segunda-feira, 30 de setembro de 2019

As aulas de Arquitetura, Cidade, Filosofia no IAB-RJ

A Escola de Atenas quadro de Rafael Sanzio
A experiência das aulas de Arquitetura, cidade, filosofia ministradas na sede do IAB-RJ nas primeiras semanas de setembro de 2019, se constituíram numa experiência notável envolvendo o pensamento de oito filósofos, desde a antiguidade clássica grega até a contemporaneidade. A eleição dos oito filósofos, que foram; a)Platão (*Atenas 428/427 A.C. + Atenas 348/347 A.C.), b)Santo Agostinho (*Tagaste 354 D.C + Hipona 430 D.C.), c)Adam Smith (*Kirckcald Escócia 1723 + Edimburgo 1790). d)Imanuel Kant (*Konigsberg 1724 + Konigsberg 1804), e)Georg Wilhem Friedrich Hegel (*Stuttgard 1770 + Berlim 1831), f)Antonio Gramsci (*Ales 1891, + Roma 1937), g)Michel Foucault (Poitier 1926, + Paris 1984), g)Jürgen Habermas( * Dusseldorf 1929, ...). Esse quadro geral envolvia uma clara filiação ao pensamento ocidental, cujo o centro é a Europa e a sua eleição se baseava numa vontade de mapear nossa principal estrutura de pensamento no Brasil. A par disso, os principais autores que mapearam o pensamento dos oito filósofos eram brasileiros, envolvendo além dos próprios, autores como Mauricio Puls, José Guilherme Merquior, Leandro Konder e textos meus publicados aqui nesse blog. Na aula sobre Antonio Gramsci me utilizei principalmente da biografia do filósofo quando jovem, escrita por Leonardo Rapone, além do Dicionário Gramsciano, organizado por Guido Liguori e Pasquale Voza. É preciso também reconhecer, que havia nessa seleção alguma conveniência, pois alguns desses foram meus companheiros na minha tese de doutorado defendida no âmbito do PROURB na FAU-UFRJ em 2007, Projeto, Ideologia e Hegemonia; em busca de uma conceituação operativa para a cidade brasileira como; Kant, Gramsci, Foucault e Habermas. Os outros quatros foram selecionados por seu tempo; a antiguidade clássica; Platão, o medievo Santo Agostinho e o otimismo da primeira industrialização iluminista; Adam Smith e Hegel.


Na primeira aula procurei contextualizar para os alunos a situação do nosso campo, a arquitetura e o urbanismo, nesse começo do século XXI procurando limitar nosso ofício à experiência do projeto e do plano, como ações que pretendem compreender e criticar nossa condição contemporânea. A premissa aqui utilizada é que projetar e planejar envolvem uma dimensão além da resolução de problemas, mas que se envolve com a "crítica operativa do real". Feliz construção de Manfredo Tafuri no livro Teorias e História da Arquitetura, que aproxima a crítica da projetação na medida que seleciona objetos arquitetônicos, e descarta outros, que provocam a ampliação da convivência humana.  Desde o Iluminismo, o debate sobre as profissões, tanto sobre a arquitetura quanto sobre o urbanismo, pretende construir a figura do arquiteto como um ideólogo social, capaz de organizar de forma persuasiva a cidade e o viver. Mais contemporaneamente o arquiteto, Manfredo Tafuri dedicou-se ao termo, qualificando muitas vezes a atuação dos profissionais como uma ordenação ideológica, que aponta para um esforço de convencimento e cooptação molecular das idéias, de modo que estas ganhem permeabilidade social ou aceitação geral.


"O que habitualmente se entende por crítica operativa é uma análise da arquitetura (ou das artes em geral) que tinha como objetivo não um levantamento abstrato, mas a projetação de uma orientação poética precisa, antecipada em suas estruturas e resultante de análises históricas programaticamente acabadas e deformadas... Pode ainda acrescentar-se que esse tipo de crítica, antecipando as vias da ação, força a história; força a história passada, dado que, ao investi-la de uma forte carga ideológica, não está disposta a aceitar os fracassos e as dispersões de que a história está impregnada...põe o crítico na situação de quem, depois de ter precisado o porquê dessas antíteses, realiza ele próprio uma escolha que, essencialmente é uma aposta sobre o futuro." TAFURI 1981 página177

Portanto, o ato do plano ou do projeto é entendido como uma forma de compreender o mundo, uma maneira que não apenas descreve como é sua situação atual, mas oferece uma visualização de como ele pode vir-a-ser no futuro. Uma "aposta no futuro", como diz TAFURI 1981. Há aqui um risco positivo, que seleciona da história, não estando "disposta a aceitar os fracassos e dispersões" de que o passado está cheio.  Uma atividade de prognóstico, mas do que de diagnóstico, um esforço de convencimento, que dadas as condições atuais simbólicas, tecnológicas e de disponibilidade de recursos elege uma solução, que desfruta de adequação total, ou pelo menos aceita pela maioria.. A união dos termos crítica e operação nos indica que o esforço será sempre vinculado à indução, mais que a mera dedução. E, mais "antecipando as vias da ação, força a história passada" dando-lhe um caráter de evolução positiva, que a humanidade na contemporaneidade enxerga com profunda desconfiança.

Conceituada essa questão passou-se a definição de dois termos caros às ciências sociais; a ideologia e a hegemonia, que estarão presentes ao longo do curso avaliando o desenvolvimento histórico mais geral e a evolução da ideia de plano e projeto no mundo contemporâneo. A ideologia não é mais definida de forma negativa, como foi por Marx e Engels na Ideologia Alemã, "uma consciência invertida do real" ou uma "falsa consciência". Mas de forma positiva, ou de que é impossível se furtar da presença da ideologia, pois diante do reconhecimento da complexidade da totalidade do real e da parcialidade de nossas vivências, experiência e discurso são sempre parciais e interessados, sobre essa mesma totalidade. Como um ato de reconhecimento da imparcialidade do nosso saber, a ideologia se torna uma presença inescapável. Mas, reconhece-se nesse quadro a presença de ideologias progressistas, que pretendem a transformação do mundo, e conservadoras, que investem na manutenção do status quo atual. "Cada camada social tem sua consciência e sua cultura, isto é sua ideologia, essa portanto não é apenas estreitamente política, mas identifica um grupo ou camada social." LIGUORI e VAZA 2017 página 407 Por outro lado, o termo hegemonia dinamiza o conceito de ideologia, mostrando-nos que determinadas concepções de mundo conquistaram o metabolismo social, passando a governar nossa forma de operar. De forma sucinta os termos são apresentados na aula da seguinte maneira;


Ideologia: Reconhecimento da existência da totalidade do real e consciência da parcialidade do nosso conhecimento e discurso sobre esta mesma totalidade.
Hegemonia: Dinamização do conceito de Ideologia, sendo a capacidade da ideologia de conquistar o metabolismo social.


A partir daí procurei caracterizar a dinâmica do nosso mundo contemporâneo, como um embate ideológico entre uma mentalidade concorrencial, que reforça um estado de luta individual de todos contra todos, contraposto a outro aonde a solidariedade entre agentes abre a possibilidade de construção de um comum coletivo.  O neoliberalismo da imposição da concorrência generalizada, contraposto a solidariedade que luta por maior equidade no gênero humano. A própria cidade e a construção de seu patrimônio construído é entendido como a expressão desses esforços comuns, que muito além de qualquer personalismo investem fortemente na ideia de coletividade específica. Ideologicamente a cidade é única e caracterizada como o encontro da diferença da multiplicidade didática e formadora, potencializadora de um imenso desenvolvimento humano a partir da convivência com o outro.


Em 2030, seis entre dez pessoas viverão em cidades. Hoje em dia 1 bilhão de pessoas vivem em favelas ou em loteamentos irregulares. Em 2030 serão 2 bilhões de pessoas na informalidade. E, em 2050, 3 bilhões de pessoas estarão na informalidade. A partir desses dados procurei estabelecer, que  há um desenvolvimento explosivo da população urbana no mundo, um processo que se acelera de forma definitiva com a industrialização, iniciada na Inglaterra no século XVIII. Esse processo irá determinar pela primeira vez na história da humanidade uma presença maior de pessoas vivendo em cidades, do que no campo. O projeto da modernidade, desde o Renascimento apontava para a pretensão de controle do desenvolvimento, implantando a autodeterminação consciente das comunidades. O mundo ocidental, desde a sua fundação na antiguidade clássica greco-romana buscava estabelecer o compartilhamento de responsabilidades entre os cidadãos, para promoção de um futuro comum e melhor.

Nesse ponto, na nossa segunda aula tentei caracterizar de forma mais breve possível os dois filósofos temporalmente mais distantes de nossa contemporaneidade; Platão e Santo Agostinho. O primeiro foi vinculado as cidades estado da Grécia antiga, particularmente sua comunidade a Atenas logo após a era de ouro de Péricles, que desenvolveu entre seus cidadãos livres a ideia da democracia ateniense. A reflexão de Platão está profundamente marcada pela imposição do suicídio de Sócrates pela assembleia (eclesia) ateniense, que não compreendeu a complexidade de suas proposições, levando a se refugiar num idealismo que distingue "o que é", do que "o que deveria ser". Depois Santo Agostinho é rapidamente caracterizado como o filósofo da emergência do cristianismo no ocidente, que já vivencia o declínio de Roma, mas paradoxalmente vive a ascensão da cultura e lingua latina como demonstração de erudição e o declínio paulatino do grego. O cristianismo, particularmente romano é também caracterizado como uma especificidade ocidental, que dissemina a ideia universal de igualdade entre todos os seres humanos. Uma ideia absolutamente inusitada e niveladora da humanidade, que conhece uma nova ética, aonde todos podem atingir a salvação.

Na terceira aula abordamos Adam Smith e Imanuel Kant, filósofos que partilham grande otimismo em função das transformações, descobertas e da ampliação da racionalidade científica, que os séculos XVIII e XIX representam na história humana. Adam Smith é mais um economista que um filósofo, mas sua inclusão se justifica por sua inserção na cidade de Glasgow entre 1723 e 1790, que segundo Peter Hall será a representação da "Conquista dos Oceanos" num período mais alargado de 1770 a 1890. David Hume, seu companheiro na Universidade de Glasgow talvez fosse mais adequado, como representante do empirismo inglês. Mas, a otimista leitura de Smith do nivelamento dos mercados mostra-nos uma certa infância ingênua do sistema capitalista, que ainda não percebia sua tendência recorrente de formar monopólios de proteção contra o lucro declinante, justificando sua eleição. Kant, e a filosofia alemã mereceram uma especial atenção. O cosmopolitismo kantiano é destacado, como uma típica atitude do iluminismo alemão, que carrega um verdadeiro paradoxo, afinal Kant nunca saiu de sua cidade natal Konigsberg, na Prússia Oriental. Uma cidade que hoje é Kaliningrado na Russia, que abrigou em sua provinciana atmosfera, o cosmopolitismo do sonho de paz de uma humanidade unificada por suas diferenças, na filosofia de Kant.

Na quarta aula os dois filósofos presentes são Hegel e Gramsci, aonde ainda se percebe a presença de um otimismo teleológico contagiante no futuro da humanidade, afirmativo e quase enlouquecido do primeiro, enquanto no segundo já indicando sinais de melancolia e angústia. Hegel é a expressão de uma confiança desmedida da razão realizada num espírito que só se aprimora, hipótese e antítese resolvem seus embates contraditórios numa síntese sempre melhor e aperfeiçoada. Razão tão prepotente, que desdenha da arte, pois inevitavelmente ligada à mágica,  à religião e ao mistério, que não são mais admitidos mais, sendo suplantados pela compreensão da totalidade, num movimento do espírito do tempo que só se aprimora. A arrogância da razão de Hegel talvez esteja mais claramente expressa em sua construção algo peremptória e definitiva; “O que é racional é real e o que é real é racional.” Gramsci, o genial sardo, apesar de manter a vinculação dos marxistas ao hegelianismo terá uma premissa estruturante da sua juventude ligada aos estudos de linguística. A glotologia, que estuda a evolução molecular das línguas, apontou desde cedo para o filósofo italiano, que o processo revolucionário, só fará sentido quando capilarizado molecularmente no comportamento cotidiano das massas. As noções de grande intelectual, intelectual orgânico apontam para uma das mais criativas relações entre fazer e pensar, na filosofia ocidental, inclusive no que se refere a nossa capacidade de construir o real, e de modifica-lo. Apesar das imensas derrotas, tanto no plano nacional da Itália, com sua prisão nos cárceres de Mussolini, como também no plano internacional, com a Revolução Russa, que começava a se desvirtuar em autoritarismo totalitário, com a emergência de Stálin, Gramsci mantém uma atitude otimista inusitada para sua vivência de perdas importantes. Os conceitos de ideologia e hegemonia são destacados, mostrando que sua diferenciação identitária com a Sardenha agrária e atrasada, e o contexto do Piemonte, industrial e moderno também irá marcar seu pensamento numa dialética entre centro e subalternidade absolutamente genial e operativo. As distinções entre periferia, semi periferia e centro no sistema capitalista será uma de suas mais brilhantes síntese da filosofia contemporânea.


Na quinta aula, Michel Foucault e Jürgen Habermas, dois pensadores contemporâneos atravessados pela presença das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, e o Holocausto na Alemanha Nazista, uma fábrica macábra da morte. O niilismo e a melancolia tomam de assalto o pensamento dos dois filósofos, desencantando o mundo das promessas do modernismo, que prometiam emancipar a humanidade, acabaram por gerar mais opressão. Foucault se isola num certo "niilismo de cátedra", na genial afirmação de José Guilherme Merchior, condenando de forma indiferenciada a racionalidade como produtora de dominação, A presença do poder em todas as partes, significa sua dispersão no cotidiano humano de forma dissimulada, determinando a presença de uma microfísica da dominação nas relações humanas, mais banais. A impossibilidade de existência de interação desinteressada entre seres humanos é constatada, reanimalizando a espécie humana, que estaria condicionada por impulsos de irracionalidade. A matriz nietzcheana desse pensamento parece radicalizada pela ausência do Super Homem, dominações e coerções se generalizam em todas as direções em função da presença do discurso.

“Falar é antes de tudo deter o poder de falar. Ou ainda, o exercício do poder assegura o domínio da palavra: só os senhores podem falar.” Foucault citado em PULS 2006 página560

Habermas irá restituir a necessidade da razão, como única forma de entendimento possível para a humanidade, distinguido uma racionalidade instrumental, da racionalidade intersubjetiva, e reafirmando o projeto da modernidade. A partir de uma distinção importante entre modernismo e modernidade, sendo o primeiro uma sensibilidade de época dominada por uma crença cega na técnica, enquanto o segundo, seria a pretensão humana de governar seu próprio vir-a-ser. As revoluções americana e francesa com a ampliação da democracia e do republicanismo determinaram a pretensão universal de autonomia para todos. Na verdade, a pretensão de autogoverno e autodeterminação retrocedem a antiguidade clássica e ao renascimento italiano, aonde pela primeira vez se manifestam o desejo pela autodeterminação das comunidades.  Para HABERMAS, os sintomas da evolução social, sejam evolutivos ou regressivos, precisam ser impulsionados em seu sentido progressista, o que significa a ampliação de formas de vida mais democráticas, incluidoras e emancipadoras. Dentro das quais a linguagem, o trabalho e a comunicação são especificidades humanas, que impulsionam aquilo que o filósofo alemão considera como fundamental na vida social, a capacidade de aprendizagem. Essa na verdade, não possui um sentido teleológico, mas necessita e demanda da humanidade uma constante reflexão, viabilizada pelo conflito e o embate de visões dentro da ação comunicativa.

Esse portanto, o quadro geral das aulas, que buscaram mapear as reflexões e determinações no que se refere a construção do ambiente humano no nosso planeta desses oito pensadores, pensando no campo do nosso ofício, a arquitetura, a cidade e a região. 


BIBLIOGRAFIA:


KONDER, Leandro - Os marxistas e a arte - Expressão Popular São Paulo 2012

KONDER, Leandro - A questão da ideologia - Companhia das Letras São Paulo 2002

LIGUORI, Guido e VOZA, Pasquale - Dicionário Gramsciano - Editora Boitrempo São Paulo 2017

MERQUIOR, José Guilherme - Michel Foucault, ou o niilismo de cátedra - Editora Nova Fronteira Rio de Janeiro 1985

MERQUIOR, José Guilherme - O marxismo ocidental - Editora Nova Fronteira Rio de Janeiro 1987

PULS, Mauricio - Arquitetura e filosofia - Editora Anna Blume São Paulo 2006

RAPONE, Leonardo - O jovem Gramsci, cinco anos que parecem séculos 1914-1919 - Editora Contraponto Rio de Janeiro 2014

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

A presença da Ideologia

Desenho do grupo Archi5 arquitetos associados para a exposição Penso 
Cidade em 2003, para o adensamento da Ilha do Fundão
O livro de Carlos Guilherme Mota, A Ideologia da Cultura Brasileira (1933 a 1977) foi fundamental para a construção de minha tese de doutorado em 2007, Projeto, ideologia e hegemonia; em busca de uma conceituação operativa para a cidade brasileira no âmbito do PROURB da FAU-UFRJ. Continuo considerando que o alinhamento ideológico é fundamental de ser explicitado e debatido, pois não há possibilidade de escape dele para os intelectuais contemporâneos, em qualquer área do pensamento e da prática. Hoje o termo ideológico tende a ser substituído por "discurso" ou "lugar de fala", querendo denotar a vivência por trás da construção teórica que apresenta uma construção perpassada por parcialidades e incompletudes. A dedicação e a pesquisa mais aprofundada em determinados aspectos, ou mesmo a vivência acabam condicionando a impossibilidade de superação das parcialidades ideológicas, que eram e continuam sendo premissas básicas de qualquer pensamento ou reflexão. A reflexão de qualquer nível, profundidade ou área está condicionada por essas premissas, afinal a totalidade que opera de forma efeftiva foge aos nossos campos e especialidades. Na verdade, na minha tese de doutorado entendia o projeto e o plano como discursos persuasivos e convincentes, que apontavam para o convencimento do outro para serem realizados, portanto carregados pelo ordenamento ideológico. O plano e o projeto eram e ainda são entendidos como uma forma de abordagem do real, estruturados pela análise do existente, mas investindo fortemente no vir-a-ser. A capacidade de convencimento era fundamental para materialização do plano ou do projeto, uma vez que essas ações pré figuravam uma série de desejos e expectativas de diversos agentes e atores. Tinham, portanto a capacidade de explicitar conflitos e interesses divergentes, o consenso provisório e a acomodação de visões pelo desenho não os extinguia, mas podiam ser vistos como etapas de superação sempre parciais. A cidade, como lócus da diversidade, e do choque de interesses era celebrada como estrutura concreta e objetiva, que denunciava o plano e o projeto da sociedade brasileira de exclusão de parcelas substanciais de sua população.

"Ainda no plano do vocabulário, não parece difícil visualizar o circuito percorrido de 1930 a 1974 no plano das produções culturais, indicando a existência de uma sucessão de momentos nos quais as noções como 'civilização brasileira', 'cultura brasileira', 'cultura nacional', 'cultura popular', 'cultura de massa' marcariam os horizontes ideológicos da intelectualidade progressista - incrustada ela mesma, na camada dominante" MOTA 1994 página287

Havia aqui um etapismo redutor que lia a cultura brasileira, ou melhor sua construção intelectual como estruturada a partir de grandes intérpretes, que a leram através de conceitos como; "democracia racial", "história incruenta", "homem cordial", "caráter nacional", "cultura popular", "cultura de massas". Mas o argumento era convincente, chegando mesmo a afirmar que essa mobilização da intelectualidade brasileira provinha de um conceito autofágico e de raiz estamental, que desembocava na afirmação do próprio MOTA 1994, página287; "não existe, nesse sentido, uma Cultura Brasileira no plano ontológico, mas sim na esfera das formações ideológicas de segmentos altamente elitizados..." Sem dúvida, ecoava aqui a interpretação de Raimundo Faoro, da fraqueza de nossa sociedade civil, que sempre permitiu o pensar mais crítico, apenas para o estamento do servidor público. Um esforço que a geração mais radical da década de sessenta e setenta procurava superar com os Centros Populares de Cultura (CPCs) e outras aproximações com a massificação como as de Herzog ou de Vianninha, que aliás recorta de forma precisa o problema;

"Reduzir uma sociedade de 100 milhões de pessoas a um mercado de 25 milhões exige um processo cultural muito intenso e sofisticado. É preciso embrutecer essa sociedade de uma forma que só se consegue com o refinamento dos meios de comunicação, dos meios de publicidade, com um certo paisagismo urbano que disfarça a favela, que esconde as coisas." Oduvaldo Vianna Filho, citado em MOTA 1994 página 317

É engraçado como no mapeamento geral, naquela ocasião, que tinha então de Carlos Guilherme da Mota em minhas anotações e antes de sua leitura, apontavam para um enquadramento na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, o que significava a filiação a segunda inteligência universitária paulista, que tinha uma linha que partia de Fernando Azevedo e chegava a Florestan Fernandes para desembocar em figuras como Otavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, e o próprio Carlos Guilherme da Mota. Nada mais esquemático e redutor, e pior, pouco representativo da real complexidade do livro de MOTA 1994, que só por ter a menção na origem aos dois pensadores paulistas já dava a real dimensão complexa do trabalho. Na verdade, naquela época a USP representava para mim uma escola de origem agrário-elitista-oligárquica, que se transformara numa radicalidade urbano-burguesa-paternalista, sem uma dimensão popular ou de massas. Parecia-me então, que figuras, que estão no livro de MOTA 1994, e que fogem a essa instituição como Gilberto Freire, Raymundo Faoro e Ferreira Gular não eram bem avaliados, enquanto personalidades uspianas como; Fernando Azevedo, Florestan Fernandes, Dante Moreira Leite e Roberto Schwarz eram. Tudo não passava de uma visão sectária e superficial, que foram pelos ares principalmente com a leitura de Florestan Fernandes e Francisco Oliveira, e também Otavio Ianni e o próprio Carlos Guilherme Mota. Naquela ocasião como agora, compartilhava com MOTA 1994 a ideia de que o elitismo exacerbado da sociedade brasileira a condenava a repetir um pedantismo isolacionista, que as reformas dos anos sessenta, radicalizadas pelo fechamento do regime procuravam superar. Parecia então, que o fechamento do regime ou sua incursão por caminhos autoritários era inadmissível principalmente após ao ocorrido com Herzog nas celas do DOI-CODI em São Paulo.

"Na noção de organização social, por exemplo, ao ser retirado seu potencial crítico, o privilégio, o desemprego sistemático, a exclusão cultural e a política passam a ser dados estáveis e neutros nas interpretações do Brasil, quando não omitidos." MOTA 1994 página 288

Disso decorre o imenso retrocesso que sofremos com a última eleição, quando parece que a tese da ausência de autoritarismo levou nossa sociedade a esquecer sua memória mais recente, esquecendo-se das atrocidades da Ditadura de 1964. Nesse campo, a cidade e sua arquitetura eram a materialização física e mais concreta dessa contínua exclusão e da dimensão continuada do autoritarismo brasileiro, nossa incapacidade de universalizar as infraestruturas urbanas para toda nossa população, determinava uma espacialidade didática, aonde o elitismo e a segregação eram um fato. Basta comparar São Gonçalo e Ipanema, ou os Jardins e a Zona Leste paulistana. No meu esquema inicial e final, também no campo da arquitetura e da cidade, os ideólogos foram; Lucio Costa, Vilanova Artigas e Carlos Nelson dos Santos, a partir desse último assumia que a proximidade do tempo me impedia de selecionar pensadores com efetiva permeabilidade na cultura geral da arquitetura. As escolhas recairam em Elvan Silva e Carlos Antonio Brandão, dois engajados na academia brasileira, que desenvolveram reflexões importantes para o método do plano e do projeto, dentro da minha perspectiva. Minha expectativa então, no começo dos anos 2000 era sublinhar a importância do plano e do projeto, como uma prática antecipadora que pensa antes de fazer, uma constatação crítica da forma de operar da sociedade brasileira, que de forma ansiosa realiza sem pensar de forma recorrente. Basta pensar nas práticas arraigadas no Estado Brasileiro, que pensa na obra como uma meta independente A partir da leitura de MOTA 1994 percebi que o enquadramento ideológico não deveria reduzir a superficialidade o pensamento e a reflexão de alguns pensadores notáveis, que se debruçaram sobre a realidade brasileira, uma dinâmica por si só, tão complexa e fluída, que ainda hoje é difícil de ser mapeada. Questões como a escravidão, o imperialismo, a dependência, a subalternidade, o autoritarismo que permanecem em nosso horizonte como obstáculos insuperáveis, que volta e meia reaparecem eram enfrentados muito além de uma lógica dualista. E, mais a interpretação mais aprofundada tinha a capacidade de nos remover de uma posição de conforto, muito além dos confrontos simplificadores.

BIBLIOGRAFIA:

FAORO, Raymundo - Os donos do Poder, Formação do Patronato Político Brasileiro - Editora Globo Porto Alegre 1958

MOTA, Carlos Guilherme - A Ideologia da Cultura Brasileira (1933 a 1977) - Editora Ática São Paulo 1994