quarta-feira, 16 de maio de 2018

Abertos para os negócios, mas fechados para a vida, ou o esgotamento neo liberal

"A Economia é o método. O objetivo é mudar a alma." THATCHER, Margaret no Jornal Sunday Times em 07 de maio de 1988

"A atividade revolucionária só voltará a ser possível quando uma reconstrução ideológica radical puder se encontrar com um movimento social real." CASTORIADIS, Cornelius em Socialismo ou Barbárie 1974

De janeiro de 2018 para maio de 2018, Macri deixa de ser
exemplo para os neo liberais e vira social-democrata
Há um terrível mau estar na sociedade contemporânea, uma sensação generalizada de que os horizontes compartilhados se estreitaram, seja por parte dos fundamentalistas do Mercado, ou pelos ciosos defensores do Estado. De um lado e de outro há a emergência de uma dúvida paralisante, um claro retrocesso das expectativas, que já não são mais afirmadas com as mesmas convicções e certezas. Nos fundamentalistas do mercado a dúvida paralisante foi instalada mais recentemente, após a crise do capital disparada pela bolha imobiliária de 2008, enquanto para os ciosos defensores do Estado ela está instalada a mais tempo, desde a queda do Muro de Berlim em 1989. Por isso, ou seja pela maior proximidade temporal, uma série de dogmas dos fundamentalistas do mercado continuam sendo repetidos, e doutrinados por jornalistas, comentaristas e ensaístas na grande mídia, moldando o senso comum. O Estado é emdemonizado e o Mercado emdeusado, como se bastasse essa premissa para fazer rodar a prosperidade para todos, ou como se a lógica concorrencial entre pessoas, empresas, instituições fosse capaz de estabelecer a verdade, ou a própria razão. A partir de 2008 começam a emergir argumentos convincentes, de que esse neo liberalismo está se esgotando, principalmente no que se refere a radicalização da concentração de renda, que ele tem gerado.

Antonio Gramsci, filósofo italiano, nascido na Sardenha, no sul da Itália entendia o senso comum como o folclore da filosofia, não sendo algo rígido e imóvel, se transforma continuamente por noções científicas e opiniões filosóficas colhidas ao acaso. O senso comum envolve ao final uma concepção de vida, parâmetros de comportamento, e a moral pessoal mais difusa, que está em constante disputa pelas construções ideológicas. Há no senso comum, na concepção gramsciana, uma recepção passiva como um estágio anterior à construção ideológica, que pressupõe uma construção ativa do grupo dirigente-intelectual, e que opera além da espontaneidade e mais ligado ao direcionamento. Daí a importância dada ao jornalismo por Gramsci, que foi sua profissão antes do cárcere do regime fascista, por considerar esse canal um formador do senso comum, em sua doutrinação diária. Há nessa construção uma interessante premissa, uma relação dialética entre a espontaneidade do senso comum, e sua doutrinação ideológica pelo grupo dirigente-intelectual, uma relação de dupla contaminação. Gramsci entendia as massas em suas experiências cotidianas, como portadoras e construtoras do senso comum, mas também as entendia como uma possibilidade de um esclarecimento iluminador, ou de poder estar submetida a mais torpe manipulação. O senso comum contém uma promessa de transformação;

"Em geral, trata-se da ideologia mais difundida e com frequência implícita de um grupo social de nível mínimo. Por isso, ele se relaciona dialeticamente com a filosofia, isto é, com o segmento alto da ideologia, próprio aos grupos dirigentes dos vários grupos sociais. Da mesma forma, também uma força política que se coloque ao lado dos subalternos deve instaurar com ele uma relação dialética para que ele seja transformado e se transforme, até alcançar um novo senso comum, necessário no âmbito da luta pela hegemonia." Quaderno 3 LIGUORI (org.) 2017 página723

Daí decorre sua distinção entre ideologias progressistas, que propunham a mudança de comportamentos e concepções, arrancando os indivíduos de sua rotina alienante, e as ideologias conservadoras, que mantinham práticas e pensamentos cristalizados, arraigados, e arcaicos. A concepção de Gramsci da ideologia envolve uma nova acepção em relação a usada por Marx, que entendia o termo como uma consciência invertida ou distorcida do real. Para Gramsci não era possível escapar da clivagem ideológica, pois o mundo estava cindido em vivências portadoras de interesses e parcialidades. As ideologias vencedoras se naturalizam nas práticas, concepções e visões de mundo socialmente compartilhadas por todos, configurando uma hegemonia. O conceito de hegemonia envolve a ideia de convencimento e coerção natural e socialmente aceito por todos das práticas e concepções, que norteam uma determinada ideologia. As ideologias contra-hegemônicas precisam mobilizar esforços intelectuais e doutrinários capazes de romper o convencimento geral das ideologias vencedoras, retirando seu convencimento inercial, que muitas vezes se confundem com a própria racionalidade. Há em Gramsci, a constante afirmação de uma possibilidade de prática política esclarecedora e iluminadora da realidade, a partir da emergência de intelectuais orgânicos com capacidade de refletir sobre as origens da dominação nos diversos extratos sociais.


"A classe dominante tem sua própria estrutura ideológica, isto é, a organização material voltada para manter, defender e desenvolver a frente teórica ou ideológica [...] A imprensa é a parte mais dinâmica desta estrutura ideológica, mas não é a única: tudo o que influi ou pode influir sobre a opinião pública, direta ou indiretamente, faz parte desta estrutura. Dela fazem parte: as bibliotecas, as escolas, os círculos e os clubes de variado tipo, até a arquitetura, a dispoição e os nomes das ruas[...] a ideologia como lugar de constituição da subjetividade coletiva [...] cada camada social tem sua consciência e cultura, isto é sua ideologia." Quaderno 3 LIGUORI (org) 2017 página400

Nos últimos tempos presenciamos uma doutrinação neo liberal baseada em quatro princípios estruturantes Em primeiro lugar, o mercado não se apresenta como um dado natural, mas como algo que deve ser construído pelo Estado, onde a ordem mercantil deve estruturar todas as relações societárias. Em segundo lugar, a ordem do mercado não reside mais na troca, mas na concorrência, que não é mais pensada como nos pensadores clássicos como um nivelamento equalizador, mas perpassado por desigualdades entre diferentes unidades de produção. Em terceiro lugar, o Estado não é mais o guardião dessa ordem, mas é também organizado a partir da lógica da concorrência, se obrigando a ser uma empresa. Em quarto lugar, a imposição da universalização da concorrência molda o Estado empreendedor e o indivíduo-empresa, ampliando uma subjetivação onde declina a solidariedade, e se amplia o individualismo isolacionista. Com isso percebe-se um declínio e um menosprezo da lógica negocial da política, e a afirmação tecnocrática da rentabilidade e da produtividade. A administração pública assume um caráter tecnocrata e rentista, em detrimento de considerações de diálogos políticos e sociais, fazendo com que doentes e estudantes paguem por um serviço cujo o benefício é visto como estritamente individual.

Com isso se desenvolve uma simplificação emburrecedora, que considera as atividades contemplativas e sem uma produtividade imediata, como a arte e a cultura, como supérfluas e submetidas a brutalidade da avaliação apenas da sua eficácia. Há um desencanto com a democracia e seus debates intermináveis, e uma cobrança pela produtividades dos dirigentes, que não mais são reconhecidos por sua capacidade aglutinadora, mas apenas pela sua capacidade gerencial. O conflito e o pluralismo passam a ser vistos como paralisadores das decisões, e portanto  como anti producente, justificando-se as posições de Milton Friedman e Friedrich Hayeck com relação a tirania da maioria na ditadura de Pinochet no Chile. O Estado de exceção passa a ser estado permanente, que não foi planejado, mas simplesmente imposto por necessidades técnicas impostas pelos dispositivos fiscais e financeiros. Mas apesar disso tudo segue a nossa sina de acreditar numa regeneração do mercado ou da concorrência e formas colaborativas ou solidárias;


"Mas prognosticar o advento iminente de um capitalismo bom, com normas de funcionamento saneadas, ancorado duradouramente na economia real, que respeita o meio ambiente, preocupa-se com as necessidades das populações, e - por que não - zela pelo bem comum da humanidade, isso é, com toda a certeza, senão uma história edificante, ao menos uma ilusão tão nociva quanto a utopia de um mercado autoregulador." DARDOT  e LAVAL 2016 página386

O neo liberalismo nada mais é do que o pseudo mercado autoregulamentado subordinado pelas finanças internacionais, que possuem uma lógica sempre contingente e singular impossível de ser prevista. Daí a emergência do termo estratégico, que denuncia o caráter sempre precário e contingente dos objetivos, que devem se submeter às condições sempre mutantes dos ditames financeiros e rentistas, que sempre se sobre impõe-se aos argumentos da solidariedade, ou mesmo do trabalho. Há um claro declínio da crença da capacidade de planejar, projetar e prever, deixando a sociedade entregue ao contingente e ao inesperado, que na verdade são estratégias impostas pela lógica rentista e financeira. O produtivo deu lugar ao financeiro, que sobre determina as práticas e decisões mais usuais e cotidianas condicionando essas a um horizonte de tempo de curto prazo, aonde o ciclo especulativo se realiza de forma plena. Essa ordenação ideológica foi obtida de forma dissimulada, conquistando o senso comum por imposição, trancando o sujeito numa jaula de aço que ele mesmo construiu. Dessa condição deriva que o neo liberalismo está intrinsecamente ligado ao neo conservadorismo, pois um elege como unidade modelo de funcionalidade a empresa, enquanto o segundo aponta para a família;

" Na realidade, entre neoliberalismo e neoconservadorismo existe uma concordância que não é nada fortuita: se a racionalidade neo liberal eleva a empresa a modelo se subjetivação, é simplesmente porque a forma-empresa é a forma celular de moralização do indivíduo trabalhador, do mesmo modo que a família é a forma celular da moralização da criança." DARDOT e LAVAL 2016 página388

A capacidade de penetração dessa doutrina está articulada pela empresa e pela família, que passaram a ser o ponto ou unidade de catequese das mentes e almas na interseção complementar entre neo liberalismo e neo conservadorismo. O objetivo é a mercantilização generalizada, a concorrência incessante, e a eficiência não mais produtiva mas financeira, que começam a ser doutrinadas por parentes ou por colegas concorrentes, desde a mais tenra idade. Como se percebe, o neo liberalismo não é puramente econômico, mas na verdade comportamental, e portanto ideológico, condicionando os mundos da vida de Habermas a uma prática eleita como nova racionalidade, que precisa ser denunciada como farsa. A manchete estampada como figura nesse texto demonstra essa capacidade camaleônica do neo liberalismo e neo conservadorismo, de constante condenação do Estado, da solidariedade, da consciência de grupo, da social democracia e da repetida celebração da Empresa, da concorrência, do equilíbrio da renda, e do esforço solitário.

Na verdade, o socialista Saint Simon já pregava a abolição do Estado, a partir de uma distinção fundamental entre governo e administração, onde o primeiro pretende dirigir a ordem social, enquanto o segundo se refere a uma aptidão de conseguir que os outros obedeçam. A distinção apontava para o caráter inevitavelmente arbitrário do governo, afinal comandar outros homens é sempre arbitrariedade. Enquanto, que nas sociedade industriais modernas emergem funções diretivas legitimamente constituídas pela eficácia e cientificismo da divisão do trabalho, socialmente reconhecido.

"No saint-simonismo, o marxismo retornará duas ideias chaves: primeiro, que o governo tem, antes de tudo, uma função de polícia que repousa essencialmente sobre a violência e a coerção; segundo, que o governo regulado pela verdade é aquele que tende a sua própria supressão na administração das coisas." DARDOT  e LAVAL 2016 página395 

O principal questionamento a esta forma de subjetivação do neo-sujeito é a identificação-construção de um comum, imune a comercialização e fundamental a preservação e sustentação do próprio indivíduo. Esse comum não se localiza no Estado, mas naquilo que existe e que resiste a comercialização, pode ser o patrimônio natural ou construído, como as florestas, a água, ou o espaço público das nossas cidades, ou o conhecimento livremente compartilhado. O comum precisa ficar imune ao Estado, pois esse é clivado de interesses de grupos, que ao conquistá-lo usam o monopólio da violência para privatizar o comum. Daí o esforço de autores como NEGRI e HARDT 2016, na constituição de um novo sujeito, que não é mais o operário da industria fordista, mas a multidão sem propriedades, sem possibilidades rentistas, que vivem apenas de seu trabalho. A localização ontológica de uma classe universal capaz de articular socialmente um discurso emancipador do sujeito contraposto a ideologia neo liberal e neo conservadora ainda está em gestação. Há uma passagem em Gramsci, no caderno 25 que ilustra de forma clara a questão da identificação dos subalternos. Gramsci cita uma história de Tácito historiador do antigo império romano, na qual um senador propôs que todos os escravos vestissem um uniforme para que fossem claramente identificados. O Senado Romano recusou a proposta, alegando que tal operação faria com que os escravos tomassem consciência de que eram a maioria, representando um perigoso risco para o Império Romano. Grande parte do mérito da filosofia da práxis, defendida por Gramsci está exatamente na construção dessa identidade, conferida por um uniforme ou identidade subalterna, que se constitui na maioria dispersa do nosso mundo.

A questão espacial é fundamental em Gramsci, questões como a periferia e centro, supremacia e subalternidade, dirigidos e dirigentes, senso comum, folclore e ideologia perpassam os pensamentos do filósofo da Sardenha. Essa região, a Sardenha no sul da Itália era agrária, camponesa e pobre em relação ao norte industrial, urbano e rico, a própria Itália na questão do Risorgimento com uma revolução burguesa, com uma participação apenas difusa das massas revela essa face periférica do país com relação a França e a Inglaterra. O americanismo e fordismo, que também fazem parte das suas reflexões e constituem uma outra face da revolução passiva, no seu avanço sobre a Europa, revelam a presença dessa realidade espacial, sempre hierarquizada entre centro e periferia. A virtude desse pensamento está em entender a capacidade e o potencial de transformação das periferias e dos subalternos de se rebelar, de assumir uma identidade, e se assumir como cidadão condição fundamental para reverter a supremacia neo liberal.

BIBLIOGRAFIA: 

DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian - A nova razão do mundo, ensaio sobre a sociedade neoliberal - Editora Boitempo São Paulo 2016

DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian - O comum, ensaio sobre a revolução no século XXI - Editora Boitempo São Paulo 2017

LIGUORI, Guido e VOZA, Pasquale (orgs.) - Dicionário Gramsciano - Editora Boitempo São Paulo 2017

NEGRI, Antonio e HARDT, Michael - Bem estar comum - Editora Record Rio de Janeiro 2016