quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Reflexões a partir de um debate com um orientando, ou estamos condenados ao progresso emburrecedor?

Menino judeu na rendição do Gueto de Varsóvia(1943),
e o Angelus Novus de Paul Klee (1920),com o rosto voltado
para o passado e de costas para o futuro, segundo Walter
Benjamim; "Mas uma tempestade sopra do Paraíso, aninhando
-se em suas asas,.. Aquilo que chamamos de Progresso é essa
tempestade."
BENJAMIM 1985 pág.158

O texto a seguir é fruto do processo de orientação de um pesquisador de mestrado do Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU-UFF), no qual se sucedem provocações mútuas, debates sobre a apreensão do real nas condições contemporâneas, estruturação e limitação do campo da arquitetura, cenografia e urbanismo e respeito mútuo pelas distintas formas de se abordar o problema. O tema é excessivamente amplo geral e difícil, podendo mesmo se desdobrar numa pesquisa de uma vida - mestrado, doutorado, pós doutorado, etc... - a "sociedade do espetáculo", a "realidade ampliada" e o "novo capitalismo". Minha primeira reação foi bastante rabugenta, rechaçando tanto a ideia de "realidade ampliada" colocando que, se nossa realidade fosse ampliada estávamos perdidos numa dispersão interminável, pois desde os antigos gregos que não conseguimos dar conta do real efetivo. Quanto também, do "novo capitalismo", que no meu entender continua em essência o mesmo de cinco séculos atrás, preso a uma lógica final especulativa e até as vezes, desvinculada da produção. No que concerne a "sociedade do espetáculo" tudo bem, teríamos um material palpável que seria o livro do Guy Debord com o mesmo nome, que poderia ser esquadrinhado. Minha segunda reação foi onde estava o campo da arquitetura, cenografia e urbanismo, destacando aqui, que o pesquisador Douglas Alves é um cenógrafo profissional, vinculado a televisão no Brasil. Argumentava que o campo da arquitetura, cenografia e urbanismo deveria estar conectado aos temas do espetáculo, do real e do capitalismo, pois o espaço ou o território tem sido muitas vezes negligenciado em suas especificidades pela academia; Afinal, o que faz o arquiteto e urbanista? Tal posicionamento, no meu entendimento dificulta a atuação interdisciplinar, ao contrário de fomentá-la, pois quando um campo não está definido dificulta-se toda a matriz de operação interativa entre expertises. Por outro lado, mas nessa mesma temática, afastava de forma veemente qualquer pretensão de autonomia absoluta do campo, mas reforçava as questões de uma semi-autonomia, determinada por suas especificidades decorrentes das ações do plano e do projeto. Assim, identifica-se também na academia no Brasil uma tendência recorrente a uma idealização desmedida das temáticas, alienando-se os problemas da reprodução efetiva da vida. Seria como se fosse possível, pensar agentes ou situações variadas desvinculadas dos condicionantes da produção e reprodução da sua própria manutenção existencial, isto é, a obtenção de comida, abrigo, saúde, afeto, etc... Uma idealização, um idealismo exacerbado que absolutiza a ideia e o pensamento, em detrimento das formas materiais de obtenção do nosso sustento e manutenção.

O texto se inicia com minha sugestão de interação com a entrevista do historiador Yuval Noah Harari sobre as novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), segue com a sugestão do livro da Shoshana Zuboff sobre o capitalismo de vigilância. Se desenvolve a partir da conceituação de Fernand Braudel da diversidade de tempos; da longa duração e da curta duração para caracterizar mudanças superficiais e essenciais. Envereda-se pelo texto clássico de Friedrich Engels sobre a Questão da Habitação, para caracterizar e localizar no mundo material a diferenciação entre infraestrutura e superestrutura no marxismo, como análogas as preocupações de longa e curta duração. Busca desvendar uma referência no texto de Françoise Lyotard, para caracterizar o declínio dos meta discursos da pós modernidade, onde se recalca a narrativa do mercado, acabando por absolutilizá-lo como única presença, e de uma certa imposição do presente. Retoma-se então o debate sobre a utopia, ou a ampliação das nossas possibilidades de nosso por vir, algo que o tempo do pós modernismo pretendeu recalcar como inexoravelmente autoritário, se auto definindo como realista. Aponta-se então as proposições dos filósofos; Antônio Gramsci e Walter Benjamim, nos anos 30 do século XX, no que se refere aos diferentes tempos; o calendário e o dia a dia. Fecha-se o texto, com a sugestão de leituras que de certa forma nos comprovam a persistência no longo prazo de algumas de nossas questões; leon Battista Alberti no século XV, e Joseph A. Schumpeter nos anos 40 do século XX.

Há uma muito boa entrevista do historiador e pensador Yuval Noah Harari, que está disponível na internet no site; Yuval Noah Harari: Humanidade, não é assim tão simples - YouTube à Fundação portuguesa Francisco Manuel dos Santos, numa série denominada; Humanidade, isto não é assim tão simples. É uma entrevista densa, complexa e variada abordando temas difíceis, como o colapso ambiental que vivemos, as ameaças à Democracia, a emergência de Ditaduras, a inteligência humana e a inteligência artificial, o tempo e nossa capacidade de se adaptar a mudanças intensas e inesperadas, etc.. A entrevista me foi indicada pela Professora Maria de Lourdes, companheira do PPGAU-UFF, com uma celebração diante da atitude de historiadores, que a partir de respostas de certa forma inusitadas nos colocam para pensar e problematizar nosso tempo presente, basicamente a partir de um tempo mais longo e estruturado. Yuval Noah Harari é professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, no departamento de história e autor de livros, que não conheço, tais como; Sapiens, uma breve história da humanidade, Homo Deus, uma breve história do amanhã, 21 Lições para o século 21Notas sobre a Pandemia: E breves lições para o mundo pós-coronavírus (artigos e entrevistas). Uma pergunta do próprio Yuval perpassa toda a entrevista; "se somos tão inteligentes, os seres humanos (o homo sapiens), porque somos capazes de coisas tão estúpidas?" A resposta não é explícita e declarada, mas se depreende do seu conjunto de que há uma forte crença no poder doutrinador e explicador dos ciclos históricos e na capacidade humana de se moldar, adaptar a partir da compreensão crítica da história. Uma doutrina, de um certo otimismo, que nos aponta a partir de uma escala de tempo do longo prazo, para uma construção coletiva, colaborativa, associada e inclusiva, que nos una, e não seja mais competitiva, individualista e exclusiva, que nos separa. A ideia de que as tecnologias sempre nos colocaram desafios e oportunidades são cotejadas a partir da necessidade  de implantação de controles estatais, que regulem sua operação a partir da identificação de agentes. Quando abordado sobre as questões das redes sociais e sua imensa capacidade de propagar medo, conspiração, ódio e polarizações argumenta claramente para uma importante diferenciação entre dados, responsabilidades e decisões. Enfatizando de forma clara, que a falsificação do humano através dos "algoritmos de recomendação" precisa urgentemente ser regulada, identificada e condenada por premissas que se pautem pela sobrevivência da democracia, que por sua vez depende de sobre maneira do diálogo e da confiança mútua entre as pessoas. Há uma constante ênfase na compreensão do humano como uma interação holística entre mente e corpo, um afastamento da absolutização do ideal platônico desconectado da nossa concretude corpórea. Uma reafirmação do materialismo biológico e presencial e uma desconfiança do idealismo platônico, que o mundo digital contemporâneo parece interessado em nos manipular nessa direção etérea, com menção inclusive ao cristianismo primitivo no sofrimento do corpo concreto. No que se refere a Inteligência Artificial e o Chat GPD, há uma constatação de que não possuímos um distanciamento histórico, frente a mudanças muito rápidas, que podem estar esgotando nossa capacidade de adaptação, colocada como uma característica de seres biológicos, que somos.

Compartilho de grande parte de suas assertivas e colocações, mas questiono e desconfio de uma capacidade afirmada de forma implícita por Yuval Noah Harari na entrevista de superação de alinhamentos ideológicos, como se pudéssemos nos libertar de amarras políticas, ou de visões fragmentadas e parciais. Me parece, como uma pretensão impossível de ser alcançada, que seria nossa libertação de ordenamentos ideológicos, que no pensamento do Harari ficam expressos numa imensa capacidade de mudança, metamorfose e transformação, que no fundo, me parece não temos. E, que envolve em nossa contemporaneidade uma certa inevitabilidade do desenvolvimento tecnológico e científico das Big Techs, que em minha opinião é uma decisão política de cunho conservador, com a intenção de manter o status quo do sistema. A enorme concentração, manipulação e monopolização do novo setor das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) nos mostram que o capitalismo se reveste de uma aparência de mudança, para permanecer o mesmo. Por uma exigência de consciência acadêmica achei por bem folhear o Sapiens, uma breve história da humanidade, do HARARI 2018, que me pareceu um livro celebratório da vitória do mercado e do liberalismo em nosso tempo de hegemonia financeira. Apesar de algumas identificações da destruição especulativa do capitalismo, como a "Bolha do Mississipi" ou "A Guerra do Ópio", o tom geral de celebração do credo capitalista é permanente no livro; 

"Depois de 1908, e especialmente depois de 1945, a ganância capitalista foi um pouco freada, sobretudo pelo temor ao comunismo... A única forma séria de governar o mundo de uma forma diferente - o comunismo - foi tão pior em todos os aspectos concebíveis que ninguém tem estômago para tentar de novo." HARARI 2018, pág.343

O Conjunto Habitacional do Karl Marx Hof em Viena,
habitação e a busca por uma cidade inclusiva 

Em outro livro, já comentado aqui da ZUBOFF, Shoshana -
A Era do Capitalismo de vigilância; a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder - Editora Intrínseca, Rio de Janeiro 2020 há uma menção importante de sermos "superdescritos, mas subteorizados" em nossa contemporaneidade. Para mim só enfrentaremos a enorme quantidade de informação que temos de digerir, enquanto estivermos ancorados numa ordenação ideológica clara, isto é, reequilibrarmos a relação entre teoria e descrição na nossa sociedade. Entendendo, que os sistemas gerais teóricos de ordenação do mundo são ferramentas fundamentais na ordenação das informações. Enfim, não acho possível pleitear-se a superação do alinhamento ideológico, que para mim está entre ideologias conservadoras, propondo a manutenção do status quo, que é o projeto de uma minoria, e ideologias progressistas, que lutam pela mudança do status quo, que no fundo interessa a maioria. O historiador Harari menciona a questão da colaboração intra humana, e a integridade de corpo e mente para se pensar um outro mundo, ao meu ver uma proposição progressista, mas esta não é uma condição ou decisão do cidadão isolado, mas do indivíduo coletivo na sociedade, na sua ordenação política e ideológica. Muito menos, uma decisão de um distanciamento apolíneo da ciência ou da técnica, que não se encontram num lugar além da ordenação político ideológica que sempre as pautou. Afinal, "uma andorinha não faz verão", isto é, num mundo fragmentado e dividido como o nosso estamos submetidos inexoravelmente a clivagem ideológica e política por uma obrigação moral e ética de compromisso com a democracia.

"Seus negócios se caracterizam como um modelo de publicidade, e muito foi escrito acerca dos modelos de leilão automatizados do Google e outros aspectos de sua invenções no campo da publicidade online. Com tanta verborragia, esses desenvolvimentos são ao mesmo tempo super descritos e subteorizados." ZUBOFF 2020, pág.83

A professora Shoshana Zuboff é  da Universidade de Harvard, e portanto se enquadra numa tendência de manipulação de uma quantidade excessiva de dados, muitas vezes desdenhando de uma base teórica mais estruturada. O empiricismo de tradição anglo saxônica é a versão ideológica de estruturação de seu pensamento e da representação do real, mas paradoxalmente a melhor crítica a isto pode ser encontrada na página 83 do seu próprio livro; "esses desenvolvimentos são ao mesmo tempo super descritos e subteorizados". A questão, que se coloca de forma dramaticamente no nosso tempo é que, a cada dia que passa, seguimos testemunhando o surgimento de novas técnicas dedicadas à integração entre as realidades virtuais oferecidas pelo aparato digital e a realidade material do mundo que nos cerca. A velocidade com que essas novas tecnologias se somam, sobrepõem e/ou são substituídas, tem sido responsável por um processo de alteração constante da realidade material vivida pelas sociedades aderentes à elas, determinando a presença de um esgotamento físico das pessoas, "a sociedade do cansaço"(1). Afinal as máquinas, as TICs, as formulações dos algoritmos e o mundo virtual não descansam e não precisam dormir, enquanto os humanos precisam de sono, lazer, alimentação, afeto, alegria e amor, basicamente improdutivos. Muitas são as questões associadas a esse processo acelerado de transformação da realidade que ainda carecem de, ao menos, serem discutidas, problematizadas e colocadas em benefício da maioria da população, e não de uma minoria endinheirada. Se há, uma permanência imutável no sistema capitalista, esta pode ser identificada pela sua tendência a formação de monopólios, concentradores de renda, que este nosso tempo mantém. E, aqui se manifesta uma clara condição que precisa ser denunciada, "a destruição criativa" (2) constante e repetida, pois é bem provável que estas condições daqui há uma década sejam substituídas, antes mesmo de serem respondidas ou até mesmo formuladas, justamente por conta da velocidade com que a realidade se altera. A quem interessa essa produção constante de instabilidade e volatilidade das condições de existência em nossa contemporaneidade, quem controla esses processos e quem está submetido a eles, quem são os grandes beneficiários da perda de previsibilidade do mundo desregulado?

Cabe a pergunta; Será que a realidade efetivamente se altera? Ou ela apenas muda sua face para permanecer a mesma em sua essência. Há uma passagem no Fernand Braudel, um historiador da Escola dos Anais francesa, em que ele usa uma metáfora com o mar revolto e encapelado das tempestades; na superfície, onde há uma aparência de transformação e mudança, mas nas profundidades tudo permanece o mesmo... A metáfora faz menção a uma conceituação central do historiador francês centrada na diferenciação do tempo em "longa duração e curta duração", assim como na "questão da civilização material". Essas ideias, "longa duração e curta duração", fazem menção a longa transformação das sociedades em seus costumes diários, nas práticas cotidianas e na reprodução da vida a partir por exemplo de estruturações feudais, que se transformam em capitalistas. Uma distinção entre a história dos acontecimentos e a história das mentalidades, uma história dos indivíduos e uma história da sucessão de várias gerações, uma história dos fatos e uma história social. Ou ainda, a "questão da civilização material", que envolve a reprodução e manutenção concreta da vida, nosso sustento e das futuras gerações no seu cotidiano mais banal, muitas vezes estruturalmente conectada com as condições geográficas concretas. Essas instâncias se movimentam dentro de uma certa autonomia, mas basicamente interagem e se retroalimentam num movimento dialético, onde a subordinação ou a sobredeterminação mudam de forma constante.

Finalmente, a terceira parte, a da história tradicional ou, se quisermos, a da história cortada não à medida do homem, mas à medida do indivíduo, a história dos acontecimentos, segundo François Simiand: a agitação de superfície, as ondas que alçam as marés em seu potente movimento. Uma história de oscilações breves, rápidas e nervosas. Ultrasensível por definição, o menor passo fica marcado em seus instrumentos de medida. História que, como tal, é a mais apaixonante, a mais rica em humanidade e, também, a mais perigosa. Desconfiemos desta história todavia em fragmentos, tal como as pessoas da época a sentiram e viveram ao ritmo de sua vida, breve como a nossa. Essa história tem a dimensão tanto de suas cóleras quanto a de seus sonhos e ilusões” (BRAUDEL, 2005: Int. XIII).

A habitação no Brasil, autoconstrução das favelas e o 
mercado imobiliário restrito; uma cidade da exclusão.
Paraisópolis e Morumbi em São Paulo

Nesse sentido, o marxismo faz uma importante distinção entre infra e superestrutura, por exemplo, quando Engels destaca em seu clássico Sobre a questão da moradia, na Inglaterra da Revolução Industrial, de onde se depreende que a efetiva transformação está no controle da propriedade dos meios de produção, e não no acesso simples à moradia. Era uma clara afirmação da interação e sobre determinação entre política, concepção filosófica e a emergência de um novo problema das cidades europeias do século XIX, que explodiam de tamanho pelo êxodo rural. A técnica da produção de unidades habitacionais, iguais, produzidas industrialmente esbarrava na sobre determinação da propriedade privada, que acabava absolutizando o valor de troca, frente ao valor de uso. Enfim, a moradia é uma mercadoria ou um direito? Ou, se a técnica é neutra, ela deveria servir a conservação do status quo do módus operandi da sociedade capitalista ou ao seu revolucionamento em novas relações sociais? A técnica serve a manutenção do bloco histórico hegemônico ou  às ideologias contra-hegemônicas? Minorias endinheiradas ou a massa dos despossuídos? Mais uma vez se manifesta o confronto e a interação entre fatos e sua essência, entre atuação individual e mentalidades, entre práticas cotidianas e a longa duração. Disso também se percebe, que há um claro achatamento de nossas pretensões utópicas, a partir de uma absolutização do tempo de curta duração, uma identificação de algo autoritário, inercial e imutável - o mercado - por falta de consciência ou de consideração pelo longo prazo. Afinal a habitação mantêm-se como uma questão em aberto, não só nas cidades brasileiras, desde o século XIX, quando ENGELS 2015 escreveu estas considerações, reforçadas pela orelha da mesma edição do livro Sobre a Questão da Moradia produzida por BOULOS 2015, em nosso tempo presente sobre a mesma crise no século XXI.

"Basta um exemplo: em meu livro, (A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, pág.102) descrevo nas páginas 80 e seguintes um agrupamento de casas situado no vale do rio Medlock, batizado de Pequena Irlanda (Little Ireland), que durante anos foi a vergonha de Manchester. A Pequena Irlanda despareceu há muito tempo; em seu lugar, ergue-se agora sobre uma base elevada uma estação de trem; a burguesia destacou ostensivamente o êxito da eliminação definitiva da Pequena Irlanda como se tivesse sido um grande trunfo. Ora, no verão passado houve uma grave imundação, como ocorre em geral com os rios represados de nossas grandes cidades, que por razões facilmente explicáveis vêm provocando ano após ano inundações cada vez maiores. Descobriu-se, então, que a Pequena Irlanda não havia sido eliminada, mas apenas transferida da banda sul para a banda norte de Oxford Road, e que ela ainda florescia." ENGELS 2015 pág.105

"Num momento em que a luta dos sem-teto e as ocupações urbanas ganham força no Brasil, nada mais pertinente do que lançar Sobre a questão da moradia, de Engels. O texto aborda a falta de moradia, suas razões e soluções, de forma dolorosamente atual. Sim, lamentavelmente, a natureza do problema da habitação permanece a mesma quase 150 anos depois. Engels mostra como a formação de grandes aglomerados urbanos provoca aumento de aluguéis, concentração de famílias em uma única moradia e, no limite, desabrigados. Explica que o problema não é de falta quantitativa de moradias, mas de distribuição: "já existem conjuntos habitacionais suficientes nas metrópoles para remediar de imediato, por meio de sua utilização racional, toda a real escassez de moradia." Era a Europa do século XIX, mas poderia ser o Brasil do século XXI, com mais de 5 milhões de imóveis ociosos - pouco menos do que o necessário para resolver o déficit habitacional do país, em torno de 5,8 milhões de famílias." BOULOS, na orelha do livro ENGELS 2015


A situação da classe trabalhadora diante da explosão da 
urbanização da Revolução Industrial, um problema que
persiste.

Há então a persistência de um problema, que bloqueia a possibilidade de acesso à moradia, que persiste no mundo, desde o século XIX, e no Brasil quando de sua rápida urbanização até o século XXI, instalado na longa duração, apesar da imensa aparência de mudança na superfície. Apesar dessa presença, que claramente se agravou a partir da emergência da ideologia neo liberal, nosso mundo persiste celebrando a absolutização do direito de propriedade da moradia, negando mecanismos legais já alcançados, pelo Estatuto das Cidades de 2001, que se voltam para a taxação do lucro imobiliário abusivo. O mencionado achatamento utópico é uma atitude caudatária do pós modernismo, dos anos 70 e 80, que decretou a extinção das metanarrativas da modernidade, como o marxismo e o iluminismo; a rejeição dos universais para celebração das particularidades identitárias. Travestido de realismo e cientificismo, mas na verdade governado por um positivismo redutor, o pós modernismo invertia a crítica marxista ao utopismo na sua diferenciação entre socialismos utópicos e científicos. O pós moderno repetirá a exaustão que os movimentos utópicos eram autoritários, que em nome da conquista da igualdade suprimia liberdades individuais, e se envolvia com um aparato burocrático, gerador de uma casta de privilegiados, invariavelmente associados ao poder estatal. Foi Jean Françoise Lyotard, no seu A condição pós moderna, um ex socialista e anti stalinista, que reinvindicou para as ciências a condição de independência com relação aos meta discursos explicadores da modernidade. Desde os movimento de 1968, em Paris e no mundo todo, que as esquerdas apontavam em sua maioria a perda do apelo utópico do bloco soviético. No Brasil, no final da Ditadura Militar em 1980 emerge um texto emblemático, A democracia como valor Universal, de Carlos Nelson Coutinho, que reafirmava o vínculo inseparável entre socialismo e democracia. Neste texto COUTINHO 1980, pág.14 menciona-se, que essa preocupação retrocedia aos anos cinquenta com Leandro Konder  e aos anos sessenta em documentos oficiais do Partido Comunista Brasileiro (PCB) (3).

"Simplificando ao extremo, considera-se “pós-moderna” a incredulidade com relação aos metarrelatos. É, sem dú­vida, um efeito do progresso das ciências; mas este pro­gresso, por sua vez, a supõe. Ao desuso do dispositivo metanarrativo de legitimação corresponde sobretudo a crise da filosofia metafísica e a da instituição universitária que dela dependia. A função narrativa perde seus atores (functeurs), grandes heróis, grandes perigos, os grandes périplos. e os grandes objetivos. Ele se dispersa em nuvens de elementos de linguagem narrativos, mas também denotativos, prescritivos, descritivos etc., cada um veiculando consigo validades pragmáticas sui generis. Cada um de nós vive em muitas dessas encruzilhadas. Não formamos combinações de linguagem necessariamente estáveis, e as propriedades destas por nós formadas não são necessariamente comunicáveis." LYOTARD 1986 pág.XVI 

O problema foi que essa independência se esquecia de um meta discurso da modernidade, não puramente filosófico, que era a narrativa dos economistas fisiocráticos, que celebravam a colonização do real pelo "Mercado". LYOTARD 1986, simplesmente não mencionava o "Mercado", a competição e a propriedade como uma meta narrativa explicadora, se restringindo a mencionar o iluminismo e o marxismo, assim naturalizou-se, o que era também uma construção ideológica. A naturalização do "Mercado", da propriedade privada e da expansão do cercamento dos comuns que emergia desde o Renascimento como uma forma de comportamento ético, que privilegiava a acumulação monetária, em alguns momentos, em detrimento até mesmo da produção. O humanismo renascentista, o iluminismo e o marxismo, na verdade celebraram de forma recorrente a emergência do individualismo e a autonomia da consciência do cidadão, no entanto sempre cotejaram essa emergência frente aos interesses do "Comum", a Res Pública. A vida coletiva, ou os interesses da maioria deveriam se sobrepor e regular a ideia da competição individual e isolada, sobrepondo a ideia compensadora da colaboração e do Comum. Há muito, que alguns autores brasileiros destacam o controle dos "Interesses Comuns" frente ao individualismo exacerbado, particularmente no campo da arquitetura e da cidade, ainda no Renascimento BRANDÃO 1991 e BRANDÃO 2000 apontam a ideia de uma ética do construir. Apesar disto, de uma hora para outra, nos anos 80 E 90, essa ideologia anti-ideológica e pseudo-científica de LYOTARD 1986 consagrava a crença que a crítica e a transformação da realidade, em favor da dignidade humana, em sua essência seria possível com a intensificação dos mecanismos de fortalecimento do mercado e do individualismo. Era a chave para sua apropriação perversa e interessada em favor do conservadorismo e do neoliberalismo, que se transformou na chave explicadora do real, por sua omissão e naturalização não intencionada de LYOTARD 1986. É claro, que tudo isto talvez passasse despercebido se não houvesse ocorrido: a eleição na Inglaterra de Thatcher em 1979 e nos Estados Unidos de Reagan em 1981, a queda da União Soviética em 1989, a publicação na década de 1990 do Fim da História de Francis Fukuyama, que incentivaram a celebração acrítica do mercado. Na verdade, uma sinergia de fatos, uma "afinidade eletiva" (4) de pensamentos e conquistas do pensamento conservador, que irão determinar o encolhimento dos horizontes utópicos.

"Na arquitetura, entre as marcas do pós modernismo estava (ou está) a rejeição dos universais em favor de particulares: "ecletismo radical", como disse um crítico influente. Mas O Fantasma da Utopia começa e termina com a "questão da habitação" que, para arquitetos e urbanistas praticamente em todos os lugares do século XX, era a própria definição de uma questão universal, assim como a questão climática é hoje. O fato de tantas sociedades terem respondido a essa questão de maneira diferente é uma marca de sua universalidade, não porque a habitação seja um tipo de construção universal que reflete necessidades universais, mas porque ao ser colocada como uma questão - Como viver juntos? - refere-se a antagonismos básicos incorporados ao campo comum da humanidade." MARTIN 2022 pág.18

A utopia, nas Passagens de Paris, como um Estado em 
suspensão  de Walter Benjamim

O campo da arquitetura e do urbanismo, no final das décadas de 60 e 70 passa também a excluir a possibilidade utópica, se envolvendo com jogos de linguagem plurais que pretendem se adequar às maneiras de construir de cada lugar. O pós modernismo não pode ser considerado em bloco como conservador, no entanto ao privilegiar os jogos de linguagem acabou por privilegiar as narrativas hegemônicas da classe dominante, silenciando os discursos pulverizados do precariado em sua luta por construir seu abrigo. É interessante perceber esta lógica, como na sua árvore genealógica do pós modernismo do crítico JENCKS 1981, a localização de Hassan Fathy um arquiteto egípcio que recuperou a utilização do adobe na conformação de abóbodas, num modo extrativista e recorrente na cultura do construir árabe é classificado como "revivalismo direto" e não como "neo vernáculo". Num mundo onde um meio como a linguagem é o mais importante, a versão e o discurso, volta e meia é mais dominante, que o fato em si. No entanto, era cada vez mais claro a absolutização do presente contínuo e acrítico, que passa com as TICs a ser soterrado por dados e fatos, realmente novos e inusitados, mas governados pelo "Mercado". O debate entre a expressão "se transforma", que seria diferente de, "se altera", justamente pelo fato de que a "alteração constante" permite tanto a idéia de conversão de uma determinada realidade em outra, como também suporta a idéia de uma simples modificação de condições superficiais ou temporárias, é algo, Escolástico. Nessa nova Idade Média, onde o real de curto prazo entorpece a crítica de longo prazo numa alienação novidadeira, que claramente cooptou a academia de forma definitiva. Não se trata de não reconhecer que a realidade esta sendo alterada rápida e constantemente, mas a referência de que as bases de reprodução da vida, de sua sustentação não idealizada - o pagamento das contas, a obtenção de comida, educação, saúde e habitação - permanecem inalteradas, sendo dilapidadas pela mentalidade de que o trabalho foi superado pelo empreendedorismo individual. Na verdade, a reprodução da vida como a conhecemos estão em cheque, ou melhor foram esquecidos, sendo recalcadas pela celebração da competição desenfreada e pela negação da possibilidade da solidariedade, da cooperação entre humanos. Os únicos que alcançaram uma certa previsibilidade na sua reprodução da vida em nossa contemporaneidade são os financistas, que jogam diariamente no sistema financeiro internacional, sempre ganhando e enriquecendo. Nessas condições, o risco de aniquilação voluntaria e domesticada da espécie humana talvez nunca tenha sido tão alto, pela falta absoluta da utopia revolucionária. O maior risco que corremos hoje é o de sermos extintos pela celebração acrítica de um progresso do "novo" repetitivo e inevitável da produção exclusivamente mercantilizada. A guerra nuclear onde alguns poucos poderosos tomam decisões que afetam as massas, a civilização produtivista do cansaço depauperando os recursos naturais e estressando o clima, a crença num progresso tecnológico autômato desprovida de memória que celebra a repetição do sempre igual travestido de novidadeiro exterminarão os seres humanos, de forma ordeira e comportada. Tal risco de migrarmos em massa, voluntariamente e de forma acrítica fazendo nossas consciências se dirigirem para dentro da matrix, inclusive pagando caro para fazê-lo é fruto de um fetiche do progresso. É provável que muitos seres humanos dediquem todo trabalho de suas vidas materiais à conquista de uma "eternidade imaterial", sem pensar no futuro das próximas gerações. 

As teses sobre a Filosofia da História de Walter Benjamim, 
um autômato mestre em xadrez; "Na verdade, um anão 
corcunda, mestre em xadrez, estava sentado dentro dela,
dirigindo a mão do boneco através de cordas. Pode-se 
imaginar um equivalente dessa aparelhagem na filosofia.
Vencer deve sempre o boneco que se chama de 
"materialismo histórico"

O movimento que estamos assistindo passivamente é de abdicação voluntária e onerosa de toda e qualquer faculdade emancipatória do ser humano, da utopia revolucionária, em favor de uma dominação espetacular plena, promovida por uma lógica de financeirização do cotidiano, mas controlada por um aparato tecnológico dominado por poucos beneficiários. Não é a primeira vez na história da humanidade que estamos flertando de perto com potencialidades tecnológicas desconhecidas e inimagináveis, se alguns algoritmos de aprendizado de máquinas já são capazes de produzir, autonomamente, novos algoritmos de atualização e evolução de suas próprias capacidades, ou seja, um algoritmo inicialmente programado pode alterar suas próprias funções e aplicações, sem o conhecimento ou anuência de seus programadores humanos, cabe a pergunta; a quem interessa esse progresso? Na década de 30, no ambiente asfixiante da ascensão do fascismo, do nazismo e da cristalização da burocracia soviética na Europa assistimos vozes como Antônio Gramsci (1891-1937) e Walter Benjamim (1892-1940) se levantarem contra o produtivismo industrialista, o fordismo e o taylorismo como formas de alienação do trabalho. GRAMSCI (2002), Caderno 25, pág129; As margens da História, nos anos 30, a partir da conceituação de uma história única, que apagava, neglicenciava e reprimia os relatos históricos dos grupos sociais subalternos, construindo uma história dos vencedores e uma história dos vencidos. Uma crítica que apontava claramente para o apagamento dos relatos, discursos, técnicas dos grupos sociais subalternos, demonstrando de forma contundente o componente de classe e de interesses do desenvolvimento tecnológico. O exemplo atual, mais emblemático, ilustrando a persistência do interesse de classe na eleição tecnológica dominante apontada por Gramsci é o caso da Wikipédia, uma enciclopédia colaborativa, que corre o risco da supressão, se não alcançar formas de monetização. Por outro lado, BENJAMIM (1985), pág.153, em Rua de Mão Única, dos anos 40, apontava a continuidade catastrófica do progresso técnico submetido às classes dominantes, que operavam no sentido da "dominação da natureza", e que era urgente revolucioná-las no sentido do "domínio da relação entre natureza e a humanidade". Exatamente, a questão atual da sustentabilidade das práticas humanas sobre a face do planeta, que se não forem revolucionadas em seu cotidiano significarão a aniquilação da vida frente às capacidades adquiridas pelas máquinas automatizadas. As críticas de Gramsci e Benjamim não são de negação da técnica, mas sua redefinição radical, a partir do combate ao mito de que o desenvolvimento técnico trará por si mesmo uma melhoria das condições sociais, proporcionando a liberdade aos homens. Na verdade, o importante agora a denunciar são as ideologias do progresso quantitativo, infinito, contínuo, linear e automático, que não apresentam qualquer correspondência com a experiência dos vencidos da história oficial, estatal e dominada pela lógica produtivista do capitalismo. A hipótese de que o capitalismo consiga superar a existência humana, já que a Inteligência Artificial e a Realidade Aumentada conseguem desempenhar o trabalho produtivo de forma mais eficiente é reducionista e ordenada por um progresso regressivo, que dispensa as classes subalternas como sempre fez. A diferenciação entre o tempo do calendário e o tempo do relógio, na tese XV sobre a Filosofia da História de Benjamim, talvez exemplifique bem a questão;

"A consciência de explodir com o continuum da história é característico das classes revolucionárias no momento de sua ação. A Grande Revolução Russa introduziu um novo calendário. O dia em que um calendário começa atua como um arrebanhador do tempo histórico. E, a rigor, é o mesmo dia que sempre reaparece configurado nos feriados, nos dias de comemoração. Os calendários não contam o tempo como os relógios. Eles são monumentos de uma consciência da história, da qual há cem anos não parece mais haver o menor traço na Europa. Ainda na Revolução de Julho havia ocorrido um incidente em que essa consciência exerceu seus direitos. Ao anoitecer do primeiro dia de lutas ocorreu que, em diversos pontos de Paris, ao mesmo tempo, foram, independentes entre si, disparados tiros contra os relógios das torres. Talvez devendo a rima o seu poder divinatório, uma testemunha então escreveu; 

"Irritados contra a hora - quem diria! -,
Os novos Josués, ao pé da torre, 
Atiravam contra os relógios para afastar o dia"" BENJAMIM 1985, pág.162

Portanto, permanece no longo prazo desde do advento da cidade industrial, uma questão central no nosso campo, da arquitetura e do urbanismo, a reconstrução da previsibilidade, de nossa capacidade de construir o futuro das próximas gerações. O plano e projeto como estruturadores de um outro futuro, construtor de esperança, não idealizada, mas ancorada diante de fatos banais e cotidianos, próprios da reprodução da vida, que garantam nossa sobrevivência. Por exemplo, como a recusa de considerar a moradia, uma mercadoria, restringindo-a ao valor de troca e não ao valor de uso, mas sim, um direito humano, assim como a educação, ou a saúde, ou a própria vida. Nossa história recente, a Pandemia de Covid19, pareceu nos doutrinar no sentido de que não será o mercado ou a competição desenfreada, mas a colaboração coletiva, o repúdio a monetização da vida, que nos resguardará de um futuro mecânico e impensado. A dimensão das atividades de plano e projeto, tão desprezadas em nossa contemporaneidade, envolvem exatamente uma lógica trans temporal entre passado, presente e futuro, como já apontado e defendido há cinco século por ALBERTI 2012, no Ra Edificatória, a arte de construir. Um tratado de arquitetura renascentista de 1452 com uma impressionante atualidade para o enfrentamento do fetiche do progresso dos nossos tempos, simplesmente por nos lembrar do Projeto, como realização física de uma vida melhor. Assim, pensa-se, que cabe a nós na academia no Brasil em 2023 pensar e engendrar a ampliação de horizontes utópicos, além da simples operação da mercantilização e financeirização generalizada, abandonado a celebração acrítica do nosso progresso regressivo. Nesse sentido, na década de 1943, um autor, Joseph A. Schumpeter publicou o livro Capitalismo, Socialismo e Democracia, que abordava a questão da "destruição criativa", já mencionada aqui, como um suposto equilíbrio do sistema que na verdade envolvia a ideia de que ninguém podia melhorar a sua situação sem piorar a de outra pessoa. Enfim, a radicalização da competição e não da solidariedade e contribuição no seio da produtividade, seja capitalista ou comunista, apesar de sua clara ineficiência no longo prazo para o sistema. A questão deve ser colocada em perguntas; o conhecido modelo oferta e demanda, ensinado em qualquer curso de economia liberal, funciona bem com a emergência dos monopólios e oligopólios? Devido a questão do declínio dos lucros nas atividades produtivas e ampliação constante do horizonte de consumo, como regular a tendência inevitável ao comportamento especulativo, não-produtivo dos ricos e endinheirados? A racionalidade sensível está do nosso lado, isto é do pensamento progressista, ou melhor libertário e anti-coercitivo e, não do lado conservador, reafirmador do poder e retrógrado que tem se pautado por uma estratégia de disseminação do medo entre nós, como forma de bloqueio da verdadeira mudança. 

Machado de Assis e a condição da escravidão no Brasil;
ironia e cinismo

Aliás, com relação a questão da desconfiança com relação aos horizontes utópicos e a ampliação de uma atitude cínica diante de nossa condição periférica no Brasil, já havia mencionado o conto do Machado de Assis (1839-1908), cujo o nome fiquei te devendo, que é o, "Pai contra Mãe", um conto terrível, que nos mostra o potencial irônico justamente na questão da escravidão, de um dos nossos maiores escritores. Aliás, no sentido de tentar vincular sua reflexão aos nossos problemas brasileiros sugiro o recente livro do Abílio Guerra - "Cultura Pau-Brasil; o encontro de Lucio Costa, Mario de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral"  Neste livro há a indicação de uma importante revisão bibliográfica sobre nossa complexa condição, o Brasil, uma realidade ainda por ser explicada e pensada de forma autônoma e crítica, como aliás fizeram nos anos 30 estes quatro pensadores. Nossa condição periférica, de nação explorada pelo sistema capitalista internacional, com suas especificidades na operação da construção do abrigo, da cidade e na ordenação territorial. O livro é uma inteligente aproximação e problematização do movimento modernista no Brasil, e suas pretensões de construção de uma forma específica de pensar e construir, mais sintonizada com o país. Por exemplo, no tema ainda do intelectual situado numa nação periférica, segundo Graça Aranha (1868-1931) - "A estética da vida", que é de certa forma contemporâneo, mais jovem que Machado, e que reconhecia a sua verve irônica e cínica como; 

"dissimula e ignora o grande elemento cósmico em que vive o espírito brasileiro. A esperteza de Machado de Assis iludindo a natureza tropical que o esmaga, e libertando-se de sua opressão pela ironia, não resolve o primordial problema da inteligência brasileira, que é o de vencer o terror do mundo físico e incorporar a si a natureza." GUERRA 2022 Pág.117 e 118. 

Por outro lado, um crítico mais próximo de nós, que também está no livro do Abilio Guerra,  é o Roberto Schwarz, que escreveu; "Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis" reitera e celebra a denuncia machadiana sobre a afetação da vida intelectual brasileira. Uma certa ambivalência ideológica de nossas elites cultas, que permanecem se enxergando como participantes de um "Ocidente" progressista e culto, mas que tira proveito do último sistema escravagista nessa parte do mundo, no tempo de Machado. E não só na virada do século XIX para o XX, nossa classe dominante de certa forma permanece dissimulando e recalcando as condições de seu precarizado super explorado, que lhe possibilitou um imenso desenvolvimento e acumulação, sempre e ainda sem qualquer divisão de renda. Uma importação contínua, acrítica e sem qualquer identificação com o solo local, com nossa auto construção, uma espécie de vergonha de si mesmo, com aquilo que já foi caracterizado como "as ideias fora do lugar". 

"fruto da incompatibilidade entre as condições locais e os valores importados, ressaltando o descompasso entre centro e periferia..." SCWARZ 1990, apud GUERRA 2022 Pág. 381

Estamos diante um mundo distópico, que se mostra incapaz de pensar um outro futuro, que não seja o da catástrofe ecológica, da automatização do progresso sem controle social e do extermínio da espécie humana. Na década de 30, diante de condições brutais de derrota, frente ao nazi-fascismo, frente a ditadura da burocracia stalinista e de cooptação do mundo do trabalho pela alienação produtivista, Benjamim e Gramsci mostraram um enorme capacidade de engendrar mundos a partir do destaque dado aos grupos sociais subalternos. Não se trata apenas, de dar destaque à capacidade descritiva da literatura, mas a ironia e a ilusão machadianas fazem parte de uma tradição das nações periféricas, onde a "aguda consciência do mimetismo e uma forma sutil de trazer a tona a alienante realidade social brasileira.", nos confrontam com um mundo controlado por um minoria. Esta questão tem sido central para mim, pois envolve a presença inescapável do projeto, da ideologia, e da hegemonia, que não seria possível ultrapassar pela simples manipulação de dados possibilitada pelas TICs. O ambiente novidadeiro e descontextualizado de nossas verdadeiras perspectivas é muito presente em nosso ambiente acadêmico e periférico, que idealiza de sobre maneira as reflexões desconectadas das reais condições de reprodução da vida. Afinal minha tese de doutorado foi "Projeto, Ideologia e Hegemonia; em busca de um conceito operativo para a cidade brasileira" (2007), que mencionava este debate a partir do "Complexo de Vira-Latas" do Nelson Rodrigues. Mas, que hoje tenho de reconhecer, ficava na superficialidade, pois o livro do Abílio Guerra - "Cultura Pau-Brasil; o encontro de Lucio Costa, Mario de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral" se aprofunda muito mais no tema, e portanto faz muito mais conexões. Inclusive, com conexões entre nossos povos originários e os pensamentos de Montaigne, século XVI e Rousseau século XVIII, particularmente nas ideias do Mario de Andrade (Macunaíma), do Oswald de Andrade (Manifesto da Poesia Pau-Brasil), do Lucio Costa e da Tarsila do Amaral. Talvez seja o caso de pensarmos sobre uma Utopia Preguiçosa, onde se festeja a contemplação de um mundo, onde;

"A partir do momento que o homem se põe a fazer música, versos, uma pintura, um traçado, não deve, se quiser permanecer autêntico, se escravizar às forças telúricas, mas saber extrair das coisas uma espécie de eternidade. Roberto Burle Marx embrenhou-se no coração da mata, e a resgatou em seus jardins, onde reencontra-se a vegetação da caatinga, dos planaltos, das serras e das praias." REGO, apud GUERRA 2022, pág.392

NOTAS:

(1) CHUL-HAN 2017 págs. 7 e 8 no livro A sociedade do Cansaço menciona uma cegueira no âmbito social em nossa sociedade; "Visto a partir da perspectiva patológica, o século XXI não é definido como bacteriológico nem viral, mas neuronal. Doenças neuronais como a depressão, transtorno do déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (TDAH), Transtorno de personalidade limítofre (TPL), ou a Síndrome de Burnout (SB) determinam a paisagem patológicado começo do século XXI... Nesse dispositivo imunológico, que ultrapassa o campo biológico adentrado no campo e em todo o âmbito social, ali foi inscrita uma cegueira."

(2) SCHUMPETER publicou o livro Capitalismo, Socialismo e Democracia em 1943, antes do final da 2a Guerra Mundial, num mundo que compartilhava de um consenso de que as tendências especulativas do capitalismo deveriam ser reguladas para que fossem evitadas as matanças vivenciadas na Europa.

(3) No livro há a citação do secretário geral do PCB, Luiz Carlos Prestes, que afirmava no ano de 1961: "Os comunistas brasileiros reafirmam ainda uma vez que não são contra o regime democrático. Ao contrário, lutam pela democracia e são favoráveis à pluralidade de partidos, que exprime os diversos interesses  e tendências do povo brasileiro. Reconhecem os comunistas que o povo brasileiro é herdeiro de um rico patrimônio de tradições liberais. Essas tradições são valores que os comunistas querem enriquecidos para todo o povo e não apenas para as camadas mais afortunadas, como, de fato, tem ocorrido em nossa história." COUTINO 1980 pág.14

(4) A ideia de "afinidade seletiva" inaugura as reflexões de LÖWY 2020 sobre a Utopia e o Messianismo Judaico, e tem definições algo imprecisas, tais como; "um tipo particular de relação dialética que se estabelece entre duas configurações sociais ou culturais, não redutível á determinação casual direta ou à influência no sentido tradicional." LÖWY 2020 pág.6, ou ainda; "quando dois seres ou elementos buscam-se um ao outro, atraem-se, ligam-se um ao outro e a seguir ressurgem dessa união íntima numa forma (Gestalt) renovada e imprevista." LÖWY 2020 pág.9

BIBLIOGRAFIA:

ALBERTI, Leon Battista - Da arte do construir, tratado de arquitetura e urbanismo - Editora Hedra, São Paulo 2012

BENJAMIM, Walter - Rua de mão única - Editora Brasiliense, São Paulo 1987

________________- Walter Benjamim, sociologia, Teses sobre a filosofia da história - Editora Ática São Paulo 1985

BRANDÃO, Carlos Antônio Leite - A formação do homem moderno vista através da arquitetura - AP Cultural, Belo Horizonte, 1991

___________ - Quid Tum? O combate da arte em Leon Battista Alberti - Editora da UFMG Belo Horizonte 2000

BRAUDEL, Fernand - Escritos sobre a história - Editora Perspectiva, São Paulo 2005 

COUTINHO, Carlos Nelson - A democracia como valor Universal, notas sobre a questão democrática no Brasil - Editora Ciências Humanas São Paulo 1980

CHUL-HAN, Byung - A sociedade do cansaço - Editora Vozes Petrópolis RJ 2017

ENGELS, Friedrich - Sobre a questão da habitação - Editora Boitempo, São Paulo 2015

ENGELS, Friedrich - A situação da classe trabalhadora na Inglaterra - Editora Boitempo, São Paulo 2010

GRAMSCI, Antônio - Caderno 5,  Quaderni 25; As margens da história, História dos Grupos Sociais Subalternos - Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 2002

GUERRA, Abilio - Cultura Pau-Brasil; o encontro de Lucio Costa, Mario de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral - Romano Guerra Editores, São Paulo, 2022 

HARARI, Yuval Noah - Sapiens, uma breve história da humanidade - LP&M, Porto Alegre 2018

JENCKS, Charles - El lenguage de la Arquitectura posmoderna - Gustavo Gilli, Barcelona 1981

LYOTARD, Jean françoise - A condição pós moderna - Editora José Olimpio, Rio de Janeiro 2009

LÖWY, Michael - Redenção e utopia: o judaísmo libertário na Europa Central (um estudo de afinidade eletiva) - Perspectiva, São Paulo 2020

MARTIN, Reinhold - O Fantasma da Utopia: arquitetura e pós modernismo, outra vez - Perspectiva, São Paulo 2022

SCHUMPETER, Joseph A. - Capitalismo, Socialismo e Democracia - Editora UNESP, são Paulo 2017

SCWARZ, Roberto - Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis - Editora Duas Cidades, São Paulo 1990

ZUBOFF, Shoshana - A era do capitalismo de vigilância; a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder - Editora Intrínseca, Rio de Janeiro 2020