segunda-feira, 24 de maio de 2021

Apontamentos da Aula 2: Arquitetura, Cidade, Filosofia e os 4 eixos do Congresso UIA2021Rio

 


A segunda aula do curso, Arquitetura, Cidade, Filosofia e os 4 Eixos do Congresso UIA2021Rio identificou a centralidade da questão habitacional nas grandes cidade contemporâneas, encarando-a como um direito, mas do que uma mercadoria. A centralidade dessa questão é por sua capacidade de transmitir de forma convincente, ao conjunto da sociedade, a ideia de que nenhum agente ou ator será deixado a margem, ou de lado. A ideia de um projeto de inclusão, para a cidade brasileira, e não mais de exclusão, como vimos na primeira aula. A ideia, de que a prática do planejamento e da projetação envolve uma dimensão de positividade transformadora, aonde o fazer se volta para a práxis, para a operacionalização dos desejos que foram socialmente construídos. Apresentou-se também a dimensão propositiva das ações de plano e projeto, que se arriscam na formulação de arranjos localizados no futuro, aonde declina a descrição e emerge a prescrição. O enfrentamento do vir-a-ser, como uma forma de interpretar o contexto com uma contribuição que se aproxima da arte e da ciência, na sua construção argumentativa, buscando cooptar os usuários.

“A história é uma comparação implícita entre o passado e o presente...E, por que seria ilícita a elipse quando a comparação é feita com uma hipótese futura, ao passo que seria lícita se feita com um fato passado... Se os fatos sociais são imprevisíveis e o próprio conceito de previsão é nada mais do que um som, o irracional não pode deixar  de dominar e toda organização de homens é anti história é um preconceito.” GRAMSCI 2001 página176

O tema habitacional da cidade brasileira é problematizado a partir da condição de subalternidade da cultura no Brasil, o “complexo de vira-latas” do nosso dramaturgo maior, Nélson Rodrigues, que foi apresentado na primeira aula. Um tema que permanece em aberto, e que historicamente foi encarado de uma maneira euro cêntrica, sem olhar para as reais condições alcançadas pela população precariada nas cidades brasileiras, que auto construíam seus abrigos nas favelas. O alijamento do mercado imobiliário formal, que mesmo nos momentos de maior produção de Habitação de Interesse Social (HIS), não conseguiu alcançar a grande maioria da nossa população. Atestam essas condições, não só as favelas mais as ocupações nos centros das cidades brasileiras. O Edifício Wilton Paes de Almeida, construído em (1960-68), de 24 andares, no centro de São Paulo, do arquiteto Roger Zmelkov, tombado pelo Conselho do Patrimônio (COPRESP) da cidade em 1992, veio ao colapso por incêndio devido suas precárias das instalações elétricas. No Rio de Janeiro, também o antigo Edifício do INSS no centro da cidade, ao lado da Assembleia Municipal é atualmente a Ocupação Manoel Congo, que desde de 2008, luta por sua regularização. Segundo a Fundação João Pinheiro de Belo Horizonte em Minas Gerais, o déficit habitacional no Brasil, chega a 6,9 milhões de domicílios, mas num paradoxo há no Brasil 6,05 milhões de imóveis desocupados. Certamente, além da subalternidade, o tema habitacional nas cidades brasileiras está refém da nossa cultura perpassada pelo Patrimonialismo exarcebado, e pela Absolutização da Propriedade Privada. Uma condição cultural, que bloqueia e represa o desenvolvimento mais inclusivo das cidades brasileiras, que apesar de desfrutarem de uma lei - o Estatuto da Cidade - , que representa um grande avanço, não encontra sua aplicação naturalmente introjetada.

“Foi, portanto, precisamente esta aguda falta de habitações, este sintoma da revolução industrial que se completava na Alemanha, que nessa altura encheu a imprensa com dissertações sobre a «questão da habitação» e deu azo a todo o tipo de charlatanarias sociais.” ENGELS 2015

O trecho acima foi retirado da A Questão da Habitação, que foi escrita por  Friedrich Engels entre maio 1872 e janeiro 1873, para o jornal Volkstaat em resposta a uma série de artigos que foram publicados nesse jornal de Leipzig, num debate sobre o alojamento das classes precarizadas dentro das cidades industriais europeias, que na ocasião explodiam de tamanho. Portanto, o texto faz mais de um século, e já apontava o significado da absolutização do Direito de Propriedade no solo da cidade, para as populações precarizadas, e, como tal condição bloqueava o acesso a essa benfeitoria, a moradia. O Brasil, assim como outros países na periferia do sistema capitalista possui parcelas expressivas da sua população, que não conseguem acessar pelo mercado formal, a condição da habitação. As marcas do colonialismo, do patrimonialismo, do patriarcado permanecem operando bloqueando uma reflexão própria e adequada às condições locais. Dentro dessa questão, se pensarmos sobre as favelas e os loteamentos irregulares, formas de promoção do acesso a moradia nas sociedades da periferia do capitalismo, nas cidades brasileiras, percebe-se a permanência do colonialismo.

"Ao analisar todos os orçamentos coloniais de 1925, por exemplo, constata-se que as colônias francesas tinham, em média, apenas dois fucionários públicos para cada mil habitantes, mas que cada um desses funcionários era remunerado cerca de dez vezes mais do que o nível de renda nacional médio por adulto nas colônias; já na metrópole, no mesmo período contavam-se cerca de dez funcionários para cada mil habitantes, com cada um ganhando o dobro da média nacional por habitante.”  PIKETI, 2020 pág.253

Após relembrar temas da primeira aula, tais como; o discurso de Ailton Krenak, que nos relembra a diversidade da humanidade, e a necessidade de ouvir as práticas e pensamentos dos povos originários da América. Ou, as diferentes leituras sobre a performance do século XX, a partir de dois livros; A era dos Extremos, o breve século XX 1914-1991 de Eric Hobsbaun 1995, e, O Longo século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo de Giovanni Arrighi 1996. Foi apresentada uma conceituação cara ao filósofo do início do século XX, na Itália, Antônio Gramsci (1891-1937), que caracterizou os intelectuais como tradicionais e orgânicos. Uma ideia fundamental no enfrentamento do colonialismo, que é visto pelo filósofo como um processo intrínseco da política, a expressão dos grupos subalternos, que ao se constituírem como identidade, elegem seus representantes. Para Gramsci, os intelectuais orgânicos eram membros vinculados às condições periféricas e subalternas, que ao buscar sua identidade ou auto expressão elegiam seus pensadores. Há nessa postura, uma consciência do desenvolvimento capitalista, que sempre nos remete ao confronto-complementariedade entre o arcaico e o moderno, aonde as duas condições não são apenas polos antagônicos, que se anulam, mas realidades que tomam conhecimento mútuo, e muitas vezes exploram sua proximidade de forma complementar, numa lógica econômica e geográfica interdependente. No caso particular da Itália por exemplo, as populações do sul da península ou da sua Sardenha, que migravam em direção às cidades industriais do norte (Turim e Milão) fragilizados em busca de emprego. Ou como no caso do Brasil, aonde populações nordestinas migraram e migram para São Paulo em busca de trabalho, e são constantemente fustigadas na sua condição de subalternos. A questão dos intelectuais orgânicos, que nascem das condições objetivas da existência do precariado, e que conseguem superar a sobrevivência, problematizando as razões de sua existência precária. Capacidade de formulação de uma narrativa auto-descritiva, ao mesmo tempo inaugural, construtora e produtora da Identidade e da Representação.

“...processo histórico de formação das diversas categorias de intelectuais, que é observado em todo grupo social, por nascer na base originária de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe conferem homogeneidade e consciência de sua função no campo econômico.” GRAMSCI 1934 Q4

A analogia utilizada para exemplificar essa condição no Brasil foi a diferença entre intelectuais como Antônio Cândido (intelectual tradicional) e Marielle Franco (intelectual orgânico), portadores de situações sociais, que condicionaram seu pensar. Mas a vertente aberta por Gramsci continua operando pelo mundo, e produzindo afilhados diferenciados. O historiador Indiano Ranajit Guha (1923-) estabelece na Universidade Sussex, na Inglaterra um grupo de pesquisadores em 1959, denominado Subaltern Studies. Abordagem anti essencialista e multi polar, baseada em Gramsci, com sua construção de entender o sistema capitalista a partir de um centro, que vulnerabiliza parcelas expressivas da população de todo o mundo. A também pesquisadora indiana, Gayatri Chakravorty Spivak (1942-) desenvolve nos EUA, na Universidade de Columbia, associada ao grupo do Subaltern Studies, escrevendo em “Pode o subalterno falar?” (versão em inglês 1988 e português em 2010-UFMG), usando Gramsci e o filósofo franco-magrebiano, Jaques Derrida (1930-2004). Ela é crítica literária, sendo sua tese de doutorado sobre o poeta irlandês Yeats, orientada pelo renomado Paul de Man. A construção da professora Spivak diferencia o falar por, do representar alguém, mostrando-nos como a representação política e simbólica envolve recursos complexos de linguagem.

"Sua crítica [de Spivak], de base marxista, pós-estruturalista e marcadamente desconstrucionista, frequentemente se alia a posturas teóricas que abordam o feminismo contemporâneo, o pós-colonialismo e, mais recentemente, as teorias do multiculturalismo e da globalização.“ ALMEIDA, Sandra Regina Goulart (UFMG – tradutora)

Essas propostas partem do Caderno 25 dos Q. di Carcieri de Gramsci, um dos poucos com título, que recebe clara denominação de; “Às margens da História: História dos Grupos Sociais Subalternos”. Há uma importante menção nos estudos da professora Spivak, a 11ª Tese sobre Feuerbach de Karl Marx; “Os filósofos até então pretenderam interpretar o mundo, hoje é mais importante modifica-lo.” Portanto, seu intento aparece em princípio como pensar a teoria crítica como uma prática intervencionista, engajada e contestatória. O livro; “Pode o Subalterno falar?”, assume um caráter  dialógico dos atos de escuta e fala, uma espécie complexa de “...reprodução de sua submissão à ideologia dominante.” Num comentário sobre um texto clássico do Derrida; A Política da Tradução, SPIVAK menciona a dificuldade de “fazer falar o texto de outrem, um processo contínuo de adiamentos, aproximações e sobretudo negociações.” Numa poderosa analogia com os procedimentos de plano, projeto e gestão do objeto a longo prazo, afinal os arquitetos operam materializando desejos de outrem. SPIVAK diferencia o Falar pelo Outro, da distinção clássica entre assumir o lugar do outro (falar por) e representar o outro (performance). Afinal, o “Sujeito subalterno é irredutivelmente heterogêneo..., nenhum ato de resistência pode ocorrer em nome do subalterno sem que esse ato esteja imbricado no discurso hegemônico.”

“Por "complexo de vira-lata" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima.” Nelson Rodrigues

No Brasil, a presença dessa vertente também se manifesta de forma articulada, tendo os gramscianos brasileiros grande expressividade no pensamento internacional. Há uma grande diversidade de gramscianos, começando por Carlos Nelson Coutinho (1943-2012), tradutor dos Quaderni di Carceri e formulador de um dos mais importantes artigos para a esquerda brasileira; “A democracia como valor universal” no final dos anos 70, que se afastava das formas de conquista violenta do poder, e é fortemente influenciado pelas posturas do PCI e do euro comunismo de então de Enrico Berlinger. O Leandro Konder (1936-2014) filósofo e professor da UFF e da PUC-Rio, escreveu a “Questão da Ideologia”, no qual percorre a abordagem de uma série de pensadores sobre a estruturação da compreensão do real, e a dissimulada presença ideológica. Luiz Werneck Vianna (1938-), sociólogo e professor da Puc-Rio escreveu a “Revolução Passiva, iberismo e americanismo” no Brasil, analisando a transformação da sociedade brasileira de escravista e agrário exportadora, em competitiva, urbano e industrial, numa transição acomodada e articulada de forma autoritária entre as elites apenas por cima, e sem envolvimento popular. E, por último, Marcos del Roio (1954- ) professor da UNESP no campus de Marília SP, organizou o livro Gramsci, Periferia e Subalternidade de 2017, e escreveu Gramsci e Emancipação do Subalterno 2018, destacando a identidade sarda do filósofo italiano, e seu combate ao positivismo. É também presidente da International Gramsci Society Brasil , e defende a tese de que o movimento operário no Brasil era americanista, no seu pragmatismo. DEL ROIO 2017, crítica a segmentação da ordenação do ensino público no mundo, que enfatiza aulas técnicas para os trabalhadores, enquanto o aprendizado humanista era destinado a burguesia e pequena burguesia. De um lado atividades mecânicas e pragmáticas e de outro a preparação para a administração e gerência pública. Em claras aproximações com o pensamento de Paulo Freire, auto-educação e liberdade; escola de direção e administração do processo fabril, transmissão de uma cultura operacional próxima e já acumulada, mas ainda subalterna, para buscar sua superação. Estamos, afinal diante de uma pedagogia da auto superação, um aprendizado desenvolvido por Gramsci na sua experiência com o jornal de Turim, A Ordem Nova.

“A escola organizada pelo L´Ordine Nuovo começou a funcionar em fins de 1920, quando o movimento dos conselhos de fábrica começava já a declinar, vítima dos ataques convergentes do Estado.... não tinha a intensão de preparar os trabalhadores para um mundo a eles estranho. Pelo contrário, a ideia era reforçar o princípio da solidariedade...A ideia de que o educador se deixa educar..., para a autogestão da produção e para a administração pública, entendida como auto-governo.” ROIO 2018 página121

O que nos leva a refletir sobre a linguagem humana, sua interação com o mundo real, sobre o trabalho humano e sua capacidade de representar o agente realizador. A linguagem de certa forma surge do distanciamento entre homem e natureza, afastando-o das coisas, tornando possível a nomeação delas. Enquanto, os animais vivem imersos na natureza, o homem cria um mundo artificial. A cidade e a arquitetura são os frutos da artificialização do mundo pelo homem. Emergem para nossa consciência três partes da experiência humana; O REAL: modo indicativo (o que existe), O ÉTICO: o modo imperativo (o que deveria existir), O POSSÍVEL: o modo subjuntivo (o que poderia existir). Nessas três possiblidades de abordagem do real, a humanidade desenvolve sua percepção do que existe, e imagina-se como indutor ou dedutor do que existe. Na sua interação com os objetos, produzidos por ele mesmo reflete que os artefatos não agem, mas paradoxalmente muitas vezes determinam nossas ações. As coisas definem como devem viver os indivíduos aos quais elas deveriam servir. Inversão entre sujeito e objeto, entre meio e fim, gerando a alienação. Expressão e mímese são faces do mesmo processo: toda expressão é uma mimese do sujeito, e toda mimese é uma expressão do objeto.

“Todas as artes expõe a relação fundamental entre homem e mundo – a relação de inerência: o sujeito é um momento do objeto. Mas enquanto a arquitetura expõe essa relação de um ponto de vista objetivo (o mundo contém o homem), as demais artes a expõe de um ponto de vista subjetivo (o homem está contido no mundo).” PULS 2006

O que também nos traz a reflexão de ARGAN, sobre a dimensão crítica do projeto; “Não se projeta nunca para, mas sempre contra alguém ou alguma coisa”. O que não significa projetar para si mesmo, mas imaginar e engendrar um outro mundo, que nasce da espacialidade, mas aponta para novos arranjos societários inexistentes e inesperados. É claro, que o planejamento e a projetação podem servir ao pensamento conservador, como aliás serviram historicamente no Brasil, para um alinhamento exclusivista e elitista. Toda classe dominante precisa atender parcialmente os interesses de algumas classes dominadas e desatender os interesses de outras. A obra é um discurso no qual um sujeito coletivo pede ou exige que o outro assuma uma posição que lhe seja favorável. O primeiro apela a um interlocutor, método dialógico, buscando persuadi-lo da justeza da obra representada no plano ou no projeto. O planejamento e a projetação não são apenas atividades científicas, mas também presumem ações artísticas, aonde o que se pretende é uma adequação completa ao contexto, aonde não há apenas a objetivação do espaço, mas o seu ordenamento sensível. A arte não é nem universal nem singular, ela é necessariamente particular, mostrando-nos como naquele momento foi possível se alcançar uma síntese reveladora. Segundo, o juízo um ente será considerado belo se agradar a muitos indivíduos em diferentes gerações e tempos, servindo ao mesmo tempo como Contemplação e Objetividade do processo de construção do humano. Na arquitetura e no urbanismo, as diferenciações tradicionais entre o Juízo do gosto puro e o Juízo do gosto aplicado estão misturados, determinando a indivisibilidade entre a Contemplação e a Objetividade. Tanto no planejamento, como na projetação o processo se encontra aberto, pois invariavelmente, ao se iniciar dispara a definição do que será, deixando seus participantes diante de perplexidades. Há um constante alcance de Conflitos eternos e Consensos episódicos, que se sucedem, mostrando-nos a natureza diversa da condição humana, em seus vários aspectos e conhecimentos.

“A obra não manifesta apenas a consciência da classe de origem (produtora), mas também a da classe de destino (consumidora)” PULS 2006

Mas não podemos imaginar, e nos deixar envolver pela crença iluminista de progressão contínua e unidirecionada das realizações humanas, uma crença cega no progresso tecnológico e cientificista, que nos trouxe a uma face perversa da modernidade. Os totalitarismos e a imposição científica da tecnocracia foram definitivamente abalados por um livro de 1948 de Max Hockheimer e Theodor Adorno, A Dialética do Esclarecimento, fragmentos filosóficos. Nele a pretensão ocidental e eurocêntrica de mostrar se como o núcleo duro da civilização foi desmascarada pelos dois filósofos da Escola de Frankfurt, asilados da Alemanha na Califórnia, pela ditadura de Hitler. A Alemanha, o país com maior grau de alfabetização na Europa e com a maior população universitária havia sido envolvida pela barbárie nazista, desembocando na unidirecionalidade ansiosa da técnica, desprezando a diversidade. Adorno e Hockheimer retrocedem ao mito de Ulisses ao atravessar o Mar de Sereias, nos relatos da Odisséia, resistindo ao seu canto amarrado ao mastro da embarcação, obrigando seus marinheiros a vedar seus ouvidos. É a metáfora da fruição e contemplação exclusiva da arte pela classe dirigente, condenando as categorias braçais dos marinheiros ao obscurantismo, levando o mundo em direção ao totalitarismo, que tem origem "naquela auto afirmação unitária". A pretensão ocidental de ser a representação única da civilização humana era desbancada pelos dois filósofos da Escola de Frankfurt, desiludidos com o movimento do Iluminismo. 

"Cantar a ira de Aquiles e as aventuras de Ulisses já é uma estilização nostálgica daquilo que não se deixa mais cantar, e o herói das aventuras revela-se precisamente como o protótipo do indivíduo burguês, cujo conceito tem origem naquela auto afirmação unitária que encontra seu modelo mais antigo no herói errante." ADORNO e HORKHEIMER 1985 página53

A partir desse ponto, a aula enveredou por mapear o desenvolvimento da Epistemologia do Projeto, desde o século XIX, com a emergência das cidades industriais até a nossa contemporaneidade com a emergência da acessibilidade das massas a informação e a educação. A partir de autores como; August Welby Northmore Pugin (1834-1875), John Ruskin (1819-1900), e William Morris (1834-1896) mostra-se como além da nostalgia pelo medievo, esses arquitetos buscavam a reconstrção do artesão de obra, como figura central no canteiro. Esses autores enfatizavam a primazia da esfera pública na construção do ambiente humano, afastando-se de um fazer personalista e demiúrgico, celebrando um saber compartilhado, que deve ser reforçado perante as ameaças da produção em massa, anônima, sem qualidade e atributos. Wiliam Morris, que era socialista assinalava a necessidade de construir um ambiente colaborativo e didático nos canteiros de obra, como um esforço civilizatório; “Não podemos nos furtar da arquitetura, uma vez que fazemos parte da civilização.” Não se imaginava apenas a colaboração dos especialistas na execução da obra, mas se pensava também em trazer à participação os usuários, com suas demandas e desejos. Há uma crítica moral à sociedade, uma denúncia romântica da arte eclética e acadêmica, da desumanização do maquinismo e do empobrecimento do espaço e do território na era industrial. Novo discurso social da arquitetura ligado a ampliação solidária e civilizatória do “Comum” e distinguindo duas maneiras de abordar o desenho; uma formal-compositiva e outra ético-política. Na verdade, esses autores são fundadores de uma tradição anti maquinista, culturalista e humanista, que vincula a concepção do espaço e a arte a ordenação social e alcance da cidadania. Ultrapassando o século XIX e chegando até nós por autores mais contemporâneos como; Patrick W. Geddes, Lewis Munford, Jane Jacobs, Bernard Rudofsky, Christopher Alexander e Carlos Nelson dos Santos. Há aqui a recuperação da arquitetura vernácula, da auto construção e dos argumentos ecológicos ligados a formação do ambiente humano, que se ergue a partir da solidariedade entre os agentes e atores da cidade.

Na verdade, a aula se fecha com a afirmação e celebração do "complexo de vira latas" de Nelson Rodrigues, como uma expressão sintonizada com o slogan do Congresso UIA2021Rio; "Todos os Mundos; Um só Mundo; Arquitetura 21" no sua celebração da diversidade cultural do planeta. Sem dúvida, há um valor imaterial na cultura brasileira, que nós não damos conta, afinal; não existe um Brasil puro sangue, não existe um povo brasileiro, mas existe uma idéia de Brasil. Desde cedo somos acostumados à diversidade, somos na verdade mineiros, paulistas, cariocas, paraibanos, baianos, pernambucanos, paraenses, índios, negros, japoneses, etc... Somos localistas e, muitas vezes como em Minas Gerais somos na verdade da Zona da Mata, do Triângulo, do Sul, do Centro ou do Jequitinhonha.  Talvez a nossa constante auto ironia, o nosso complexo de vira latas seja o valor imaterial maior da cultura brasileira. Uma cultura cosmopolita, pois está sempre interessada em ouvir o outro. Falta-lhe se colocar numa posição de potência de outra ordem, não mais capitalista, racista, patrimonialista, ou colonialista. O Brasil precisa acordar do cansaço da verticalização de suas instituições, quer se transformar numa diversidade horizontal, igualmente empoderada. O Plano e o Projeto desempenham papel fundamental nesse novo Brasil.


BIBLIOGRAFIA:

ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max - Dialética do Esclarecimento, fragmentos filosóficos - Editora Jorge Zahar Rio de janeiro 1985

ALBERTI, Leo Baptista - De arquitetura, a arte de construir: tratado de arquitetura e urbanismo - Editora Hedra São Paulo 2012

ARRIGHI, Giovanni - O Longo século XX: dinheiro, poder e as origens do nosso tempo - Editora Unesp São Paulo 1996

BRANDÃO, Carlos Antonio Leite - Os modos do discurso na teoria da arquitetura - disponível em www.arq.ufmg.br/ia/teoria.html 2006

ENGELS, Friedrich - Sobre a questão da Habitação - Editora Boitempo São Paulo 2015

GRAMSCI, Antonio - Cadernos do Cárcere - Civilização Brasileira Rio de Janeiro 2001

HABERMAS, Jürgen - Arquitetura Moderna e Pós Moderna - Revista Novos Estudos do CEBRAE setembro de 1987

HOBSBAWN, Eric - Era dos Extremos, o breve século XX, 1914-1991 - Editora Companhia das Letras São Paulo 1995

PIKETI, Thomas - Capital e Ideologia - Editora Intrínseca Rio de Janeiro 2020

PULS, Maurício - Arquitetura e Filosofia - Editora Anna Blume São Paulo 2006

ROIO, Marco del - Gramsci e Emancipação do Subalterno - Editôra UNESP São Paulo 2018

SANTOS, Boaventura de Souza - O futuro começa agora, da pandemia à utopia - Editora Boitempo, São Paulo 2021

SPIVAK, Gayatri Chakravorti - Pode o Subalterno falar? - Editora UFMG Belo Horizonte 2010

TAFURI, Manfredo - Teorias e História da Arquitetura - Editorial Presença Lisboa 1981