sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Modernização ou a ideia de uma revolução burguesa no Brasil

As especificidades de nossa burguesia
O livro A revolução burguesa no Brasil, ensaio de interpretação sociológica é um dos clássicos da elucidação do que significa o nosso país, apontado por Antônio Cândido, numa lista de onze livros, no tema da modernização do país. Essa modernização é a passagem de uma sociedade agrário, senhorial e escravocrata para uma urbano, capitalista e competitiva, que assume no Brasil, por suas particularidades, segundo Florestan Fernandes, um caráter de "uma revolução dentro da ordem" ou "revolução encapuzada". Uma longa transição, que recalca o confronto entre as oligarquias agrárias-escravistas e os centros urbanos aonde pouco a pouco se instala o trabalho livre e o mercado competitivo. O livro está dividido em três partes e foi escrito em duas etapas; as duas primeiras partes, os capítulos um, dois, três e quatro, são fruto de um curso de Florestan Fernandes na USP nas Ciências Sociais em 1966, logo após o golpe civil-militar, pretendendo esclarecer as razões do nosso subcapitalismo, ou das resistências a nossa modernização. A terceira parte, os capítulos seis e sete e última etapa foi escrita no segundo semestre de 1973, com o autor afastado da USP pela ditadura civil-militar, e, abordam as frustrações de um sociólogo de oposição ao regime, que reconhece a acomodação entre arcaísmo e modernização promovida pela nossa história. O livro foi lançado em 1975, ainda antes da emergência do neoliberalismo, que se iniciará no final da década de setenta, com as eleições de Thatcher e Reagan, a expansão capitalista desses tempos ainda estava regulada pelo fordismo e o keynesianismo, que Florestan caracteriza como o capital monopolista. Mas apesar disso, os ensaios e propostas do livro ainda possuem argumentos convincentes, pois se referem a um tempo histórico de longa duração, da independência (1822) à Ditadura civil-militar (1964), destacando uma constância, a acomodação entre as elites decadentes e emergentes. Para FERNANDES 2006 essa acomodação irá gerar uma estrutura estamental, patrimonialista, que toma conta do Estado no Brasil e dita seus interesses não a partir da racionalidade comercial, mas a partir de hábitos oligárquicos:

"Sob semelhante clima de vida material e moral, um vendeiro, por exemplo, podia galgar dura mais rapidamente os degraus da fortuna. Em seguida, fazia por lograr respeitabilidade e influência, através dos símbolos da própria aristocracia agrária, convertendo-se em comendador e em pessoa de bem." FERNANDES 2006 página46

O Brasil nasce como os Estados Unidos, e outras nações na América, fora e além dos marcos culturais do mundo social europeu, afinal o latifundiário da monocultura exportadora não é o burguês ou o empresário capitalista europeu. Apesar disso, a história humana é também um partilhamento de singularidades, que muitas vezes se auto determinam de forma interligada através de padrões comuns de civilização. As noções de centro e periferia exatamente localizam os pontos determinadores e as periferias determinadas, que conformam no mundo ocidental aquilo que foi caracterizado como sua modernidade. Nessa equação há sempre a opção por manter ou renovar o padrão civilizatório compartilhado, mudando-o ou se adequando a ele. O que me parece ser uma característica marcante do Brasil, é uma certa incapacidade de pensar a si próprio com independência. Mas, apesar da absoluta necessidade dessa independência não há como negar que fazemos parte do desenvolvimento da civilização moderna ocidental.

"Há uma tendência, bastante forte e generalizada, no sentido de negá-la, como se admití-la implicasse pensar a história brasileira segundo esquemas repetitivos da história de outros povos, em particular da Europa moderna. A questão estaria mal colocada, de fato, se se pretendesse que a história do Brasil teria de ser uma repetição deformada e anacrônica da história daqueles povos...Trata-se, ao contrário, de determinar como se processou a absorção de um padrão estrutural e dinâmico de organização da economia, da sociedade e da cultura... Falar em Revolução Burguesa, nesse sentido, consiste em procurar os agentes humanos das grandes transformações histórico-sociais que estão por trás da desagregação do regime escravocrata-senhorial e da formação de uma sociedade de classes no Brasil." FERNANDES 2006 página37

E, aqui fica claro que a grande empresa agro-exportadora colonial, que se instala no Brasil a partir da descoberta portuguesa é em si um comportamento mercantil-capitalista, que no entanto drenava as riquezas de dentro para fora. Tal fato, pode ser comprovado pela parcela da renda apropriada pelo agente econômico interno, em comparação ao apropriado pela Coroa Portuguesa, pelos agentes de financiamento, refino e comercialização, que era muito pequena [1]. Assim se perpetuava no ambiente econômico-social do Brasil um estancamento da diferenciação societária e a eternização de um estado de heteronomia. O senhor de engenho da era pioneira da conquista, mais do que um empreendedor é um nobre ou militar, com uma mentalidade de comandante de uma unidade econômica estanque e fechada sobre si mesma, auto-celebrando sua dominação patrimonialista, exatamente pela presença da escravidão.

"Isolado em sua unidade produtiva, tolhido pela falta de alternativas históricas e, em particular, pela inexistência de incentivos procedentes do crescimento acumulativo das empresas, o senhor de engenho acabou submergindo numa concepção da vida, do mundo e da economia que respondia exclusivamente aos determinantes tradicionalistas da dominação patrimonialista... Até que ponto isso é verdade (e também, quão profunda e duradoura se tornou essa influência) evidencia-nos o que sucedeu com Mauá." FERNANDES 2006 página43

A inserção de um componente dinâmico nessa estrutura se dá com a emancipação do país,  com a vinda da corte portuguesa e a necessidade de constituição de um Estado nacional, gerando a intensificação de atividades econômicas em alguns centros urbanos, que promovem o aparecimento de novos tipos e agentes econômicos, rompendo a homogeneidade da aristocracia agrária. O estatuto da autonomia nacional foi afirmado na sua forma meramente jurídica e política, no entanto o substrato material, social e moral da sociedade permaneceu na figura da escravidão. Aqui emerge um pragmatismo, que distorce os fundamentos do liberalismo, apontando sempre para um futuro remoto a ser conquistado pela sociedade e pelo Estado. Estabeleceu-se uma dualidade estrutural na lógica brasileira entre as formas de dominação patriarcal consagradas pela tradição e a mudança de mentalidades, que se restringem a se expressar apenas no discurso, mas não na prática. Nesse esquema, organismos da sociedade civil e os estamentos sociais dominantes passaram a ser a mesma coisa, confundindo-se sempre interesses particulares e celebrações aos das associações de categorias. Na sociedade escravista e patrimonialista apenas uma pequena parcela expressava o querer coletivo, traçava o destino histórico, possuia honra, riqueza e poder, e portanto igualdade e liberdade.

"Eram condições para o rompimento com o estatuto colonial e, ao mesmo tempo, para erigir-se a construção da ordem social nacional a partir da herança colonial (ou seja, de uma "revolução dentro da ordem") FERNANDES 2006 página76

A primeira conciliação se dá entre as classes urbanas, nos centros mais desenvolvidos, que já operavam no mercado de trabalho livre e os estamentos oligárquicos agrários que impedem a extinção da escravidão no Brasil. O autor menciona, que essa conciliação se estrutura não apenas a partir das manifestações do acúmulo monetário, mas a partir do compartilhamento de valores simbólicos e culturais, que constroem a percepção social da dignidade. Nesse meio ambiente, as atitudes patriarcais do oligarca agrário se constituíram em manifestações de honra e dignidade que acabaram por contaminar nosso burguês ascendente. Uma vertente claramente autocrática e discricionária contaminará nossas elites, que ao não se identificarem com a massa de escravos, semi-libertos e o precariado brasileiro, a massa popular constituirá uma nação recorrentemente autoritária.

"As condições histórico-sociais imperantes favoreceram, singularmente, o rápido envolvimento dos demais segmentos das elites senhoriais e, o que é mais importante, imprimiram à modernização amplitude, proporções e intensidade consideráveis para uma sociedade literalmente submersa no tradicionalismo...(foi o que aconteceu, por exemplo, com as instituições jurídicas e políticas, que deveriam moldar uma ordem legal democrática, mas se converteram, basicamente, em instrumentos da burocratização da dominação patrimonialista no nível estamental)." FERNANDES 2006 página87

Modernização e arcaísmo passam a construir uma convivência muito particular e característica do Brasil, uma forma de operar na qual há uma clara propensão das elites dominantes a interpretar qualquer processo de mudança social como assunto privado. A burocratização se articulou com esse privilegiamento estamental construindo um estado intransparente, que espelhava apenas os interesses de uma minoria, na qual havia uma parte decadente dos extratos agrário-escravistas e outra emergente dos centros urbanos mais conectados com as economias centrais. Parcelas representativas das elites burguesas nacionais em conluio com as das economias centrais se declaram, e ao mesmo tempo adiam princípios liberais, em nome de um realismo e pragmatismo, que nada mais faz do que adiar o amadurecimento das suas próprias responsabilidades como dominantes. Essa imaturidade irá acabar por afastar a ideia de identidade interna, entre a massa dos despossuídos e as elites, que acabam sempre se articulando mais com as sociedades centrais do que com sua própria realidade. Um certo escapismo se instala na construção do pensamento nacional, que irá de forma recorrente negar as tendências e escolhas das massas despossuídas. Tal situação, irá forçar a convivência interessada entre arcaísmo e modernidade, construindo um desenvolvimento sem partição de renda, promovedor de uma imensa concentração de recursos.

"Trata-se de uma situação ambígua, pois aqui estamos diante do avesso da medalha: incorporada a contextos histórico-sociais ou socioculturais mais ou menos arcaicos, os dinamismos sociais engendrados pela competição concorrem para manter ou preservar 'o passado no presente', fortalecendo elementos arcaicos em vez de destruí-los...O horizonte cultural orienta o comportamento econômico capitalista mais para a realização do privilégio (ao velho estilo) que para a conquista de um poder econômico social e político autônomo, o que explica a identificação com o capitalismo dependente e a persistência de complexos econômicos semicoloniais (na verdade, ou pré-capitalistas ou subcapitalistas). FERNANDES 2006 página199

Nesse ambiente não se configura plenamente a existência de uma burguesia consciente de suas responsabilidades históricas e integrada a um projeto e destino palpável, mas se mantém uma minoridade recorrente. No comércio urbano, que era o grande interessado na supressão da escravidão, e onde volta e meia algum bem ou mesmo a renda de escravos acabavam no balcão da venda ou do botequim a parte mais compensadora e lucrativa se relacionava a clientela de maior poder aquisitivo. Essa condição logo impunha a importação de mercadorias, o que inviabiliza a competição dos pequenos comerciantes que acessavam mais facilmente apenas produtos domésticos, produz-se uma elitilização e uma intensa especulação em torno de mercadorias. Por outro lado, o trabalho mecânico e braçal sofre com uma mácula inevitável, como se representasse a perda de dignidade social, e mesmo da liberdade.

"No mundo colonial, porém a superposição da escravidão ao regime estamental acarretou uma degradação extrema do trabalho mecânico e impôs critérios inteiramente novos de suplementação do trabalho escravo por trabalho de homens 'livres' ou 'semilivres'... Os números través dos quais tal situação se exprimia criavam uma realidade inelutável: a noção de trabalho se aplicava às tarefas 'mecânicas', ao labor a mando e para gáudio de outrem..." FERNANDES 2006 página225

Florestan descreve que muitos mestres artesãos recém chegados da Europa, pra fugir a essa 'sina', procuravam abandonar o trabalho efetivo, delegando-o ao escravo, que executava as tarefas mais duras, como transporte de materiais e ferramentas. Tudo isso contribui para fomentar o mandonismo, o paternalismo, e um certo conformismo, fazendo declinar a competição e o conflito, e mesmo a obtenção de méritos. Assim vários setores da nossa população não compreendiam bem a natureza do trabalho livre e da mercantilização do trabalho, como se fosse inseparável a pessoa do trabalhador e a mercadoria que esse produzia.

"Aquele mercado deixa, aos poucos, de ser prisioneiro de algumas cidades-chave e dos estreitos interesses que nutriam, inicialmente,  a associação da aristocracia agrária com o alto comércio. Assim, entre o último quartel do século XIX e a Primeira Guerra Mundial, o período central para esta descrição, esse mercado se transfigura por completo." FERNANDES 2006 página279

A partir das grandes capitais urbanas brasileiras, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, começa a se irradiar o capitalismo competitivo, rompendo as barreiras impostas pelo setor arcaico, inclusive em pequenos núcleos rurais. Nos grandes centros acontece o advento do bonde ou do trem, do usos da energia elétrica, da cosmopolitização dos hábitos mundanos e do aparecimento de um novo estilo de vida, com consumo e comunicação em massa. Agora, admite-se a modernização da área rural, mas mantém-se uma dupla articulação entre capital estrangeiro e nacional contemporizando-se nacionalistas e entreguistas.

"Doutro lado, também se aceita como natural que a articulação às economias centrais, além de persistir, se aprofundasse, sob a presunção de que aí estaria ou a 'melhor' ou a 'única' saída para industrialização e a concomitante aceleração do desenvolvimento econômico interno...  Pela segunda vez na história brasileira - a primeira foi por ocasião das lutas pela independência - as classes dominantes e suas elites econômicas preferem, por acordo tácito, evitar o nó górdio de nossa evolução econômica dentro do capitalismo." FERNANDES 2006 página284

Essas questões nos mostram uma modernização, que sempre se concilia com o arcaísmo, mantendo quase incólumes práticas pré-capitalistas e subcapitalistas, rejeitando temas como tabu, que certamente dinamizariam a economia competitiva, tais como; a reforma agrária, a depressão dos salários das massas trabalhadoras e a consequente fraqueza do mercado interno. O nosso desenvolvimento acaba refém de um mercado altamente seletivo, que acaba gerando uma enorme concentração social e racial de renda. Na verdade, a relação das economias hegemônicas centrais começa a mudar nesse período assinalado por Florestan Fernandes, o advento das multinacionais e das corporações vão determinar a transição do capitalismo competitivo para o monopolista. E, essa determinação será mais uma vez comandada de forma heterônoma, sem a afirmação da autonomia nacional, mas com a clara participação das suas elites, que se articulam antes internacionalmente.  Agora a dupla articulação se faz com a dominação burguesa operante de forma plena, mas mantendo os nichos arcaicos, que interessam para potencializar a super exploração, a economia capitalista aqui na periferia fica condicionada a dependência de impulsos externos.

"O fim da Segunda Guerra Mundial delimita o início de uma nova era, na qual a luta do capitalismo por sua sobrevivência desenrola-se em todos os continentes, pois onde não existem revoluções socialistas vitoriosas, existem fortes movimentos socialistas ascendentes. Os fatos cruciais, nessa evolução, são a revolução iugoslava, o advento das democracias populares, a revolução chinesa e a revolução cubana. Nessa situação, o controle da periferia passa a ser vital para o 'mundo capitalista', não só porque as economias centrais precisam de suas matérias primas e do seus dinamismos econômicos, para continuarem a crescer, mas também porque nela se achava o último espaço histórico disponível para a expansão do capitalismo." FERNANDES 2006 página 297

Aqui fica claro, que no tempo que Florestan Fernandes escreve ainda não estávamos submetidos ao presente contínuo, impedidos de pensar no futuro das novas gerações, presos na eternidade e na naturalização do capitalismo. Mas, haviam "revoluções socialistas vitoriosas" ou "movimentos socialistas ascendentes", que regulavam pelo temor a consciência das elites endinheiradas, que no nosso presente parece que abandonaram qualquer pudor e atuam como se não houvesse o futuro do planeta. O livro de Florestan Fernandes é sem dúvida um dos relatos mais convincentes, do que é o Brasil, com seu desenvolvimento tardio, sua burguesia também tardia, e uma convivência interessada entre arcaísmo e modernidade, como não há em qualquer outro lugar do mundo.

NOTAS:

[1]. SIMONSEN, Roberto C.  - História Econômica do Brasil, 1500-1820 volume1 - Editora Nacional São Paulo 1937 "O valor dos artigos exportados corresponderia a 15% do capital imobilizado; no entanto a rentabilidade dos negociantes e armadores, sobre o produto bruto atingia 70%. Por sua vez, as rendas diretas e indiretas da Coroa, sobre o açúcar seriam da ordem de 25%. página139 e 183

BIBLIOGRAFIA:

FERNANDES, Florestan - A revolução burguesa no Brasil, ensaio de interpretação sociológica - editora Globo São Paulo 2006

SIMONSEN, Roberto C.  - História Econômica do Brasil, 1500-1820 volume1 - Editora Nacional São Paulo 1937