipação judaica constitui-se na Alemanha, algumas leis liberais são promulgadas e Marx renuncia de fato a seu antissemitismo," BENSAID, 2010, pág.76
Nada mais injusto e arbitrário com o velho Marx. É importante destacar, que tanto no texto em questão, quanto também em sua correspondência, Marx sempre demonstrou profunda solidariedade a emancipação judaica, que para ele não deveria se restringir a expressão religiosa, mas principalmente a construção de uma cidadania consciente, muito além e muitas vezes, anti religiosa e Estatal. É interessante destacar, que vários autores de filiação judaica imputam o antissemitismo de Marx ao fato histórico de seu pai ter sido obrigado a renegar o judaísmo. O autor Daniel Bensäid menciona; Karl Löwith, Martim Buber e Arnoldo Toymbee, que numa redutora psicanálise de botequim mencionam um recalcado "ódio de si" ou pior "ódio do pai", que sempre levou Marx a repudiar a identidade comunitária judaica, declarando-se sempre universalista e internacionalista. E aqui, me parece emerge a contribuição fundamental do texto de Marx para o nosso tempo, a clara contraposição ao identitarismo limitador, de uma necessidade de compreensão de que a emancipação efetiva da humanidade demandaria a construção solidária inter povos. Por outro lado, sua revisão da celebração acrítica do Estado por parte de Hegel, já aqui inaugurada, marca sua concepção de que o Estado não representava o interesse comum, mas sim, o particular de uma classe específica, a burguesia. Numa carta de 13 de março de 1843 a Arnold Ruge, o editor dos Anais Franco Alemãs, Marx expressa seu engajamento pessoal em favor da igualdade cívica dos judeus, apesar de sua declarada repulsa á religião israelita. A questão importante aqui, me parece ser a constituição de um Estado efetivamente laico, onde todos os cultos podem se manifestar e são aceitos, sem que isso represente qualquer constrangimento ao cidadão de todas as crenças, livre em suas escolhas.
"Agora mesmo, recebo a visita do chefe da comunidade judaica; ele me pede para redigir para os judeus, uma petição à Dieta, e vou fazê-la. Por maior que seja minha repugnância pela religião israelita, a maneira de ver Bauer me parece demasiadamente abstrata. No que depende de nós, trata-se de abrir o maior número possível de brechas no Estado cristão e nele introduzir secretamente a razão. Ao menos é preciso fazer todos os esforços - e a exasperação aumentará, com protestos a cada petição que for rejeitada." MARX, 2010, pág. 76
O texto, Sobre a Questão Judaica foi escrito na cidade de Kreuznach, quando Marx e Jenny von Westphalen haviam acabado de se casar, no verão de 1843, logo após a censura e fechamento por ordem de Frederico Guilherme IV, rei da Prússia, do jornal de Colônia, a Gazeta Renana (Rheinische Zeitung), onde Marx era o editor chefe. Em outra carta, ao mesmo Ruge, Marx expressou toda sua decepção com a censura da monarquia constitucional da Prússia nessa mesma época afirmando que a Prussia, a Russia e o Império Austro Húngaro se constituíam como o eixo de reacionarismo da restauração monárquica, frente a Primavera dos Povos, capitaneada pela Revolução Francesa. Na verdade, me parece que o texto de Marx celebra uma parcela expressiva dos judeus da Europa Central daquela época, que eram assimilados à cultura germânica, e que num capítulo mais adiante serão caracterizados como judeus internacionalistas e bolcheviques. Segundo, Daniel Bensaid outros judeus da Europa Central como Bernard Lazare consideravam Marx vinculado a um certo materiaismo hebraico e a um messianismo revolucionário secularizado. Essa também é a posição de Michael Löwy no livro Redenção e Utopia: o judaísmo libertário na Europa Central, no qual alinha personalidades judaicas que se aproximaram do marxismo ou do anarquismo, rebeldes românticos, no ambiente da cultura germânica, tais como: Walter Benjamin, Martin Buber, Franz Kafka, Gustav Landauer, Ernst Bloch, György Luckács, Erich Fromm e Bernard Lazare. A Europa Central, que abarcava a cultura germânica e eslava era no século XIX, e ainda no começo do século XX uma folclórica novidade emergente invariavelmente vencida pelo conservadorismo, mas carregada de explosividade utópica. A mim me parece, que a crença inabalável de Marx numa evolução melhorada da humanidade quase que inevitável, típica do século XIX, que o envolvia num otimismo messiânico, que acabou por não se realizar.
"Assim que judeu e cristão passarem e reconhecer suas religiões tão somente como estágios distintos do desenvolvimento do espírito humano, como diferentes peles de cobra descartadas pela história, e reconhecerem o homem como a cobra que nelas trocou de pele, eles não se encontrarão mais em relação religiosa, mas apenas em uma relação crítica, científica, em uma relação humana." MARX, 2010, pág.34
Enfim, Marx me parece sempre excessivamente otimista com relação ao desenvolvimento histórico da humanidade, mas o que a nossa contemporaneidade deveria problematizar e considerar com Sobre a questão judaica é sua crítica ao Estado e às política identitárias, religiosas ou não, que nos levaram à atual crise do Oriente Médio.
BIBLIOGRAFIA:
ARON, Raymond - O marxismo de Marx - São Paulo ARX, 2003
BENSAID, Daniel - Na e pela história. Reflexões acerca de Sobre a questão judaica - São Paulo, Boitempo, 2010
BERLIN, Isaiah - Karl Marx - São Paulo Siciliano, 1991
LÖWY, Michael - Redenção e Utopia: o judaísmo libertário na Europa Central - São Pualo, Editora Perspectiva, 2020
MARX, Karl - Sobre a questão judaica - São Paulo, Boitempo, 2010