segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Debate importante no âmbito do 21 CBA sobre a utopia, diversidade e autoritarismo na cidade contemporânea

Debate no Centro Cultural da URRGS; Pedro da Luz e Carlos Vainer
Nessa última sexta feira, dia 11 de outubro de 2019 houve um importante debate sobre a nossa condição contemporânea, no ambiente das cidades, entre eu e o professor doutor Carlos Vainer, no âmbito do 21o Congresso Brasileiro de Arquitetos (21CBA) em Porto Alegra, no Centro Cultural da UFRGS. O professor Carlos Vainer é professor do IPUR da UFRJ, e lidera junto com Henri Acserald o ETTERN (Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza). O debate recebeu um título algo niilista de;  "A cidade está morrendo, viva a cidade!", que aborda uma certa distopia do mundo atual, aonde a intolerância e uma certa homogeneização da diversidade do humano parece voltar a emergir, e ser celebrada. Há uma certa Crise da Cidade, instalada pela condição contemporânea, derivada da perda do seu sentido mais antigo definido pela ascensão da burguesia, que teve sua  própria auto definição como classe, profundamente vinculada a essa forma de implantação humana. Segundo Vainer, a burguesia abandonou a cidade a sua própria sorte, não se importando mais pelo seu embelezamento ou desenvolvimento, uma vez que se desterritorializou de forma definitiva, com o desenvolvimento do capitalismo contemporâneo. A ampliação da violência, da intolerância, e da insegurança no seu território fizeram a cidade perder o status de definidora do sentido da história da humanidade, fazendo-a vagar sem direção aparente. A descrença no plano e no projeto da cidade foi determinada pela ampliação da mercantilização geral, aonde se estabelece um balcão de negócios, que negocia e impõe valor a tudo.

Mas, o que seria a cidade? Carlos Vainer se utiliza da definição da Escola de Sociologia de Chicago, que a definiu como o lugar do encontro e do diverso, dotado de uma certa densidade, o lugar da variedade do ser humano. A cidade de Chicago, no começo do século XX era o lócus de uma concentração de pessoas, jamais vista na história humana, aonde 80%  eram estrangeiros, que migraram para ela de diferentes partes do mundo. A citação de WIRTH 1973, membro dessa escola, utilizado por Vainer menciona a sua principal característica baseada na; "dessemelhança dos seus concidadãos, num aglomerado denso e diverso". A menção a metáfora da fundação de Roma, a partir da lôba que alimenta os irmãos Rômulo e Remo, que definem uma cava aonde as diferentes nacionalidades, que se reúnem para formar a cidade e depositam os torrões de suas terras natais de aonde vieram, reunindo diferentes identidades, que se desfazem no solo de Roma. A perda das identidades específicas dos diferenciados clãs e famílias se desfaz no território da grande cidade, que a partir da mistura das terras pátrias originais permite a convivência de diferentes costumes e crenças. A grande cidade irá permitir a liberdade de comportamentos e crenças aos mais diversos agentes, possibilitando a relativização e desnaturalização dos nossos próprios, gerando o "citadino tolerante."

Por outro lado, algumas cidades da Idade Média europeia possuíam códigos que tolhiam a servidão, determinando que se um escravo passasse mais de 24 horas em seu solo, ele se tornaria livre, e capaz de buscar seu sustento pelo seu trabalho. A revolução burguesa, intrinsecamente conectada ao território da cidade busca a extinção da servidão, para que todos se transformassem em trabalhadores e consumidores no seu mercado. Algumas aglomerações na Europa Central, notadamente na atual Alemanha possuíam na portada de suas muralhas a inscrição "Die Stadtluft macht frei nacht Jahr und Tag", literalmente, "O ar da cidade liberta depois de um ano ou um dia". Mas as grandes cidades industriais de meados do século XIX e começo do século XX eram estruturas que haviam superado a própria noção de uma comunidade única e íntegra da cidade medieval, se desintegrando numa plêiade de grupos. Essa condição trará para a existência nas grandes cidades, uma certa indiferença e anonimato hogeneizador, que potencializa a liberdade de comportamento livre e independente, mas também gera um clima geral de indiferença. Esse cosmopolitismo do confronto de uma diversidade incrível de individualidades e de grupos de práticas diferenciadas, gera aquilo que é denominado de pluriversal. Um cosmopolitismo não nivelador e supressor das diferenças e das diversidades, mas enfatizador dessas identidades, que representam uma série de valores que enraízam e dão sentido a diversas práticas. Num mundo preso pelos discursos identitários, como o nosso contemporâneo, começa a emergir uma perda da solidariedade entre diferentes, que passa a se restringir apenas aos iguais.

Por último, a questão da utopia foi levantada pelo professor Carlos Vainer, e sua gestação no seio das próprias cidades, a partir de uma clara referência da autora Françoise Choay, que mencionou os urbanistas utópicos, em seu livro Urbanismo, como antecessores dos urbanistas de fato. Também a partir do autor neokantiano CASSIRER, Vainer reforça a ideia de que o homem possui um passado, e por isso, problematiza seu futuro, pensando que ele e as futuras gerações pensam numa existência melhor e diferenciada. Por isso, a formulação utópica envolve a construção de um outro lugar, ou de um não lugar, aonde emerge a construção de expectativas, muitas vezes abstratas e não compartilhadas por todos. Daí surge a emergência de uma vertente autoritária no discurso utópico, a partir desse caráter subjetivo e abstrato das suas formulações, que invariavelmente envolveram desvios autoritários e colonizadores. Pois, foram formulações que não forjaram uma didática para as massas, se restringindo a uma vanguarda isolada, que de libertadora se transforma em opressora, pelo seu próprio isolamento. A distopia, atualmente instalada no ambiente das cidades brasileiras é um fato, aonde cada vez mais emerge uma grande intolerância com as diversidades de posicionamentos ideológicos e comportamentais.

A partir desses posicionamentos, meu papel ali como participante daquela mesa era de polemizar  e problematizar os posicionamentos do professor Carlos Vainer, comecei por relativizar as propostas excessivamente caustico, paralisador das ações, afirmando que o ofício dos arquitetos e urbanistas é intrinsecamente propositivo, sem que isso exclua a dimensão crítica. Citando TAFURI 1981 reforcei suas considerações a respeito do plano e do projeto como ações críticas/operativas, nas quais a dimensão subvertora do status quo se combina com operação, se reforçando mutuamente. Essa dimensão, crítica e operativa do ofício me remeteu também as considerações de GRAMSCI, um marxista também italiano como Tafuri, com uma origem muito particular, na Ilha da Sardenha. Uma área periférica ao desenvolvimento econômico italiano mais virtuoso, concentrado no norte industrializado, no entorno das cidades de Turim e Milão, enquanto a região do sul e a Ilha da Sardenha permaneciam agrárias e arcaicas. Para mim Gramsci caracterizou o marxismo como a filosofia da práxis, o que traz a dimensão da crítica para uma aproximação com a operação, similar a colocada por Manfredo Tafuri.

Além disso, sua condição de subalterno com relação ao desenvolvimento capitalista hegemônico da própria Itália, o que confere ao seu pensamento uma imbricação espacial e hierárquica, que envolve os conceitos de centro e periferia como estruturantes. Gramsci é como um nordestino na cidade de São Paulo, porta voz de um discurso da subalternidade, identificando aí uma potência de rebelião e de transformação, a partir da não aceitação de sua própria condição. Essa condição, para mim, está presente nos movimentos sociais urbanos contemporâneos, das cidades brasileiras e outras, nas ocupações de edificações nos centros das cidades, nas favelas e nas populações precarizadas e abandonadas em situação de rua. Uma resistência capaz de gerar um outro programa de inclusão a partir da dimensão concreta do espaço, que afinal acaba sendo a dimensão mais concreta da própria exclusão. Essa potência precisa ser explorada pelo plano e pelo projeto de forma a gerar um contra projeto para o desenvolvimento econômico-espacial do país, visando incluir mais extratos sociais de nossa população.

Na sequência houveram uma série de questionamentos e provocações muito adequados, que colocaram um eixo estruturante básico e preciso; como mudar o desenvolvimento econômico espacial do nosso país? Um contra projeto é possível?

BIBLIOGRAFIA:

CASSIRER, Ernst - A Filosofia do Iluminismo - Editora Unicamp São Paulo 1997

FREIRE, Paulo – A pedagogia do oprimido – Editora Paz e Terra Rio de Janeiro 1970
GRAMSCI, Antonio - Concepção dialética da história - editora Civilização Brasileira Rio de Janeiro 1966

TAFURI, Manfredo – Teorias e História da Arquitetura – Editora Presencial Lisboa 1981

WIRTH, Louis - Life in the Cities - Editora Chicago School Papers Chicago 1973