segunda-feira, 20 de junho de 2022

O Renascimento Italiano

A Catedral de Santa Maria del Fiori
em Florença, com o Batistério,
o Campanário de Giotto e a 
Cúpula de Bruneleschi

Dentro do conjunto de textos, publicados aqui neste blog que se articulam com a disciplina Teoria e História da Arquitetura 1, no âmbito da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU-UFF), o último tema é o Renascimento Italiano. Portanto, a disciplina percorre os seguintes módulos da história ocidental; a Pré História, a Antiguidade Pré Classica, a Antiguidade Clássica Greco-Romana, a Idade Média e o Renascimento. No sentido, de refletir sobre a História dos grupos subalternos, ou sobre Estudos Pós Coloniais, junto com o módulo da Antiguidade Pré-Clássica é abordado o Império Inca, como um fenômeno histórico pré-colombiano de suma importância para questionar o Euro-Centrismo hegemônico. No texto, As Sociedades Pré Colombianas, o exemplo do Império Inca na América do Sul busco mostrar como a história é um livro aberto possibilitador de novas narrativas, que questionem a supremacia Euro Cêntrica de nossa cultura hegemônica. Mas, o Renascimento, abordado no contexto da disciplina é o renascimento italiano, um fato histórico de suma importância para a cultura urbano arquitetônica da humanidade com exemplos construídos, reflexões teóricas e consequências notáveis para o nosso presente. Aquilo que ficou conhecido como Baixa Idade Média pela historiografia corrente - do século IX ao XV - nos mostra o renascimento das cidades e da cultura do mercado, a emergência dos comerciantes e banqueiros, a retomada de atividades econômicas adormecidas, o declínio do sistema medieval e a emergência do capitalismo. Aquilo, que muitos autores chamam da Longa Transição - ARRIGHI 1997, BRAUDEL 1998, POLANIY 2000 - na qual se percebe a emergência da ideologia da propriedade privada, seus cercamentos, a emergência de uma mentalidade contratual, e a expressão personalizada de determinadas obras e esforços. Talvez a cidade seja a demonstração mais palpável e concreta destes ocasos e emergências, e dentre elas; Florença, seja a mais emblemática e concreta dessas transformações, concentrando numa obra como a Cúpula de Santa Maria del Fiori, de Fillipo Bruneleschi (1377-1446), todo o espírito de um novo tempo. A Catedral, que já tinha agregado manifestações notáveis como o Batistério e o Campanário de Giotto, iniciara sua obra a partir da demolição da antiga igreja de Santa Reparata em 1294, e a partir do projeto de Arnolfo di Cambio (1245-1310) do final do século XIII. Até o concurso da Cúpula convocado pela Ópera del Duomo, em 19 de agosto de 1418 para cobrir o altar mor era a obra que mobilizava e sintetizava uma nova prática e sensibilidade, que emergia. A convocação divulgada por toda a cidade e na região da Toscana, declarava:

"Quem desejar apresentar qualquer modelo ou projeto para a cúpula principal em construção pela Ópera del Duomo seja para armação, andaimes ou outras coisas, ou qualquer aparelho para elevação de cargas relativo à construção e à perfeição da mencionada cúpula ou abóboda, deve fazê-lo antes do final do mês de setembro. Se o projeto for utilizado, a pessoa terá direito a um pagamento de 200 florins." KING 2013 página 13


Era uma quantia razoável para um desafio enorme, pois o vão do octógono a ser coberto tinha um diâmetro de 43,12 metros, sendo maior que a dimensão do Panteão em Roma, e estava a uma altura de 58,19 metros do piso da cidade, muito mais alta do que qualquer das abóbodas das catedrais góticas da França. O feito já foi comentado aqui nos textos do blog, com os títulos de; A cúpula de Santa Maria del Fiori de setembro de 2014 e Brunelleschi e a Cúpula, fragmentação e coesão no processo de projeto; da concepção inicial ao executivo de janeiro de 2021, pois é considerado um marco na história humana da cultura do construir. Nas narrativas da história, tal feito marca a constituição da moderna profissão de arquiteto, um profissional que a partir da análise do contexto formularia uma solução mais adequada, conciliando; técnica do construir, materialidade, custos e estética. Brunelleschi, na verdade pertencia a guilda da Seda (Arte della Seta), e dentro dela prestara juramento como mestre ourives, e pertencia a uma geração que empreendeu a reconstrução de Florença, após esta ser devastada pela Peste Negra, que a atingiu nos anos de 1399-1400, quando ele tinha 22 anos, um ano após sua aceitação nesta corporação de ofício. Mas, segundo VASSARI 2011 (Giorgio Vassari 1511-1574), o primeiro historiador da arte, Filippo Brunelleschi tinha um interesse e talento nato pelo desenho e pela pintura, convencendo a seu pai que tinha planejado outro ofício mais nobre para o filho. O fato é que o pai de Brunelleschi também já havia demonstrado interesse no campo da construção, tendo participado de um comitê de assessoramento da Ópera del Duomo em 1367, que certamente mobilizava os mais nobres cidadãos de Florença. Essa concentração na personalidade de um homem das responsabilidades de uma obra, vinha se manifestando na Itália desde tempos pretéritos, basta vermos a cronologia; São Francisco (1181-1226); Arnolfo di Cambio (1245-1310); Dante Alighieri (1265-1321); Giotto di Bondoni (1267-1337); Petrarca (1304-1374); Bocaccio (1313-1375); Fillipo Bruneleschi (1377-1446); Lorenzo Ghiberti (1381-1455); Leon Batista Alberti (1404-1472);  Nicolau Maquiavel (1469-1527). No campo da construção declina as determinações e o anonimato das Guildas, e passa a se destacar a autobiografia, as interações com seu tempo, a manipulação e o acesso ao conhecimento humano disponível.

"...Filippo disse: "Senhores, considerai que não é possível construir essa abóboda de outra maneira; podeis rir de mim, mas sabereis (se não fordes obstinados) que não se deve nem se pode obrar de outro modo. E a quem quiser fazê-la da maneira como proponho, digo ser necessário que seja usado o arco agudo de quatro pontos, e que haja duas abóbodas, uma por dentro e outra por fora, de tal modo que seja possível caminhar entre as duas. E, nas arestas dos ângulos das oito faces, com dentilhões de pedra, será possível amarrar a edificação em toda a sua espessura, circundando suas faces com tirantes de madeira de carvalho. E é preciso pensar na iluminação, nas escadas e nos condutos, por onde a água da chuva possa sair. E nenhum de vós pensou que é preciso cuidar para que por dentro haja andaimes que possibilitem fazer os mosaicos e uma infinidade de coisas difíceis, mas eu que já vejo a abóboda construída, sei que não há outro modo  nem outro caminho para construí-la, senão este que expus." E, exaltado com a exposição, quanto mais procurava facilitar a compreensão de seus conceitos, para que lhes dessem ouvidos, mais dúvidas suscitava, fazendo-os acreditar menos e considerá-lo besta e charlatão. Por isso, não querendo sair depois de ser dispensado várias vezes, foi carregado para fora do recinto pelos serviçais e passou a ser visto como doido varrido." VASSARI 2011, página 235

Seção das duas cúpulas de Brunelleschi e seu
complexo processo de cosntrução sem escoras
e cimbramentos de madeira

Como se percebe na citação de VASSARI 2011, a auto expressão da genialidade não foi feita sem resistência, chegando mesmo a considerá-la como fora do juízo, mas ela envolve a conquista de um direito humano moderno, na qual o indivíduo ganha o dever de criticar a si mesmo e a sua comunidade no seu pensar e agir, como participante de um projeto geral da humanidade. A humanização do homem será o dogma do humanismo, presente na Renascença italiana, de forma concreta na execução da Cúpula de Santa Maria del Fiori; uma fusão entre artes e técnicas usuais e distantes nos mundos da vida florentinos. Afinal, se utilizava de duas abóbadas, uma interna baseada na distante técnica persa de execução de cúpulas a partir do entrelaçamento de tijolos com 2,20 metros de espessura, e outra externa, com 1,30 metros baseada na técnica gótica das cúpulas de aresta. Ambas juntas realizam o feito de vencer o vão de 43,12 metros, mas também de se auto suportarem sem escoras e cimbramentos naquelas alturas, com um espaço entre elas de 1,20 metros, que até hoje nos permite o acesso ao lanternim no seu topo.  A conquista não foi simples e livre de derrotas e frustações, afinal em 1401, o mesmo Brunelleschi participou de um outro concurso, as duas portas de bronze do Batistério - as portas norte da emblemática edificação(1) - sem ser o vencedor, que caberia a Lorenzo Ghiberti (1381-1455), mais jovem que ele, 4 anos. O concurso bem mais simples do que o do Duomo da Catedral, tinha como tema a decoração das duas portas do lado norte, com o enredo do Sacrifício de Isaac, o filho de Abraão, que está no Velho Testamento da Bíblia, e que deveria ser representado em dez painéis com medidas pré fixadas nas duas faces das portas. Na verdade, dois conselheiros da Calimala, Palla Strozzi e Matteo Villani, a poderosa corporação dos mercadores e responsável pela edificação do Batistério, dedicado a São João Batista eram estudiosos humanistas afeitos aos escritos de Plínio, o Velho; "que descrevia essas antigas competições em termos radiantes e sugeria que o próprio ato de provar a si mesmo através da competição dava ao artista seu posto na sociedade." (WALKER 2005, página 40) O estranho e inusitado na competição era a idade de todos os participantes convocados que eram bastante novos, com exceção apenas de Niccoló d' Arezo, que já tinha cinquenta anos de idade todos os outros tinham de trinta para menos; Ghiberti tinha 20 anos e Brunelleschi, um pouco mais velho, estava com 24 anos. O juri com 34 representantes se fixou no trabalho desses dois jovens, decidindo por uma solução de compromisso, que mostra a dificuldade encontrada na seleção do melhor trabalho entre os dois jovens artistas (2).

"Assim, posto que aquele seria um grande empreendimento, que implicaria muito tempo e muitos recursos, deveria ser entregue a ambos os artistas, que trabalhariam em parceria. Quando Fillipo e Lorenzo foram convocados e informados da decisão, Lorenzo permaneceu em silêncio enquanto Fillipo recusou-se a aceitar a encomenda se a obra não fosse exclusivamente sua. Nesse ponto ele foi inflexível... Os responsáveis ameaçaram entregar a obra a Lorenzo se ele não voltasse atrás; ele respondeu que não queria parte do trabalho se não tivesse total controle, e que se eles quisessem entregar tudo a Lorenzo, que entregassem... A opinião pública da cidade ficou completamente dividida." WALKER 2005 página 47

A Cúpula de Santa Maria del Fiori, construção
e adequação ajustadas pelo contexto


Hoje as duas propostas podem ser vistas no Museu Bargello em Florença, lado a lado, mostrando-nos que a decisão da Guilda da Calimata era realmente difícil, testemunhamos a expressão de dois artistas complexos, narrando o sacrifício de Isaac, o filho de Abraão ofertado a Deus para acalmá-lo. É uma pena, que as outras cinco propostas não tenham se mantido para que pudéssemos ter um panorama mais abalizado desse momento do ocaso do gótico e a emergência da antiga tradição clássica greco romana temperada pelo humanismo renascentista (3). Mas o fato importante a destacar, é que, Brunelleschi, segundo Giogio Vassari no livro A vida dos artistas, a partir desse acontecimento se imporá um auto exílio da sua cidade Florença, indo para Roma fustigada por invasores, com seu discípulo Donatelo, para estudar as antigas ruínas. As circunstâncias históricas levaram Brunelleschi a uma maior reflexão sobre o ofício da construção, sobre as tecnologias utilizadas na antiguidade clássica e na sua contemporaneidade, como um patrimônio humano a ser rearticulado na sua experiência projetual em seu tempo presente? Não sabemos, mas certamente, o concurso das portas norte do Batistério moldaram as personalidades de Brunelleschi e Ghiberti, forjando no primeiro a necessidade da pesquisa sistemática, a ampliação do esforço de persuasão pelo projeto, a argumentação embasada e estruturada, que se manifestarão 27 anos depois no concurso da Cúpula de Santa Maria del Fiori. Competição, na qual os dois artistas estarão novamente frente a frente concorrendo, mas que nessa ocasião terá como vencedor Filippo Brunelleschi, que no entanto pelas desconfianças despertadas por suas certezas ou convicções será ironicamente fiscalizado por Lorenzo Ghiberti, pelo menos nos primeiros anos da empreitada da Cúpula. Mais uma vez aflora a expressividade particular da personalidade de Brunelleschi, mas também o domínio público sobre sua atuação e responsabilidades como um controle social, ou das elites da Ópera da catedral de Florença. Além da cúpula de Santa Maria del Fiori, Fillipo Brunellecshi realizou uma série de projetos notáveis, mostrando em todos seus trabalhos um senso de adequação ao contexto geral sempre apurado e sensível. 

O edifício do Hospital dos Inocenntis, (a direita) colonizou a Piazza da Santíssima Anunziata, com
suas generosas arcadas, que se reproduziram nas edificações que a sucederam; a Igreja da Santíssima
Anunziata (em frente) e o Museu da Galeria de Belas Artes (a esquerda)

A Capela Pazzi em Florença

Em 1419, o Hospital dos Inocentes na Praça della Anunziata em Florença, gerando uma generosa Loggia (arcada) para a Praça, que didaticamente conquistará o espaço colonizando-o, com a fachada da Igreja Santíssima Anunziata (1440), e com o Museu da Galeria de Belas Artes, com a generosidade da arcada. Entre 1420 e 1429 realiza a Igreja de San Lorenzo em Florença, uma antecipação notável de sua manipulação de um módulo como ordenador do nosso caminhar e do nosso olhar. Em 1429, a Capela Pazzi, uma igreja de planta central, uma sucessão hierarquizada de cúpulas, que nos mostra a sua incrível capacidade de composição de arranjos espaciais complexos Em 1436, a Basílica de Santo Spírito, na Praça de mesmo nome em Florença revela para nós toda a concisão modular de uma nova linguagem sóbria e direta, concentrada no módulo e desprovida de qualquer decorativismo. Por outro lado, é importante mencionar que a obra de Brunelleschi se consolidará na historiografia da arquitetura pela grande quantidade de reflexões e textos que gerou após a sua realização, um exemplo único onde uma obra construída suscita um caudal de reflexões teóricas. É visível, por exemplo no livro de Giorgio Vassari, das biografias dos artistas, o primeiro livro de História da Arte no ocidente, o espaço de maior número de páginas dedicado a Fillipo Brunelleschi, em comparação com outros artistas. Vassari, segundo ARGAN 1992, página 95, será o primeiro a relacionar a cúpula de Santa Maria del Fiori não só a construção do templo em si, mas a todo o espaço da cidade e da região da Toscana, demonstrando-nos a sua força de coesão e identidade. Outro importante teórico que lhe dedica grande consideração é Leon Batista Alberti (1404-1472), um humanista e intelectual de grande consistência, o empreendedor de um dos mais importantes tratados da história da arquitetura; o de Re Aedificatória, que também coloca Brunelleschi como uma figura ímpar. Também segundo ARGAN 1992 PÁGINA 95, Alberti lhe dedica o Tratado De Pintura (1435-36), escrevendo, quando "a cúpula havia sido fechada e ainda faltava a lanterna... a grande calota que havia aparecido (quase que por milagre, mas por um milagre da inteligência humana) no céu de Florença... " Chegando a dizer que a cúpula se erguia acima dos céus, refletindo a fundo seu papel na representação de uma centralidade para os povos toscanos, mas também a uma competição entre o céu físico e o metafísico criado pelo homem. Natureza e cultura se confrontam numa complementariedade expressiva, sem necessidade de mútua destruição, mas de contínua auto construção. Enfim, estamos diante de um paradoxo, afinal Brunelleschi não teorizou sobre sua própria obra, mas aglutinou um imenso conjunto de reflexões, que permanecem nos dias de hoje, não apenas sobre a sua cúpula mas sobre sua obra como um todo.

"A cúpula é uma representação porque visualiza o espaço que por certo é real ainda que não seja visível; mas ela é justamente a representação do espaço em sua totalidade e não de algo que acontece numa porção de espaço... Em suma, a extraordinária invenção de Brunelleschi, não é, no modo de ver de Alberti, um objeto arquitetônico, mas um imenso objeto espacial, vale dizer, um espaço objetivado, isto é, representado, pois cada representação é uma objetivação e cada objetivação é perspéctica porque dá uma imagem unitária e não fragmentária, o que implica uma distância ou uma distinção, bem como uma simetria entre objeto e sujeito, de forma que a representação não é a cópia do objeto, mas a configuração da coisa real enquanto pensada por um sujeito." ARGAN 1992, página 96

Igreja de São Sebastião em Mântua 1460,
plantas, corte e fachada inaugura o tema
do Piano Nóbile, o plano além do greide 
da cidade

Mas além de Brunelleschi, o renascimento italiano será pródigo em figuras notáveis, o já mencionado Leon Battista Alberti (1404-1472) era filho natural de Lorenzo Alberti, exilado da cidade de Florença, nasceu em Gênova. Frequentou a escola de Pádua do humanista Barziza, e se diplomou em direito canônico em Bolonha e depois em filosofia, era um intelectual humanista de grande cultura. Possui uma vasta obra que transita entre projetos, construções notáveis e reflexões teóricas de uma profundidade absoluta, que chegam até nossos dias com claros ordenamentos éticos e morais, ainda  válidos e operantes em nossa contemporaneidade. A simples compilação de sua obra teórica impressiona pela vastidão, diversidade e profundidade; ao seu primeiro texto, Philodoxius, uma imitação de sátira clássica de data incerta se sucedem; Tratado De Familia em 1432, Descriptio Urbis Romae 1432-34, Tratado De Estátua 1434-35, Tratado De Pintura em 1435-36, Tratado Della Prospettiva (perdido), Tratado De Re aedificatoria 1444-52, e outros. Além dessa obra teórica se somam os projetos e obras; Igreja de San Francesco em Rimini 1450, Palazzo Rucelai Florença 1453, Fachada de Santa Maria Novella Florença 1458, Igreja de San Sebastiano em Mântua 1460, Igreja de Sant’ Andrea em Mântua 1470. Alberti é a representação maior do homem humanista do Renascimento, que transita por diversos assuntos com imensa competência, numa performance que não poderá mais ser alcançada por nossa contemporaneidade fragmentada e cindida. Ele será responsável pela transformação do ato de construir em uma operação intelectual e pensada, operando uma importante mudança no campo da arquitetura e do urbanismo; de Arte Mecânica em Arte Liberal. Um dos seus conceitos mais interessantes, e que, continua operando em nossa contempraneidade é o de "concinnitas", uma ideia de ajuste ou sintonia entre personalidade e lugar. O termo "concinnitas" é central na conceituação de Alberti, comportando o termo grego “cosmos” entendido como um todo harmonicamente constituído, onde cada elemento ocupa uma posição determinanda e exclusiva. O termo também envolve no latim a reunião do prefixo "con" com o substantivo, "cinnus", que nomeava uma bebida de sabor agradável e inédito. Refere-se a ideia de se estabelecer uma concordância e colaboração de diferentes componentes. O termo foi utilizado no Philodoxus e no Defunctus, obras em que aparece o antônimo; "inconcinnitas", denominando incongruência, má disposição dos textos. No "Della Famiglia", aplica o termo para compreender a correspondência e a harmonia que se pode encontrar nos cantos, na musicalidade e nos versos. No "De pictura", a "concinnitas" é usada para nomear as boas escolhas que o pintor faz ao observar a natureza e a história; a exatidão e o equilíbrio se somam a variedade de temas, inclusive na sua elegibilidade. Segundo BRANDÃO 2016, Alberti parte de Cícero e de Nicolau de Cusa, que usam o termo "concinnitas" para denominar a acomodação da variedade num todo dentro de uma criação artística, construtiva ou retórica. A beleza era a combinação espiritual da "convenientia" e da "mediocritas" num princípio construtivo, envolvendo uma pauta médico, científica, pedagógica, política, ética e moral.

“De acordo com a doutrina de Alberti, “concinnitas” constitui o supremo desafio por meio do qual se manifesta a beleza de uma edificação. Ele se baseia na aplicação prática das leis fundamentais da arquitetura contidas em “numerus”, “finitio” e “collocatio”... A “concinnitas” não impõe limites à imaginação do arquiteto, porém a submete a uma suprema lei da ordem que põe em pé de igualdade os requisitos técnicos, artísticos e utilitários da obras.” HEYNDENREICH 1988 pág.44

Palazzo Rucelai Florença 1453, 
inserção urbana e fachada

Sua proposição de, "Bene beateque vivendum"; pretende generalizar o Bem Viver pleno para todos, argumentando que a humanização do homem se faz pela superação da luta pela sobrevivência, ou "beate uiuere", a vida feliz e justa que precisa ser universalizada para todos. Outra conceituação importante, é a "Virtú"; ou virtude, equilíbrio entre as partes e todo, o controle dos gastos públicos, a ética na mobilização dos recursos públicos para atender os interesses de todos. O "Decorum"; é o embelezamento articulado com a tectônica, com a contenção e a sobriedade, que todo arquiteto deve buscar por conta de uma ética do construir. O "Lineamento"; são os limites do desenho, da intervenção, os limites morais e éticos do construir, o confronto com as pré-existências, que no caso de Alberti era o contínuo construído gótico e medieval, das cidades, em seu reflorescimento comercial. Daí o seu tratado do "Re aedificatória" , no qual pensa como a sensibilidade de restauração do classicismo greco-romano se confronta com a identidade da cidade medieval. Neste tratado, também emerge a ideia da "Res publica"; a ética e moral de construir em sintonia com o interesse público, numa constante vigilância da "Libidine aedificanti"; o hedonismo inerente a atividade da construção, que restringe o interesse público e amplia a expressão personalista e isolada do arquiteto, a cupidez pessoal. Em Alberti estará sempre presente a ideia de um controle público sobre a personalidade humana, o conceito de "Hýbris"; natureza ou tendências inerentes ao humano, que precisam ser vigiadas. A "hýbris" humana, que deve ser contida e vigiada socialmente faz da vida na cidade a possibilidade de regulação e aprimoramento da personalidade humana, sempre sujeita a excessos de personalismos.

“Construir não é um ato solitário nem o produto de um ‘gênio’, como vimos no capítulo anterior, mas uma interpelação e ragionare contínuos e compartilhados, desde a proposição de se edificar algo até a avaliação posterior da obra.” BRANDÃO 2016 página 91

Palazzo Rucelai Florença 1453, planta
baixa, inserção urbana e foto do Pátio

Alberti será o porta voz de uma revolução moderna, que identifica uma capacidade nas comunidades citadinas de determinar seu futuro, imaginando sempre um viver mais adequado para as futuras gerações que se aprimora com o tempo. Mas ele ao mesmo tempo, não é crente numa natureza humana perfeita e premiada por uma racionalidade individual e isolada, mas profundamente dependente de aprimoramento público e coletivo por uma racionalidade interativa e auto regulada. Afinal, como ele próprio afirmava de forma peremptória; “ O homem nasce para ser útil a outros homens." e nesta busca deve pensar se o projeto a partir de uma relação transtemporal entre os vivos, mas também com os que nos precederam e com os que nos sucederão. Presente, passado e futuro reunidos pela e na arquitetura e na cidade, pelo urbanismo e pelo território controlado pela "urbis", que condiciona e é condicionada pela "civitas". Compreensão da civilidade como interconectada com a sofisticação do seu ambiente constrído, uma compreensão da arte no seu sentido latino de "ars" enquanto técnica, fato que envolve a técnica e a matéria, mas também o interesse público. Interessante destacar as seis categorias que formam ao mesmo tempo; a reflexão, a aproximação e a classificação do ato projetual de Alberti no tratado De Re Aedificatoria; regio, area, partitio, paries, apertio e tectum. Onde a "regio" seria o em torno de controle da cidade, que assinala e comprova seu poder de atração e coordenação regional, sua capitalidade. A "area" seria uma porção da "regio" delimitada, edificada e construída, portanto a superfície propriamente urbana e densa, o lugar habitado pela sociabilidade da cidade, que no tempo de Alberti era intramuros. "Partitio" eram as subdivisões de personalidades ou tempos da cidade, que lhe davam uma certa continuidade funcional ou formal. "Paries" ou "Parietes" eram as paredes ou muros, que adviam da necessidade de fechamento e de isolamento. A "apertio" eram os vãos, as janelas, passagens ou aberturas, que adviam da necessidade oposta aos muros, de relacionamento e conexão entre fechamentos e isolamentos. E por último, "tectum" eram as coberturas e sua diversidade de formas e tipologias. Enfim, uma metodologia de abordagem do ato de construir, indo das categorias mais gerais e globalizantes, como regio, area e partitio, até as que pensam o processo construtivo em si, como, paries, apertio e tectum. Esta reavaliação da obra de Alberti é fruto de uma revisão historiográfica de longa duração, segundo ARGAN 1992, iniciada por Adolfo Venturi, Mario Salmi e Cesare Brandi em 1956 no ambiente italiano, depois por Bruno Zevi em 1958 numa esfera mais ampla, pelo próprio Argan 1972, e por Carlos Antonio Leite Brandão no Brasil (4) a partir dos anos 1990s. Anteriormente, a obra de Alberti, desde as Vidas de Vassari, era vista, desacreditada e mesmo desdenhada, como excessivamente teórica ou como fruto de uma pretensão ambiciosa de um literato amador.

“Mas, quando porventura teoria e prática se juntam, não há nada que possa ser mais conveniente à nossa vida; seja porque a arte por meio da ciência se torna muito mais perfeita e rica, seja porque os textos e os conselhos dos artistas doutos têm em si  muito maior eficácia e gramjeiam maior crédito que as palavras ou as obras daqueles que só conhecem a simples prática, que eles executam bem ou mal.” VASSARI 2011; pág.288

Praça Pio II na pequena cidade
Pienza na Itália, obra de
Bernardo Rosselino

Mas além de Brunelleschi e Alberti, o renascimento será pródigo em figuras, projetos, obras e reflexões que até hoje nos encantam e seduzem, produzirá um vasto material de tratados de arquitetura impulsionados pela redescoberta do tratado de Vitrúvio. Estes tratados já foram tema de um texto aqui no blog com o título de Os tratados de Arquitetura e Urbanismo do Renascimento e do Maneirismo, ou a Arquitetura e Urbanismo; arte e ciência de março de 2022, podendo ser acedssado através do link; http://arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com/. Mas além dessa tradição teórica, o renascimento italiano apresenta uma série de obras construídas notáveis com um alto grau de sofisticação e apuro. A praça da pequena cidade de Pienza, local de nascença do Papa Pio II, a partir de um projeto de Bernardo Rosselino (1409-1463), um discípulo de Alberti, realizada entre 1459-62 é uma demonstração ímpar da convivência entre a cidade medieval e as premissas clássicas da nova sensibilidade, inclusive com truques de perspectiva. A reconstrução de Roma, que se inicia no Renascimento, permanece no Maneirismo, e apenas estará estruturada no Barroco reúne uma diversidade de papas, arquitetos e pensadores, desde Alberti, Bramante, Miguelângelo, Leonardo da Vinci, Bernini, Borromini. Um projeto único transtemporal, que pretende conferir legibilidade a uma cidade frequentemente visitada por peregrinos estrangeiros de toda parte da Europa e do Oriente que demandam uma compreensão sintética da cidade. Nesse esforço, um caso emblemático é a reconstrução da antiga Basílica de São Pedro, que registram intervenções de Alberti, Bernardo Rosselino, Donato Bramante, Rafael Sanzio, Antonio Sangallo, Miguelângelo Buonarotti, que se sucedem, chegando até Bernini que configura a Praça São Pedro circundada pela emblemática colunata. Outro exemplo notável, na cidade de Roma é a Praça do Campidóglio, projeto de Miguelângelo de 1539, uma demonstração de que a projetação enfrenta muitas vezes um território de pré-existências que deve ser avaliado e adequado a nova sensibilidade. A Praça do Campidóglio em Roma de Miguelângelo é o exemplo mais contundente de que o projeto não se restringe ao enfrentamento da tábula rasa e plana, mas ao enfrentamento de um território pleno de história, onde os elementos a serem conservados e os a serem descartados sofre o crivo rigoroso na sua constante busca pela auto-justificação.


A Igreja Il Redentore em 
Veneza, Andrea Palladio

Por último, este texto não pode deixar de mencionar um arquiteto representante do limite temporal entre a tradição clássica greco-romana e o maneirismo, que depois desembocará no barroco, o veneziano Andrea Palladio (1508-1560). Natural de Pádua, uma das cidades satélites da república Sereníssima de Veneza, a obra construída de Palladio talvez seja a manifestação mais cabal das premissas da harmonia serena e do equilíbrio absoluto, onde parte e todo se articulam de forma única. A villa Rotonda (1566), no entorno da cidade de Vicenza, a urbanidade mais Palladiana da Itália é uma demonstração cabal de seus preceitos de equilíbrio e harmonia. A casa ligada ao entorno rural de Vicenza, é o tema da burguesia rica na "regio" de Veneza, que busca no idílio rural próximo a natureza o relaxamento da vida agitada das aglomerações urbanas. Nesse tema das villas rurais, destaco aqui; a Villa Barbaro 1550 em Treviso, a Villa Cornaro também em Treviso em 1552, são trabalhos que entrarão para a história da arquitetura como Villas Palladianas. Um outro exemplar notável de sua prancheta será a Basílica de Vicenza de 1549, um projeto que se aproxima de maneira notável e sensível das pré existências medievais, se configurando como uma arcada de revestimento e uma abóboda de madeira modernas, que se destacam e contrastam com o passado. A articulação entre espaço externo e interno, pela arcada clássica, cria uma graduação notável, aonde se celebra a vida urbana, que se articula no governo da cidade a partir da interação entre os seus cidadãos. A coordenação entre os dois níveis da cidade feita pela Basílica de Vicenza é também um ponto notável do projeto, que nos mostra toda a habilidade de Palladio na definição da implantação de sua nova arcada. A aparição da abóboda sobre a rígida modulaçao da arcada coroa e dá legibilidade a hierarquia do programa nos mostrando de forma didática a celebração do tema do Conselho da cidade. Para finalizar, não há como não mencionar duas igrejas notáveis dentro do contínuo construído da cidade de Veneza; San Giogio Maggiore (1566) e Il Redentore (1577), nas quais os campanários são recuados com relação a fachada principal, num esforço que parece mostrar didaticamente a ordenação espacial em três naves. São igrejas que pontuam a paisagem da cidade de Veneza de forma marcante, possuindo claramente essa consciência do seu lugar nessa construção.

Com este texto se encerra a série de textos, que abordam o conteúdo da disciplina Teoria e História da Arquitetura 1, no âmbito da EAU-UFF, que se iniciou com a pré história, seguiu com os Impérios da Antiguidade Pré-Clássica (Mesopotâmia e Egito), enveredou pelo Império Inca, abordou a Antiguidade Clássica (Grécia e Roma), a Idade Média, e por fim o Renascimento Italiano. Os textos são: 

1. O filme A Guerra do Fogo e a disciplina de História e Teoria da Arquitetura 1, de outubro de 2021; 
2. A Divisão Social do Trabalho na antiguidade Pré Clássica, de dezembro de 2021; 
3. A disciplina História e Teoria da Arquitetura 1 e a Antiguidade Pré Clássica euro cêntrica, janeiro de 2022; 
4. As sociedades Pré Colombianas, o exemplo do Império Inca na América do Sul, de janeiro 2022;
5. A arquitetura Grega de fevereiro de 2022;
6. A arquitetura do Império Romano março de 2022
7. A Idade Média, de março de 2022
8. O Renascimento Italiano de junho de 2022

Os textos são na verdade apontamentos de aula, e são reflexões em andamento, fruto dos estudos desse amplo período da História da Humanidade, desde a Pré História até o Renascimento, certamente serão editados e re editados. E, claramente espelham aquilo que o filósofo grego Epicuro caracterizava como o "estudo", que na verdade servia de forma emblemática para mapear nossa própria ignorância, modelando nossa pretensão. Enfim, a pesquisa continua... 

NOTAS:

(1) A Edificação do Batistério retrocede a tempos imemoráveis, consta que era um antigo Templo Romano dedicado a Marte, deus da guerra, sobre este foi erigido uma pequena igreja cristã no século V ou VI, de forma octogonal.

(2) A ideia de entregar o trabalho aos concorrentes ( no caso dois artistas), também esteve presente no Concurso para a cidade de Brasília (1956), no parecer em separado do representante do IAB, Paulo Antunes Ribeiro, que defendeu a ideia de que as equipes dos diferenciados projetos deveriam se somar para produzir uma única proposta para a nova cidade.

(3) Os competidores eram: Lorenzo Ghiberti, Fillipo Brunelleschi, Simone da Cole, Nicollò d' Arezzo, Jacopo della Quercia de Siena, Francesco di Valdambrino e Nicolò Lamberti. Dois eram florentinos; Ghiberti e Brunelleschi, dois eram de Siena; Jacopo della Quercia e Francesco di Valambrino, e os outros três eram do território de Florença, a Toscana.

(4) Remeto aqui aos textos de ARGAN 1992, O Tratado "De Re Aedificaoria", mas também a toda a série de reflexões de BRANDÃO iniciada com: A formação do Homem Moderno vista através da arquitetura 1991; Quid Tum? O combate da arte em Leon Battista Alberti 2000; Na Gênese das racionalidades modernas, em torno de Leon Battista Alberti 2013; e Arquitetura, Humanismo e República, a atualidade do De Re Aedificatoria 2016

BIBLIOGRAFIA:

ARGAN, Giulio Carlo - O Significado da Cúpula e O Tratado "De Re Aedificaoria" em História da Arte como História da Cidade - Editora Martins Fontes São Paulo 1992

BRANDÃO, Carlos Antônio Leite - A formação do Homem Moderno vista através da arquitetura - Editora da UFMG Belo Horizonte, 1991

BRANDÃO, Carlos Antônio Leite - Quid Tum? O combate da arte em Leon Battista Alberti - Editora da UFMG Belo Horizonte, 2000

BRANDÃO, Carlos Antônio Leite - Na Gênese das racionalidades modernas, em torno de Leon Battista Alberti - Editora da UFMG Belo Horizonte, 2013

BRANDÃO, Carlos Antônio Leite - Arquitetura, Humanismo e República, a atualidade do De Re Aedificatoria - Editora da UFMG Belo Horizonte, 2016

CONTI, Flávio - Como reconhecer a arte Renascentista - Ed. Martins Fontes: São Paulo, 1984. 

GLANCEY, Jonathan - A História da Arquitetura. - Edições Loyola: São Paulo, 2001.

HEYDENREICH, Ludwig H - Arquitetura na Itália 1400-1500. - Cosac & Naify Edições: São Paulo, 1998.

KING, Ross - O duomo de Brunelleschi - Editôra Record Rio de Janeiro 2013

 LOTZ, Wolfgang - Arquitetura na Itália 1500-1600 - Cosac & Naify Edições: São Paulo, 1998.

PRINA, Francesca; DEMARTINI, Elena - Grande Atlante dell’Architettura dal Mile al Duemila - Electa: Milão, 2005.

VASSARI, Giorgio - Vidas dos Artistas (Le Vite de' piu eccellenti architetti, pittori, et scultori italiani da Cimabue, insino a' tempi nostri) - Editôra Martins Fontes São Paulo 2011

WALKER, Paul Robert - A disputa que mudou a Renascença, como Brunelleschi e Ghiberti marcaram a história da arte - Editôra Record Rio de Janeiro 2005

WUNDRAM, Manfred; PAPE, Thomas - ObraArquitetônica Completa: Palladio - Ed. Taschen, 2004