domingo, 12 de agosto de 2018

O livro; A nova razão do mundo, ensaio sobre a sociedade neoliberal

O livro dos autores Pierre Dardot e Christian Laval, A nova razão do mundo, ensaio sobre a sociedade neoliberal é uma das mais interessantes sínteses sobre a nossa contemporaneidade, regulada pelo declínio do Estado e a emergência de um individualismo solitário, que desdenha das variadas formas de solidariedade de associações de todos os tipos. Essa mentalidade conseguiu penetrar no tecido social, determinando uma série de práticas cotidianas de diversos atores na contemporaneidade. Essa naturalização de variados comportamentos, onde os indivíduos são submetidos a uma lógica de subjetivação concorrencial em todos os níveis, mina ao final a solidariedade e a cidadania.. Para os autores, a falência histórica do comunismo de Estado impulsionou o neoliberalismo, transformando-o na racionalidade única e soberana dos nossos tempos, exigindo das esquerdas uma imaginação política que recrie a crença na capacidade coletiva. A obra segundo os próprios autores foi escrita durante a fase de gestação da crise de 2008, e foi publicada na França no momento em que se constatava os estragos causados pelo neoliberalismo, e que, apesar disso não representou qualquer abalo para esse posicionamento, segundo os autores.

"A obra... foi escrita no período de gestação da crise financeira mundial de 2008*. Foi publicada no momento em que se podia constatar a amplidão dos estragos causados pelo neoliberalismo. A convicção de que tínhamos ao escrevê-la possuía fundamento: a crise não foi suficiente para fazer o neoliberalismo desaparecer. Muito pelo contrário, a crise apareceu para as classes dominantes, como uma oportunidade inesperada. Melhor, como um modo de governo." DARDOT  e LAVAL 2016 página7

Essa é a tese central do livro, que me parece algo inusitada, de que; a aguda crise financeira internacional de 2008 reforçou o neoliberalismo no mundo, fazendo com que Estados passassem a adotar planos de austeridade de forma recorrente. Há uma distinção importante feita pelos autores entre; "representação ideológica" e "normatividade prática", que não se reflete na ideologia do laissez-faire que guiava o liberalismo histórico. Sem dúvida, o discurso dos fundamentalistas contemporâneos do mercado há muito abandonaram a concepção de que o Estado se constitui como um entrave para o mercado, passando a proclamar a necessidade de garantir as suas condições de operação. Nessa condição, o Estado é fundamental para os neoliberais não para amparar as pessoas e os cidadãos, mas para garantir o marco jurídico institucional, que estabeleça e fomente a ordem concorrencial. Nesse sentido, é inevitável a analogia com a construção do golpe do impeachment da presidente Dilma Roussef no Brasil, aonde o comandante constitucional do afastamento, o Deputado Eduardo Cunha, foi afastado do cargo pelo STF dezoito dias depois do processo, denunciando o formalismo jurídico-político da trama. Duas questões fundamentais perpassam o livro, com uma recorrente afirmação, de que o neoliberalismo não constitui uma ideologia, mas sim uma racionalidade ou uma "normatividade prática", com a qual não concordo de forma alguma.

"Este é o ponto principal da questão: como é que, apesar das consequências catastróficas a que nos conduziram as políticas neoliberais, essas políticas são cada vez mais ativas, a ponto de afundar os Estados e as sociedades em crises políticas e retrocessos sociais cada vez mais graves? Como é que, há mais de trinta anos, essas mesmas políticas vem se desenvolvendo e se aprofundando, sem encontrar resistências suficientemente substanciais para coloca-las em cheque? DARDOT e LAVAL 2016 página15

A regra de funcionamento dos indivíduos contemporâneos, sem dúvida está pautada por uma lógica concorrencial, pró mercado e avessa a solidariedade, no entanto essa continua sendo para mim uma ordenação ideológica, produzida por interesses claros. A naturalização dessa forma de operar é a própria estratégia da dominação, que não está mais interessada apenas no governo, mas sim no auto governo das pessoas. O conceito de "racionalidade política" é extraído de Foulcault, que tinha uma relação direta com a "governamentalidade", no seu curso de 1978-79 no Collège de France, que se transformou no livro o Nascimento da Biopolítica** publicado em 2008 no Brasil. No qual, se identificavam os tipos de racionalidade utilizados para os procedimentos de direção da conduta dos indivíduos pelo Estado moderno. Enfim, e pelo menos para mim e não para os autores, o velho conceito gramsciano de hegemonia. A racionalidade governamental era, para Foucault; não uma instituição, mas uma forma de agir que pretende reger a conduta dos homens, dando-lhes a impressão de ser natural, a própria subjetivação da sua própria forma de agir. Habermas a caracterizava como racionalidade instrumental, distinguido-a da racionalidade intersubjetiva, que envolvia uma construção a partir do diálogo entre agentes igualmente empoderados. Enfim Foucault, a fonte primeira dos autores, persevera na crítica ao racionalismo de forma ampla e indistinta, enquanto outros pensadores procuraram resguardar e fazer distinções dentro da razão, para proteger a última fonte da possibilidade do diálogo. O foco estaria na superestrutura jurídica-política, e não mais no regime de acumulação, ou num agente de classe interessado e dirigente;

"A sociedade neoliberal em que vivemos é fruto de um processo histórico que não foi integralmente programado por seus pioneiros; os elementos que a compõem reuniram-se pouco a pouco, interagindo uns com os outros, fortalecendo uns aos outros... Na concepção marxista o capitalismo é, antes de tudo, um modo de produção econômico que, como tal, é independente do direito e gera a ordem jurídico-política de que necessita a cada estágio de seu autodesenvolvimento... O inconsciente dos economistas, como diz Foucault, que é na verdade o inconsciente de todo economicismo, seja liberal, seja marxista, é precisamente a instituição, e é justamente a instituição que o neoliberalismo, em particular em sua versão ordoliberal***, quer reconduzir a uma posição determinante." DARDOT e LAVAL 2016 página25

Mas muito além dessas considerações, a revisão histórica realizada pelos autores é notável, mapeando a conquista dos corações e mentes empreendida pelo neoliberalismo principalmente no campo europeu e anglo-saxão, notadamente na questão da União Europeia, a partir de 1938. A identificação de certos limites do marxismo para confrontar e colocar em cheque a ideologia, ou nova racionalidade do neoliberalismo é reafirmada pela velha fórmula da identificação de Marx, com um certo economicismo redutor. Aliás a principal argumentação dos autores, com a qual concordo inteiramente, é que o neoliberalismo se constitui, como algo muito além da política econômica, mas como um esforço de cooptação de sujeitos e suas práticas diárias e cotidianas, envolvendo nesse; o Estado, o mercado e a sociedade. Há na revisão histórica dos autores, uma questão fundamental do ponto de vista conceitual; a distinção entre liberalismo e neoliberalismo, com posicionamentos diferenciados e até, antagônicos sobre democracia, Estado e mercado. O reconhecimento das atrocidades praticadas no início de sua implantação pelo mundo, com as práticas criminosas perpetuadas no Chile, na Argentina, e na Indonésia testemunham a estratégia da guerra, que foi implantada por seus adeptos, e, como essa é dependente da atuação do Estado;

"Neste aspecto, há uma frase de Marx que não envelheceu: 'Na história real, como se sabe, o papel principal é desempenhado pela conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência'. Esse parto na violência revela, em primeiro lugar, o fato de que se trata de uma guerra que se trava por todos os meios disponíveis, inclusive o terror, e que se aproveita de todas as ocasiões possíveis para implantar o novo regime de poder e a nova forma de existência." DARDOT e LAVAL 2016 página20

Uma coerção muda, que sempre se interessou por desdemocratizar, enfraquecendo instituições e direitos, que o movimento operário parecia conquistar desde meados do século XIX, de forma contínua e progressiva, até o fim dos anos setenta do século XX. O neoliberalismo emprega técnicas de poder, que miram não apenas no mercado ou no Estado, mas no auto governo das pessoas comuns, nas suas condutas e subjetividades. O grande erro estratégico das esquerdas, aqui icluído David Harvey e outros, que tratam com desdém as posturas neoliberais é o não reconhecimento de que sua estratégia não é única e uni direcionada, por um projeto de classe, mas se conformando a partir de batalhas pontuais e específicas. Ao final é o reconhecimento de uma certa incerteza, que não convive mais com planos e projetos de alinhamento ortodoxo e uni direcionados, que não se restringem a modelar uma nova forma de acumulação, mas sim a disseminar uma prática cotidiana concorrencial, basicamente anti-solidária. A emergência dessa incerteza parece ter embaralhado de forma definitiva a própria autodefinição das classes sociais, que em nosso mundo se tornaram complexas e fragmentadas, tais como; burguesias transnacionais, industriais rentistas, profissionais do aparelho de justiça, aparato de mídia, sindicatos de tercerizados, e outras. A questão da governança assume um caráter central, dentro da ideia de operação biopolítica dos governados, impulsionados pela supremacia da ordem concorrencial, que preenche e determina todos os comportamentos. Assim, os autores as vezes parecem celebrar aquilo que criticam;

"A interpretação marxista do neoliberalismo nem sempre compreendeu que a crise dos anos 1960-1970 não era redutível a uma crise econômica no sentido clássico. Nesses termos, ela é estreita demais para captar a extensão das transformações sociais, culturais e subjetivas introduzidas pela difusão das normas neoliberais em toda a sociedade. Porque o neoliberalismo não é apenas uma resposta a uma crise de acumulação, ele é uma resposta a uma crise de governamentalidade." DARDOT  e LAVAL 2016 página26

Mas apesar dessas digressões foucaultianas****, os autores acabam assinalando a imensa hipertrofia financeira, que se autonomiza no mundo, determinando uma lógica perversa de acumulação, aonde quem tem dinheiro consegue multiplicá-lo, enquanto a grande maioria descapitalizada, apenas se endivida de forma crescente. Os autores enfatizam o conluio existente entre governos e finanças, que a partir das organizações mundiais incentivaram e incrementaram o rápido crescimento da lógica rentista, não havendo mais possibilidade de distinção entre Estado, produção e bancos. As rebeliões dos estudantes canadenses na cidade de Québec colocou em evidência os cruéis mecanismos de endividamento para toda a vida, a partir do aumento das taxas de matrícula. Para todo lado que se olha foram erodidos qualquer consideração a respeito das salvaguardas de bem estar, saúde e educação da população, a partir da defesa incondicional do sistema financeiro, que dita a perseguição de uma vaga política de austeridade. Os grandes grupos empresariais como a Renault seguem fomentando a competição entre os operários franceses, espanhois e romenos, cobrando-lhes produtividade, sugerindo até o absurdo do trabalho grátis aos sábados. O discurso recorrente é o de que "não existe almoço grátis", ou qualquer possibilidade de fomento à qualidade de vida sem envolvimento de custos é uma falácia. O problema é a ausência de um projeto de construção de coesão social, que demonstre um mínimo de vontade de inclusão, e um desejo de promover o bem estar de forma disseminada entre todos.

"A primeira parte desta obra mostra que, desde seu registro de nascimento, na grande crise de 1930, o neoliberalismo introduziu uma distância, ou até um claro rompimento, em relação à versão dogmática do liberalismo que se impôs no século XIX... Combater o socialismo e todas as versões do "totalitarismo" exigia um trabalho de refundação das bases intelectuais do liberalismo. É nessa conjuntura de crise econômica, política e doutrinal que se opera uma refundação "neoliberal" da doutrina que também não conduz a uma doutrina completamente unificada. Duas grandes correntes vão se esboçar a partir do Colóquio Walter Lippmann, 1938: a corrente do ordoliberalismo alemão, representada por Walter Eucken e Wilhelm Röpke, e a corrente austro-americana representada por Ludwig von Mises e Friedrich A Hayek." DARDOT  e LAVAL 2016 página33

Enfim, os autores também lançaram recentemente de forma conjunta, Comum, ensaio sobre a revolução do século XXI, em Paris em 2014 e com sua tradução pela Boitempo em 2017. São reflexões importantes sobre nosso tempo contemporâneo, que ainda precisam decantar muitas questões sobre nossas formas de operar no dia a dia.

NOTAS:

*O livro apresenta uma introdução de 2014 para uma versão em inglês reduzida da obra, e, segundo essa a obra foi publicada na França em 2009, portanto após a dramática crise de 2008 do capital financeiro internacional.
** FOUCAULT, Michel - O Nascimento da biopolítica - Editora Martins Fontes São Paulo 2008
*** Ordoliberais corrente do neoliberalismo nascida na Alemanha, que sempre deu êmfase a ordem constitucional e procedural.
**** Apesar de conservadora, uma das melhores críticas a Michel Foucault foi feita por MERQUIOR, José Guilherme - Michel Foulcault, ou o Niilismo de cátedra - editora Nova Fronteira Rio de Janeiro 1985. Na qual, Foucault é caracterizado como um lítero-filósofo, que envolvia um certo abandono da rigidez analítica da filosofia, em nome de um palatável glamour literário e ensaístico.

BIBLIOGRAFIA:

DADOT, Pierre e LAVAL, Christian - A nova razão do mundo, ensaio sobre a sociedade neoliberal - Editora Boitempo São Paulo 2016