quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

A divisão social do trabalho na antiguidade pré-clássica

O crescente fértil, dádiva dos cursos dos 
rios Tigre, Eufrates e Nilo

Dentro do contexto da disciplina da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU-UFF) de História e Teoria da Arquitetura 1 houve um profícuo debate a respeito da instituição da divisão social do trabalho nas sociedades da antiguidade pré clássica. A região que assistirá a emergência das primeiras sociedades humanas complexas e diversificadas está localizada numa região denominada o "Crescente Fértil", limitada pelos fluxos de três importantes rios; o Tigre, o Eufrates e o Nilo, importantes planícies fluviais com grande incidência solar. O Tigre e o Eufrates naquilo que hoje é o Irã, e que, na antiguidade se constituiu enquanto as civilizações Suméria e Mesopotâmia. Enquanto, o Nilo, naquilo que hoje é o Egito contemporâneo, e na época se constitui como o Antigo Império do Egito, uma das civilizações mais sofisticadas da antiguidade pré clássica. A observação do tempo, a repetição de um certo padrão cíclíco num ano, articulado com as vazões desses rios determinaram tecnologias de seleção de sementes, tempo do plantio, tempo da colheita, desenvolvimento das criações, num ambiente generosamente fornecido pelo nosso planeta. O "Crescente Fértil" permitiu às sociedades humanas agrícolas acumularem imensos contingentes de super produção de alimentos, desembocando em sociedades sofisticadas, aonde a divisão social do trabalho gera o aparecimento de profissionais tais como: escribas, sacerdotes, arquitetos, agricultores, pastores, imperadores, faraós, etc... O aparecimento da nova classe de artesãos: resolvidas as questões mais elementares do cotidiano (produção de alimentos), uma parcela da população se torna apta a se dedicar ao artesanato e a atividades contemplativas e críticas. A invenção da escrita é fundamental no controle das safras e na documentação das tecnologias, na sua difusão, seu registro para as futuras gerações se tornam mais sistemáticos e o seu questionamento se aprimora continuamente. A cidade, uma concentração de indivíduos de diferentes procedências, crenças, tecnologias, localizações e costumes determina a intensificação do intercâmbio humano, garantindo à espécie avanços significativos. A cidade é um acontecimento que arranca a espécie humana de suas tradições familiares e do clã possibilitando a observação de diferentes tradições e culturas que se aproximam e intercambiam.

“...é muito provável que os homens viveram, no início, isolados e ao ver que, mais tarde, tinha vantagens ao contar com a ajuda de outros homens para obter aquelas coisas que poderiam fazê-lo feliz (se é que se pode falar de alguma felicidade aqui em baixo), ele (o homem) chegou de modo natural a desejar e amar a companhia de outros homens. E assim, os grupos de casas se converteram em aldeias e os grupos de aldeias em cidades” PALADIO, 1965

O processo de ampliação e radicalização da divisão social do trabalho se intensifica, a partir da perspectiva da garantia da preservação da espécie e otimização da existência dos grupo humanos, que ampliam suas próprias condições de existência. Ela se iniciou pela diferenciação entre idosos e jovens, homens e mulheres, famílias, frátrias (cúrias) e cidades ainda nos tempos da pré história, e ganhou em complexidade. Nos tempos antigos, quando os grupos humanos permaneciam ainda nômades, havia o costume do enterro dos entes queridos em locais específicos para que pudessem ser revisitados e lembrados. A humanidade chocava-se com a violação desses locais por animais e feras, como lobos e chacais, imagina-se que para combater esses procedimentos os grupos humanos, primeiro cercaram, e depois protegeram esses lugares, acabando por determinar com que os anciãos, os membros mais velhos, ficassem guardando os túmulos. Exatamente, os membros que representavam o maior fardo nas jornadas itinerantes da humanidade, àqueles que guardavam as memórias e feitos mais notáveis do clã, seus ritos e mitos compartilhados. A vigília dos túmulos e restos mortais dos entes queridos, certamente deve ter impulsionado a geração de relatos, ritos e mitos, que caracterizavam e identificavam aquele grupo, enquanto identidade singular. Nesse sentido, é que vários antropólogos mencionam que a cidade dos mortos precede a dos vivos, e determina a  divisão etária do trabalho, que acaba por sua vez, por fazer emergir a figura do sacerdote, ou guardião das tradições daquele grupo ou clã. O mistério da morte deveria fascinar nossos antepassados, fazendo-os imaginar entes, entidades e fenômenos mágicos e sobrenaturais, que eram consolidados nos relatos desses guardiães de túmulos.

“As mais antigas gerações, muito antes ainda de existirem filósofos, acreditavam já em um segunda existência passada para além desta nossa vida terrena. Encaravam a morte, não como decomposição do ser, mas como simples mudança de vida.” COULANGES, 1987 página 15. 

Outra divisão social do trabalho envolveu as mulheres e os homens, aquilo que pode ser caracterizado como a divisão sexual do trabalho nas sociedades humanas, afinal, toda vida animal possui como fim a sua própria preservação. Mas a espécie humana, em suas características básicas envolve e abarca um processo de humanização, que é sempre um processo de longa duração, no qual, a própria repetição mecânica dos ciclos da vida é sempre problematizada e pensada. A observação da germinação da vida, primeiro em seu corpo e depois na terra articula o controle das sementes ao feminino, enquanto a caça, e a domesticação de animais ao masculino; um confecciona utensílios para a germinação da vida, o outro, para a destruição da vida, as armas. A reflexão sobre os gestos, atos e operações da reprodução da vida devem ter mobilizado as energias humanas muito cedo, levando mulheres e homens a encarar um acontecimento biológico como algo a ser problematizado e pensado. A analogia entre esses processos e a geminação de sementes na terra deve ter mobilizado a curiosidade explorativa de nossos ancestrais, que a partir da interação iniciam processos de controle, manipulação e seleção, que desembocarão na agricultura e no pastoreio de espécies domesticadas. Na verdade, esse primeiro conhecimento corporal e intuitivo é problematizado pelo acúmulo histórico, na troca de relatos e experiências, particularmente na doutrinação das novas gerações. Pode se imaginar, que mulheres começaram a identificar comportamentos e práticas contraceptivos, capazes de impulsionar ou retroceder os seus próprios ciclos básicos. Desenvolveram e compartilharam conhecimentos sobre seus próprios corpos, seus fluxos e ciclos, intuíram e se anteciparam a ocorrência cíclica dos fenômenos preparatórios da reprodução, entendendo e registrando suas etapas.

“Buscar uma concepção materialista de mulheres, homens e sua história significa buscar sua natureza humana. A natureza humana, no entanto, não é um dado meramente biológico, mas o resultado da história da interação das pessoas com a natureza e entre si. Porque as pessoas não vivem simplesmente (diferente dos animais), as pessoas produzem suas vidas. “ MIES, 1988. 

Outro polo de produção de divisão social do trabalho foram; a Família, a Fratria (ou Cúria), e a Grande Cidade da antiguidade, estruturas que impulsionaram a separação de funções e atividades intra humanas. Neste sentido, o papel do fogo, e das tecnologias para sua geração foram fundamentais, pois nas sociedades antigas era comum que as famílias ou clãs mantivessem em suas casas altares com fogo permanente acesso em celebração de divindades específicas. Cada família ou agrupamento de famílias, Frátria, e até mesmo a grande cidade possuíam suas divindades específicas, que eram celebradas a partir da manutenção continuada de um altar de fogo, que assinalava e acolhia o ente mágico. A produção de utensílios que possibilitavam essa promoção da veneração de divindades, tais como; artefatos mantenedores de chama como velas e lamparinas deviam ser produzidos e vendidos nos mercados e feiras das cidades da antiguidade. A independência com relação a produção de alimentos e artigos derivados da agricultura e pecuária permitiu aos humanos a interação e aprofundamento em tarefas específicas, que também geravam conforto e bem estar para todos. A ideia de uma produção solidária e colaborativa, a partir da divisão social do trabalho, fizeram a fortuna das sociedades dos sumérios, da mesopotâmia e do antigo Egito transmitindo aos estrangeiros a impressão da boa vida. É claro, também que determinadas categorias sociais passam a desfrutar de sobre privilégios, explorando os efetivos produtores do trabalho.

“Muitas famílias formaram a fratria, muitas fratrias a tribo, e muitas tribos a cidade. Família, Fratria, Tribo, Cidade são, portanto, sociedades perfeitamente análogas e nascidas uma das outras por uma série de federações.” COULANGES, 1987 página 132.

A arquitetura e a grande cidade mostram a emergência dessa divisão social do trabalho; as muralhas, os grandes templos, as habitações mais abastadas e mais simples, os canais de saneamento e de fertilização mostram nos o compartilhamento de tecnologias construtivas, que conformam personalidades e expressões específicas 

BIBLIOGRAFIA:

COULANGES, Fustel – A cidade antiga - Martins Fontes, Lisboa 1987

MIES, Maria - Origens sociais da divisão sexual do trabalho. A busca pelas origens sob uma perspectiva feminista -  1988.

PALADIO, Andrea – The four books of Architecture - Dover Publicatons Nova York 1965

domingo, 12 de dezembro de 2021

Projetação, alienação, objetividade e subjetividade no ato de pensar o vir-a-ser utópico

"Odeio os indiferentes [...] acredito que viver significa tomar partido. Não podem existir os apenas homens estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes." GRAMSCI

Capa do livro Projeto e Utopia de 
manfredo Tafuri

Há muito que a objetividade produtivista luta pela captura da projetação e do planejamento, o gerenciamento e as metodologias de desenvolvimento de planos e projetos ficam presas ao desenvolvimento comportado e mediocrizante, soterrando as aspirações, desejos e promessas dos agentes envolvidos em nome do cumprimento de uma meta, que ao final perde substância, e frustra expectativas. E, na verdade é esta substância forjada pelo próprio processo - desejos, vontades de novas práticas e aspirações de novos mundos -, que nos interessa; o engendramento de uma outra existência que passa a ser compartilhado, na medida em que o plano e o projeto avançam. Mas isso significa considerar as ações de Plano e Projeto como autônomas, ou intelectualmente críticas e livres das determinações impostas pelo sistema produtivo geral. A alienação do trabalho e pelo trabalho envolve os mais diversos profissionais, que seguem numa reprodução repetida e pouco criativa de práticas, mesmo em atividades que cobram dos agentes inovação e novos procedimentos como no campo da arquitetura e do urbanismo. Aqui há necessidade de reflexão sobre o momento doutrinário e o momento manual ou operacional de se pensar o vir-a-ser, a distinção dos dois momentos não significa a perda de correlação, mas sua representação integral aonde decisão e ato correspondem a uma interpretação histórica plena e consciente. Desde o século XV, no renascimento italiano e mesmo na Idade Média tardia era esse o debate entre as artes liberais e mecânicas, onde a consciência do agir se articulava com a leitura histórica do processo humano geral. Tais questões povoam o Tratado de Re Aedificatoria de Leon Battisti Alberti (1404-1472), que fustiga a questão da auto determinação coletiva dos povos, a partir do plano e do projeto.

"Dera-se conta de que aqueles fatos rompiam a tradicional relação existente entre o momento doutrinal e o momento operacional e manual da arte; não havia mais continuidade, e sim distinção e correlação de dois níveis, o da idealização, ou da teoria, e o da prática. Entre os dois momentos, existe a mesma relação que, no agir "histórico", há entre a decisão e o ato, uma relação pela qual o ato não tem valor a não ser que dependa de uma decisão da mente, assim como, a decisão não tem valor a não ser que se cumpra no ato. Explica-se, assim o propósito albertiano de trazer a arte de volta a mímese clássica; se a imitação deve ser um processo intelectivo, e não apenas mecânico, é preciso que não seja cópia, mas representação, e obedeça às leis, ao princípio teórico da representação como modo de conhecimento." ARGAN 1992 página109

Seria isso possível, ou uma utopia delirante? Para tal, o planejamento e a projetação precisam abandonar a indiferença e se comprometer com a política, pensada a partir do pressuposto de que ninguém deve ser deixado a margem. Antonio Gramsci, considerava a previsibilidade como um direito humano, uma condição que na verdade nos humanizava a medida que se tornava acessível a todos, na verdade, ele considerava, àqueles que não a desfrutavam viviam sobre condições inumanas. Realmente, a incapacidade de pensar sobre uma nova residência, um outro bairro, ou até uma outra cidade, ou mesmo uma viagem, um filho, um casamento, ou uma aposentadoria bloqueia nossa humanização, nos mantendo sem o devido desfrute do desenvolvimento humano. Recentemente, o poeta Mia Couto escreveu um belo texto sobre o medo, em clara contraposição a esperança, dizendo nos da fomentação pelo poder instituído da disseminação dos riscos de se pensar outros mundos. A onda conservadora, que se estabeleceu  no mundo recentemente trabalha exatamente com o medo de outras possibilidades de existência humana; o socialismo, o comunismo, uma sociedade mais solidária e democrática devem ser desacreditadas pelo medo ao inusitado. O medo não é um bom companheiro, quando pensamos o nosso futuro, principalmente porque o poder instituído está sempre a promover o medo em relação aos novos poderes, sejam eles; a des hierarquização da sociedade, a democracia radical, ou a busca por maior equidade. "Para fabricar armas é necessário antes produzir inimigos", e não há melhor inimigo, que o desconhecido, o outro que não conhecemos, sejam "eles"; os chineses que comem crianças, Karl Marx e suas ideias, ou Paulo Freire e a pedagogia do oprimido. Há no mundo contemporâneo, uma presença imensa de dados sem sentido manipulados pelas Big Techs, que nos apresentam a eles a partir de interesses comerciais pouco transparentes, que só ampliam essa sensação do medo.

"A invenção da propaganda dirigida por parte do Google foi pioneira em termos de sucesso financeiro, mas também assentou o alicerce de uma consequência muito maior: a descoberta e elaboração do capitalismo de vigilância. Seus negócios se caracterizam como um modelo de publicidade, e muito foi escrito acerca dos métodos de leilão automatizados do Google e outros aspectos de suas invenções no campo da publicidade on-line. Com tanta verborragia, esses desenvolvimentos são ao mesmo tempo superdescritos e subteorizados." ZUBOFF 2020 página 83

O medo, a partir do Atentado das Torres Gêmeas em Nova York, generalizou e oficializou o acesso às nossas privacidades, colocando nosso cotidiano mais íntimo disponível para as Big Techs, que os comercializam a nossa revelia de forma intensa. Nos novos negócios engendrados pelas novas tecnologias há também a presença da alienação, agora não só do trabalho, mas também de nossas buscas e interesses, que passam a ser vendidos a nossa revelia. Nos manuscritos econômico-filosóficos que foram escritos por Karl Marx (1818-1883) entre março e agosto de 1844 em Paris, portanto quando tinha apenas 26 anos, e quando o autor acabara de ser exilado da Confederação Alemã, por seus artigos no jornal Rheinische Zeitung, a Gazeta Renana (1). Há nos Manuscritos uma importante abordagem sobre questões que partem da economia política a partir de categorias dos mundos da vida, tais como; salário, ganho de capital (lucro) e renda fundiária e chegam a uma visão mais genérica e absoluta de ordem filosófica. A visão de Marx persegue a desnaturalização de práticas gerais cotidianas dos industriais, dos trabalhadores e dos proprietários de terra, que enxergam os processos de lucro, exploração do emprego e valorização de forma mecânica e natural. Mas, que na verdade, precisavam de um arcabouço artificial de leis e normas estabelecendo as novas formas capitalistas da subjetividade, indo contra as noções de Comum e de Solidariedade, que estavam e ainda estão arraigadas em nosso senso compartilhado de justiça. A categoria da alienação é confrontada com os pensamentos de Hegel e Feuerbach, e passa a ser historicizada na sua processualidade sócio material, como trabalho onde não há mais reconhecimento do trabalhador.

"A alienação do sujeito recebe um novo trato: deixa de ser a objetivação universal e necessária (como em Hegel, que identifica objetivação com alienação) e não se reduz a um produto da consciência (como em Feuerbach). Se em Hegel a supressão da alienação equivale a supressão da objetivação, nos Manuscritos a objetivação só é alienação em condições históricas determinadas - nas condições próprias à existência histórica da propriedade privada (com suas conexões com a divisão do trabalho, a produção mercantil e o trabalho assalariado). Se em Feuerbach ela se mostra privilegiadamente na consciência religiosa, nos Manuscritos esta é, antes, uma dentre várias condições sócio históricas muito determinadas." NETTO 2020 página 104

E aqui, é preciso firmar que essas condições sócio materiais não impactam apenas o trabalho braçal e mecânico, as artes mecânicas, mas também o trabalho intelectual, ou as artes liberais, que de certa forma, escapavam dos manchesterianos Marx e Engels.  De acordo, com Manfredo Tafuri (1935-1994), o que era necessário era (re)historicizar os processos, formas e possibilidades do trabalho intelectual, que sempre esteve ligado às condições impostas pela evolução do desenvolvimento capitalista. Por isso, TAFURI (1985), assim como FORTINI, viu na atividade de investigação histórica (que as vanguardas modernas desde o Renascimento sempre rejeitaram como uma pré-condição de seus projetos) a ferramenta mais poderosa para interrogar os efeitos do desenvolvimento capitalista sobre a agência e a atuação intelectual. Para (re)historicizar as mentalidades intelectuais significava que o local político da luta era o pensador trabalhar a si mesmo em termos de suas qualificações, seus modos de ser especializado, sua capacidade de conectar informações e gerar formas sintéticas, em cada ciclo de produção, pois o sistema sempre definiu um novo mandato para o papel social de intelectuais. Para TAFURI (1985), tal análise deveria fornecer uma forma inevitavelmente ideológica, pois essa presença no sistema seria insuperável, fazendo da compreensão uma possibilidade sempre parcial para a ação (intelectual). Nesse sentido, é interessante observar como, hoje, as reflexões de TAFURI (1985) vêm inesperadamente (e paradoxalmente) estar muito próximas, por um lado, de slogans neoliberais, como "trabalho criativo" e a pretensa autonomia do plano e do projeto. E, por outro lado, e de forma não mais paradoxal, para as discussões do movimento pós-Operaístas da Itália dos anos oitenta sobre as possibilidades de cognições do trabalho como centro dos modos de produção pós-fordistas. Mas enquanto essas posições absorveram completamente o produtivo status de conhecimento, o crítico italiano concentrou a atenção na pressão dos pontos dentro do desenvolvimento capitalista na cultura intelectual, problematizando o desenvolvimento. É impressionante as conexões levadas a cabo pelo crítico italiano, num mundo anterior a emergência da hegemonia neo-liberal, que hoje vivemos e do qual, parece que não nos desvencilhamos.

"A utopia, portanto, não é mais do que "visão estrutural da totalidade que existe e há de existir" (MANHEIM, Karl - O pensamento conservador), transcendência do "dado" puro, "sistema de orientação tendente a romper os laços da ordem existente" para reganhá-los a um nível diferente e mais elevado (a utopia, uma vez afirmada, se transforma de novo em ideologia...). Para Weber e para Mannheim, a crítica da ideologia é um dos fatores dinâmicos do desenvolvimento. Para ambos - tal como para Keynes - a única realidade individualizável é a dinâmica do desenvolvimento. A utopia de Mannheim, para além das afirmações do seu autor, é prefiguração de modelos finais e globais, no sentido da realidade dada. A "crítica ao pensamento conservador" torna-se portanto uma necessidade, um instrumento destinado a libertar o funcionamento dinâmico do sistema. A ruptura constante do equilíbrio só poderá converter-se numa "política científica", anti-ideológica, numa solução racional dos conflitos gerados pelo próprio desenvolvimento, depois de ter reconhecido a inerência daqueles conflitos ao processo dialético do real." TAFURI 1985 página 43

Em 1970, Tafuri publicou o texto "Lavoro Intellettuale e Sviluppo Capitalistico", Trabalho Intelectual e Desenvolvimento Capitalístico, na revista Contrapiano, esse trabalho se converterá no capítulo 3 do livro Projeto e Utopia, que recebeu o título de Ideologia e Utopia, do qual foi tirado a citação acima. Os anos sesseta, setenta e oitenta na Itália, nos aparecem hoje como idílios utópicos frente aos avanços destruidores do neoliberalismo contemporâneo, iniciados naqueles mesmos anos, com os governos de Thatcher (1979) e Reagan (1981). O Reformismo Capitalista, na Itália daqueles anos acreditava ser possível direcionar o desenvolvimento para uma maior sustentabilidade social do sistema, associando racionalidade do plano com uma abordagem mais científica das forças produtivas. Era a domesticação do conflito de classes e a reforma dos processos produtivos do capitalismo, por exemplo no seio da Olivetti(2), como a fábrica que se transformava num campus de elevada produção, reunindo artistas, designers, intelectuais e operários, numa possibilidade de novo humanismo social. Havia um eufórico eixo domesticador do impulso do capitalismo, que envolvia agentes e atores diferenciados como; Umberto Eco, Raniero Panzieri, Franco Fortini, Ítalo Calvino, Alberto Asor Rosa, Massimo Cacciari e o próprio Manfredo Tafuri. Todos empenhados na radicalização da democracia e perpassados por diferentes gradientes de otimismo e pessimismo, mas acreditando num novo ciclo de articulação entre o Estado de Bem Estar Social e o Capitalismo.  Essa problematização foi tão radical que podemos concluir que o verdadeiro objetivo da crítica de Tafuri não era tanto o de estender ao poder, na forma tradicional da política partidária (que, no final das contas, continuou sendo o objetivo dos editores da Revista Contropiano), mas mais um meio de compreender, uma vontade de profundamente desemaranhar os processos históricos através dos quais o intelecto, a subjetividade real foi feita e artificialmente construída. Mas, Tafuri também usou a vontade de entender como o antídoto para o arquiteto e o crítico narcisismo de boas intenções, não só no âmbito arquitetônico "boudoir", mas também no ativismo social dos chamados pró arquitetos agressivos - muitos, presentes hoje - que na luta por demandas acabaram se espetacularizando. Daí seu recorrente refúgio no tempo do Renascimento na Itália, um lugar onde os homens parecem desfrutar de uma ampla visão das condições críticas de operação do trabalho intelectual, jamais reconquistado, na história humana.

"Por meio de sua intensa atividade de historicização do desenvolvimento do projeto de modernidade arquitetônica desde a Renascença até neo-avantgardê dos anos 1970, Manfredo Tafuri foi o primeiro intelectual no campo da história e crítica da arquitetura entender que não era mais possível para os intelectuais para abordar a questão das mudanças sociais e culturais provocadas por desenvolvimento capitalista de uma perspectiva externa. Na verdade, para Tafuri não havia posição externa no capitalismo, uma vez que sua a totalidade era constituída pela realidade do "trabalho assalariado", que também incorporou o papel do intelectual. Consequentemente, ele entendeu que uma crítica ao capitalismo só poderia ser produzido de dentro, a partir das categorias e formas através das quais eram - conscientes ou inconscientes - mediando culturalmente os efeitos da continuação do programa capitalista produção ou participando de sua reificação. Para Tafuri, e para aqueles que influenciaram sua crítica, esta nova condição significava que qualquer discurso crítico e político precisava, antes de mais nada, ser dirigido a intelectuais como trabalhadores em vez de "outros" (trabalhadores), contradizendo a ideia de que o social e político mandato dado ao intelectual pode ser dado como certo." AURELLI 2010 

Essas são questões complexas, que na verdade envolvem; alienação, objetividade, subjetividade, construção utópica compartilhada, que povoam as ações do plano e do projeto desde tempos imemoráveis. O que me parece claro é o enorme retrocesso que sofremos nesse campo desde a emergência do neoliberalismo, as décadas de sessenta, setenta e oitenta do século XX apontavam novas possibilidades produtivas, mediadas por um profundo reformismo, que hoje aparece solapado pela ética do capitalismo único. Tais condições tem determinado imensos índices de concentração de renda, e uma sensação de proximidade de um desastre de escala planetária, onde o futuro das próximas gerações é colocado em risco por um desenvolvimento predatório. O campo do plano e do projeto precisa problematizar essas questões urgentemente, do contrário estaremos caminhando para a supressão do mosso gênero.

NOTAS:

(1) O Rheinische Zeitung foi um jornal de um cunho reformista e liberal, que se opunha ao autoritarismo prussiano, na cidade de Colônia. O jovem Marx escreveu textos contra a censura da imprensa, o conflito entre o arcebispado de Colônia e o governo, a legislação sobre o divórcio, a miséria dos vinhateiros do Mosela e a questão do furto de madeira naturalmente caída nas florestas recém cercadas, que haviam sido criminalizados pelas leis burguesas, que já foi comentado aqui no blog. Em outubro de 1842, Marx se transforma no editor chefe da Gazeta Renana, nesse momento o número de assinantes do jornal que era de 800, em novembro sobe para 1.800, e em dezembro para 3.400 assinaturas.

(2) AURELLI 2010, num texto com o título de, Recontextualizing Tafuri's Critique Of Ideology, aponta as iniciativas da Olivetti, na busca de outro arranjo produtivo;  "O protótipo cultural desta onda do reformismo socialista foi a afirmação de Adriano Olivetti na revista da empresa "Comunità", de uma tentativa de transformar uma fábrica em um campus cultural que elevou a produção como possível habilidade de uma sociedade socialmente sustentável e culturalmente articulada na comunidade. Olivetti envolveu não apenas gerentes, mas também artistas, designers e escritores no trabalho em sua fábrica. A intenção da Olivetti era demonstrar, por um lado, a natureza intrinsecamente racional da produção e por outro a possibilidade de um novo humanismo social baseado no desenvolvimento da indústria." (tradução minha do texto original a seguir); "The cultural prototype of this wave of socialist reformism was the affirmation of Adriano Olivetti's "Comunità," an attempt to transform a factory into a cultural campus that elevated production as the possibility of a socially sustainable and culturally articulated community. Olivetti involved not only managers but also artists, designers, and writers in the work at his plant. The intent of Olivetti was to demonstrate on the one hand the intrinsically rational nature of production and on the other the possibility of a new social humanism based on industrial development."

BIBLIOGRAFIA:

ARGAN, Giulio Carlo - História da Arte como História da Cidade - Editora Martins Fontes São Paulo 1992

AURELLI, Pier Vittorio - Recontextualizing Tafuri's Critique Of Ideology - Anyone Corporation, https://www.jstor.org/stable/41765325

NETTO, José Paulo - Karl Marx, uma biografia - Boitempo São Paulo 2020

TAFURI, Manfredo - Projeto e Utopia, arquitetura e desenvolvimento do capitalismo - Editora Presença Lisboa 1985

ZUBOFF, Shoshana - A era do capitalismo de vigilância, a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder - Editora Intrinseca Rio de Janeiro 2020

sábado, 11 de dezembro de 2021

Hans Georg Gadamer, a interpretação do mundo e a hermeneutica

Wassili Lepanto entrevista Hans George
Gadamer em 2000
O filósofo Hans-Georg Gadamer (1900-2002) é uma forte referência quando falamos da interpretação de textos ou da nossa capacidade de apreensão do mundo que nos rodeia, a partir de uma constatação simples e precisa; a interpretação se localiza num horizonte mútuo entre intérprete e coisa a ser interpretada. Isso significa assumir que a verdade ou a realidade, particularmente nas ciências humanas, não é reduzível a um método, mas aquilo que acontece no diálogo, expresso pela linguagem entre sujeito e objeto pesquisado. Tenho me aproximado de Gadamer, a partir do momento que passo a ministrar no Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU) da UFF a disciplina Seminário de Dissertação. Minha primeira aproximação, com esse filósofo se dá pela abordagem do problema da consciência histórica, e que foi diferenciado do estruturalismo, num texto, Os modos do Discurso da teoria da arquitetura de Carlos Antônio Leite Brandão, professor da UFMG. Neste texto, há a caracterização do modo hermenêutico como uma categoria de abordagem do fenômeno arquitetônico e urbanístico, seja em seu desenvolvimento histórico, na sua produção contemporânea, ou ainda como realidade a ser abarcada ou interpretada. É verdade, que desde minha tese de doutorado, Projeto, Ideologia e Hegemonia, em busca de um conceito operativo para a cidade brasileira, trabalho com a idéia de que o projeto e o plano são uma interpretação do real, que se arrisca no vir-a-ser a partir da análise do contexto, dos recursos, dos desejos e das expectativas de construção de um outro mundo. O que, sempre me posicionou diante do plano e do projeto, como ações que pretendem sintetizar o mundo existente, a partir de uma atitude prescritiva. A intenção e adequação do proposto - plano e projeto - nasce do diálogo das condições objetivas analisadas e interpretadas com as demandas do que o lugar quer vir-a-ser. Na verdade, nessa esfera há um forte investimento no prescritivo ou no prognóstico, que impulsionado pelo descritivo ou pelo diagnóstico se aventura a oferecer a figuração de um outro mundo.

"Para Gadamer, a verdade não é um método, mas simplesmente aquilo que acontece no diálogo. Atos de interpretação são dialógicos, uma conversação constante dentro da tradição. O intérprete projeta o significado provisional, mas estes são desarranjados e re-definidos quando os próprios preconceitos do intérprete são questionados pelo horizonte do texto ou pelo parceiro no diálogo. Basicamente, Gadamer alega que os significados nunca podem ser completos. Uma outra consequência da 'fusão dos horizontes' (1) de Gadamer é um relacionamento re-definido com o passado. Se todo entendimento é diálogo, então é tanto uma conversa com o passado quanto com o futuro." LAWN 2007, página13

Aqui inicialmente, é preciso destacar que a hermenêutica era historicamente desde a Idade Média a ciência da interpretação dos textos sagrados, particularmente os da Bíblia, ou dos textos do Direito Romano. Gadamer anda em direção a tradição da leitura, e por isso mesmo reafirma que estamos inexoravelmente imbricados na linguagem e na cultura, no entanto desdenha da ideia de que podemos desviar de nossos próprios pontos de referência para alcançar a verdade, que está muito presente no pensamento moderno particularmente a partir de René Decartes (1596-1650), no livro O Discurso sobre o Método, para bem dirigir a própria razão e procurar a verdade nas ciências. O Iluminismo considerava que a razão, separada da perspectiva histórica e cultural representava uma condição plenamente alcançável, a partir do rigor metodológico, Gadamer usa da ideia da interação entre objeto e intérprete como uma hermenêutica filosófica, e caracteriza o ganho dessa interpretação como um círculo hermenêutico. Destrona-se a razão, como posicionamento arrogante e absoluto, para recolocá-la numa posição de impulsionadora de uma revelação ou desvelamento em processo contínuo, onde intérprete e coisa interpretada entram no compartilhamento de horizontes mutuamente. Nessa questão, o discurso de Aristóteles sobre a sabedoria prática - phronésis - é uma clara referência para Gadamer, o filósofo grego afirmava que a medida, que nos tornamos moralmente orientados passamos a estar habituados a regularidades. Essas regularidades eram uma zona de conforto bloqueadora do verdadeiro conhecimento, que precisa se aventurar na busca de apreensão do real, com disposição de reconhecer sua parcialidade e eterna incompletude. É nesta tensão entre novidade e hábito que Gadamer situa o círculo hermenêutico, localizando o entendimento do mundo não na privacidade da consciência, mas sim através da nossa condição de estar ou ser no mundo. Gadamer foi aluno de Martin Heidegger (1889-1976) e, essa questão está presente em O Ser e o Tempo, havendo aqui a típica busca da essencialidade do fenômeno, que envolvia um certo mergulho na processualidade do pensamento, ou nossa interpretação, situada dentro de um horizonte mútuo entre intérprete e coisa a ser interpretada, que se relacionam e se modificam mutuamente. 

"Não podemos encontrar um ponto arquimediano fora da cultura e linguagem em nossa busca pela verdade, pois assim como nossos preconceitos, as condições de entendimento fazem parte daquilo que procuramos tornar compreensível. O questionamento de Gadamer do método racional rejeita a opinião de que a razão existe por trás da linguagem." LAWN 2007 página14 

Assim, tudo é interpretação e diálogo, podendo ser uma conversa com o passado, com o presente, assim como também, com o futuro, que só deixa transparecer seus vestígios na medida em que a experiência comum se desenvolve. Portanto, o que me parece, que Gadamer questiona no método é a existência de um ponto neutro euclidiano capaz de fazer que a razão se autonomize da linguagem, ou dos pré conceitos que carregamos. Ou mesmo, de sua capacidade de formular o futuro de forma convincente e persuasiva, sem os vestígios ou evidências que a história, a tradição e o passado nos indicam pela sua perspectiva. Enfim, acho que Gadamer é um filósofo da linguagem assim como Ludwig Wittgenstein (1889-1951), que consideram a língua como estrutura básica do nosso pensar, e portanto perpassada pelas limitações de cada uma das nossas construções linguísticas. Por isso, mesmo que há uma sútil distinção com o estruturalismo, que o texto de Carlos Brandão pontua, dizendo que o estruturalista se detém no signo, enquanto a hermenêutica se concentra no sentido. Há aqui um reconhecimento, de que o pensamento que toma sentido é justamente aquele que foi captado pela linguagem, expresso por palavras construtoras de sentido. A verdade, que para os gregos era denominada pelo termo "alétheia", onde "letheia" é o véu, e "a" sua retirada ou o seu "des", e, indicavam a processualidade da sua busca, como algo que se revela, se reportando à dinâmica de transformação do ser. Há uma relação complexa com a tradição e com nossas pré concepções, que são consideradas como presenças as quais não nos desvencilhamos de forma fácil. Na verdade, o livro mais importante de Gadamer, que tem como título; Verdade e Método de 1989, poderia ter sido Verdade ou Método, pois percebe-se uma clara tensão entre esses dois conceitos.

"A estrutura de Verdade e Método, como três grandes secções, é baseada, na realidade, em três experiências básicas da verdade: arte, entendimento histórico e linguagem. A parte 1 é intitulada: 'A questão da verdade quando emerge na experiência da arte'; a parte 2: 'A extensão da questão do entendimento nas ciências humanas' e parte 3: 'A mudança ontológica das hermenêuticas orientadas pela linguagem.'" LAWN 2007 página 84

Na verdade, me parece há uma sobrevalorização da ideia de experiência, ou do fenômeno, que se materializam no nosso confronto com a arte, com a história e com a linguagem, que poderia ser reduzido ao sentimento, à consciência do nosso tempo e à vontade de captar o real pela sua expressão. A verdade deve portanto ser algo experienciado, não podendo ser algo que observamos a uma certa distância, ou de maneira científica, classificada como objetiva, e colocada além da subjetividade, mas isso não significa ser enquadrado na filosofia empírica. Pois como reforça Gadamer na "experiência hermenêutica" somos constantemente surpreendidos pelo encontro entre o familiar, a tradição e o desconhecido. Daí a relevância e a sua atenção com o movimento constante e de certa forma insolúvel entre a parte e o todo diante de qualquer obra ou acontecimento, como a exploração das verdadeiras novas possibilidades abertas pela leitura de um poema. A cada vez que lemos o poema abrem-se novas linhas de questionamento e possibilidades, que ainda não apareciam expressas, como algo aberto e revelado, como na noção platônica de alétheia. Enfim, num campo como o da Arquitetura e do Urbanismo, dito das ciências sociais aplicadas, Gadamer nos oferece uma forma de enfrentamento da pesquisa não dogmática e bastante criativa, na qual a arte me parece cumpre um papel central.

(1) A ideia de "fusão de horizontes" está presente na proposição de interpretação de Gadamer, a partir da hermenêutica, onde há o horizonte do intérprete e o horizonte do texto, objeto, ou coisa a ser interpretada. A fusão seria um processo complexo envolvendo estranhamento e identificação entre sujeito e objeto, intérprete e texto, que culminaria na interiorização do sentido ou do significado no nível do hábito.


BIBLIOGRAFIA:

BRANDÃO, Carlos Antônio Leite - Os modos do Discurso da teoria da arquitetura - http://www.arq.ufmg.br/ia/teoria.html 
DECARTES, René - O discurso sobre o Método, para bem dirigir a própria razão e procurar a verdade nas ciências  - Editôra Hemus São Paulo 1998
LAWN, Chris - Compreender Gadamer - Editora Vozes Petrópolis 2007
LEÃO, Emanuel Carneiro - Martin Heidegger - Tempo Brasileiro Rio de Janeiro 1977

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

A economia compartilhada ou capitalismo de plataforma e um Karl Marx prescritivo, ou a dimensão propositiva da filosofia da práxis

Capitalismo de Plataforma; ineditismo ou permanência
da lógica de acumulação capitalista?


"Quem quer que conheça qualquer coisa da história sabe que as grandes mudanças sociais são impossíveis sem o fermento feminino." MARX 1969, citado em NETTO 2020, página240

Dissemina-se no mundo contemporâneo a ideia de que o advento das plataformas de software, que se instalaram mediando nosso acesso a serviços ou a mercadorias possui um caráter disruptivo. Compartilha-se de uma visão idílica da chamada economia compartilhada, como se esta estabelecesse relações diretas entre as pessoas. O próprio nome, economia compartilhada parece desfrutar de um status que o afasta das inexoráveis tendências monopolistas e concentradoras que o sistema do capital promove, desde sua primeira aparição. Parte-se do pressuposto de que a economia compartilhada ou capitalismo de plataforma oferece possibilidades disruptivas, quando na verdade, ela mantém e celebra o status quo da competição e do individualismo exacerbado, típicos do neo liberalismo dominante. Expressões como; "as plataformas vieram para ficar" ou "não parecem ceder ao seu próprio desenvolvimento" nos indicam a condição de inevitabilidade do desenvolvimento tecnológico como algo autônomo e inexorável, que está acima das escolhas humanas. Sua casualidade é múltipla, mas seu desenvolvimento se atrela a uma evolução científica autônoma, neutra e pulverizada, impossível de ser domesticada, ou isenta de interesses, muito além da vontade dos homens comuns. Mesmo autores críticos, como ZUBOFF 2020, que identificou uma condição "superdescritiva e subteorizada" (1) da nossa sociedade contemporânea, ou STANDING 2013 que apontou um novo agente, "o precariado" (2), nesse nosso tempo apontam ambos, uma situação sem precedentes, um fenômeno inédito. Será que são mesmo sem precedentes? No entanto, a economia compartilhada pode ser responsabilizada pela mais nova crise do sistema capitalista internacional, lançando meios de distribuição e indústria numa encruzilhada na qual o que está em jogo é um novo arrocho na remuneração do trabalho, ou uma clara clivagem entre proprietários e despossuídos. Assim como em outros tempos, os ganhos se concentram em grandes corporações monopolistas, tais como; Google, Facebook, Amazon, AirBnb, Uber, etc, que não toleram a competição. Estruturas que muitas vezes podem até  terem sido concebidas à margem do capital, mas que ao serem monetizadas passam a servir e a alavancar mais concentração e mais desigualdade. Interessante assinalar, que Karl Marx (1818-1883) já referia-se ao caráter social, a que o capital poderia ser alçado, através de seus meios, principalmente pelo seu sistema de valoração das moedas, ou sistema de crédito, ou o sistema financeiro;

"...só se consuma e se realiza integralmente mediante o desenvolvimento pleno dos sistemas de crédito e bancário. Por outro lado, esse sistema segue seu próprio desenvolvimento. Oferece aos capitalistas industriais e comerciais todo o capital disponível da sociedade, inclusive o capital potencial, ainda não ativamente comprometido, de modo que nem o prestamista nem quem emprega esse capital é seu proprietário ou seu produtor. Com isso, ele suprime o caráter privado do capital e, assim, contém em si, somente em si, a supressão do próprio capital. Por meio do sistema bancário, a distribuição do capital é retirada das mãos dos capitalistas particulares e dos usuários como um negócio especial, como função social. Ao mesmo tempo, porém, o banco e o crédito se convertem no meio mais poderoso de impulsionar a produção capitalista para além dos seus próprios limites e um dos mais eficazes promotores das crises e da fraude.[...]

Finalmente, não resta a menor dúvida de que o sistema de crédito servirá como uma poderosa alavanca durante a transição do modo de produção capitalista para o modo de produção do trabalho associado; mas somente em conexão com outras revoluções orgânicas do próprio modo de produção... Assim que os meios de produção deixarem de se transformar em capital [...], o crédito como tal perderá todo sentido [...]. Em contrapartida, enquanto o modo de produção capitalista continuar a existir, perdurará também, como uma de suas formas, o capital portador de juros." NETTO 2020 páginas 383 e 384, citando Karl Marx

Interessante destacar, no pensamento marxista a identificação de crises cíclicas destrutivas, que promovem um rearranjo das forças produtivas que calibravam tendências sempre presentes de declínio das taxas de lucros, superconsumo ou de superprodução. Como a economia capitalista não é planejada por demandas distributivas ou sociais, mas a partir da lógica da competição e da concentração de recursos nas mãos de poucos agentes. Sempre, há em toda crise do sistema econômico em geral um deliberado interesse claramente vinculado aos proprietários do dinheiro ou dos meios de produção para buscar o saneamento das amarras do lucro. Penso, que foi BRAUDEL, que percebeu a partir de seus estudos da longa transição entre o feudalismo e o capitalismo, que o último estágio das crises cíclicas era uma crise especulativa, aonde a forma monetária ou financeira se autonomizava com relação a produção. Essa autonomia retirava do sistema de Bolsa de Valores e do sistema de crédito qualquer racionalidade produtiva, capturando-o num processo especulativo, que não se vincula mais a produção em si, mas a mera possibilidade de auto reprodução das moedas. O dinheiro, perde sua função de facilitador da troca para se metamorfosear numa mercadoria regulada por sua capacidade de ser procurada (valorizada), ou descartada (subvalorizada). Mas, não há como negar, que já em MARX, quando ainda jovem em meados do século XIX já identificava-se essa tendência no sistema capitalista de retorno a constante crise de forma quase otimista;

"A universalidade para a qual o capital tende irresistivelmente encontra barreiras em sua própria natureza, barreiras que, em um determinado nível de seu desenvolvimento, permitirão reconhecer o próprio capital como a maior barreira a essa tendência e, por isso, tenderão a sua superação por ele mesmo." NETTO 2020 página 378, citando Marx nos Grundisse 

Havia no raciocínio do manchesteriano de Karl Marx, aquilo que Marshal Bermann muito bem captou no livro Tudo que é sólido desmancha no ar, que era uma crença na capacidade intrínseca do capital para o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho de maneira inusitada. Dentro de um otimismo típico do século XIX, notava-se o germe da teleologia de Hegel, despida agora de seu idealismo e centrada na experiência material e concreta dos despossuídos, mas ainda assim, crente num aprimoramento positivo da humanidade. Sempre, a partir da experiência acumulativa da história em direção a um futuro grandioso e redimido, centrado no fenômeno da produção do trabalho e na conscientização dos desapropriados, que acabariam impondo a cooperação e a solidariedade no seio da humanidade. Mas apesar desse otimismo, Marx nunca afirmou a inevitabilidade da revolução, que em seu pensamento dependia fortemente da intervenção política organizada dos prejudicados/despossuídos da humanidade. O tema do confronto definitivo entre as classes sociais mostrou-se ao longo da história do século XX, particularmente a partir de 1917, com a Revolução Russa, perpassado por nuances e gradientes, que na verdade significaram um período de grande desenvolvimento e de ascensão das massas a padrões melhores de consumo. Aparecia para a geração de meados do século XX (1950), a geração pós segunda guerra, que o incremento produtivo e o desenvolvimento das forças produtivas eram fator de um progresso e desenvolvimento contínuos e inabaláveis. No entanto, na década de setenta nos confrontamos com a primeira crise do petróleo, o sistema que parecia haver se regenerado a partir da regulação fordista e keynesiana (3), e da ameaça da revolução socialista enfrenta uma crise sem precedentes, que desemboca nas eleições de Thatcher 1979 e Reagan 1981. Os discursos por trás dessas eleições seduziam pelo apelo a uma desregulamentação generalizada, que condenava a estabilidade do fordismo e a regulamentação financeira do Estado, como bloqueadores do legítimo desenvolvimento, num esforço de esquecimento do que havia sido a grave crise de 1929 da Bolsa de Valores de Nova York. Essa crise havia interrompido a confiança no liberalismo, desenfreado do século XIX e começo do século XX, e sinalizado para necessidade de regulação estatal da economia, face as suas tendências monopolistas e concentradoras, que determinaram movimentos sociais explosivos, como os de Paris em 1871 e o de Moscou de 1917, dentre outros.

"'Globalização' é uma forma de nomear as forças que exauriram a velha ordem - é uma palavra que pode significar tudo, mas relaciona-se de várias maneiras com a transformação social das instituições. No início da década de 1980, uma enorme demanda reprimida por produtos e serviços tornou-se aparente em todo o mundo. Havia uma grande quantidade de capital em busca de alvos de oportunidade depois da quebra, em 1973, dos controles de Bretton Woods sobre a movimentação monetária... As inovações tecnológicas, através do computador, possibilitaram o 'tempo real global', a sincronia das comunicações e das transações financeiras em todo o mundo... Por fim, e talvez mais importante, houve uma mudança no poder: os acionistas começaram a reafirmar as exigências por retornos de curto prazo sobre o investimento, desafiando burocratas gerenciais que se contentavam com que as coisas simplesmente se arrastassem como antes.(4)" SENNETT 2004 páginas 208 e 209

Enfim, o que me parece importante destacar aqui nesse texto é que mais uma vez o sistema se trasveste de novidade para continuar repetindo o mesmo, a acumulação do capital retrocede as suas condições primitivas, maravilhando a sociedade que se lança no precipício. Particularmente, as cidades e suas arquiteturas passam a ser pressionadas para a realização de lucros rápidos e quase imediatos, que confrontam a construção do patrimônio comum construído pela humanidade. Essa mesma, humanidade se confronta com a questão ambiental, que demanda dela atitudes de efetiva mudança do poder político, no qual é preciso declarar não mais a exclusão de parcelas significativas de nossa população, mas sua inclusão massiva e extensiva. Sob pena, de nos orientarmos para nossa auto extinção. A citação no início desse artigo, mostra-nos a fala de um homem do século XIX, Karl Marx, sobre a atuação das mulheres no impulso da transformação humana, talvez um pouco paternalista, ou até mesmo culinária, mas ela nos lembra apenas, que a novidade não deve ser absolutizada, mas confrontada com o contexto geral contemporâneo, que permanece o mesmo.

Notas:

(1) ZUBOFF 2020 página83, menciona; "Com tanta verborragia, esses desenvolvimentos são ao mesmo tempo superdescritivos e subteorizados... Qualquer confrontação com a situação sem precedentes requer um léxico novo, e introduzo novos termos quando a linguagem existente falha em capturar um fenômeno inédito."

(2) STANDING 2013, emerge na página164, CAVALCANTE e FILGUEIRAS in ANTUNES (org.) 2020; "As características desse 'novo mundo do trabalho', ainda que tomadas de maneira crítica, também informam a análise de Guy Standing. Segundo o autor, o mundo está passando por uma 'transformação global', análoga à 'grande transformação' identificada por Karl Polanyi.'

(3) O argumento está em ARRIGHI 1996 e também em SENNETT 2003 de declínio do Welfare State e do mundo regulado pelo fordismo e keynesianismo.

(4) Nesse ponto do texto SENNETT 2004 página 209 puxa uma chamada para o livro da Cidade Global de Saskia Sachen, mostrando-nos como a ansiosa pressão dos acionistas pela materialização de lucros rápidos impactam o desenvolvimento das cidades contemporâneas.

Bibliografia:

ANTUNES, Ricardo (org.), CAVALCANTE, Sávio e FILGUEIRAS, Vitor - Um novo adeus a classe operária? - Editôra Boitempo São Paulo 2020

ARRIGHI, Giovanni - O longo século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo - editora Unesp São Paulo 1996

BERMAN, Marshal - Tudo que é sólido desmancha no ar, a aventura da modernidade - Editora Companhia das Letras São Paulo 1994

NETTO, José Paulo - Karl Marx: uma biografia - Editora Boitempo São Paulo 2020

SENNETT, Richard - Respeito a formação do caráter em mundo desigual - Editora Record Rio de Janeiro 2004

ZUBOFF, Shoshana - A era do capitalismo de vigilância; a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder - Editôra Intrínseca Rio de Janeiro 2020

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

O filme a Guerra do Fogo e a disciplina de Teoria e História da Arquitetura 1 (THA 1)

A manutenção da brasa acesa como única forma
de domínio do fogo
Nesse segundo período do ano de 2021 estarei ministrando para os alunos da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU-UFF) a disciplina de História e Teoria da Arquitetura 1 (HTArq-1), em função da aposentadoria do professor Juarez Duayer. Tal tarefa, tem demandado um esforço de estudo e de sistematização da minha parte, que vem sendo auxiliado pelo professor Juarez, que disponibilizou suas anotações, programas e sistematizações de forma generosa. O período histórico da disciplina HTArq-1 abarca desde a pré história até o Renascimento no século XVI, um marco temporal ao qual ainda não tinha me dedicado de forma sistemática. A ênfase da disciplina recai sobre a antiguidade clássica, Grécia e Roma, seguida da Idade Média, chegando ao Renascimento dos século XV e XVI. Mas a pré história e as sociedades da antiguidade oriental devem ser abordadas para que se reduza o caráter eminentemente Euro cêntrico da nossa construção histórica, que aliás também é reduzida pela menção nas aulas do Professor Juarez da arquitetura pré colombiana e dos povos originários da América. Na minha trajetória, na EAU-UFF, como professor de projeto com concentração em história e teoria da arquitetura e do urbanismo já havia me dedicado a disciplina de HTArq-3, que aborda o modernismo e a contemporaneidade. Portanto, esse texto se insere nesse esforço de estudo de se apropriar de um período histórico distante, de forma que ele faça sentido para os estudantes do século XXI da EAU-UFF, no ano de 2021. Aqui, cabe um alerta em nome da sinceridade, no campo da história e da teoria considero impossível a divisão entre abrigo e cidade, ou arquitetura e urbanismo que os cursos de arquitetura no Brasil adotam. O fenômeno da ocupação do espaço pelo homem não distingue interior de exterior, moradia de cidade, intenção e projeto, arquitetura de urbanismo, àqueles que discordam apresento a definição de cidade de Leon Battista Alberti no De re adificatória de 1485. Livros I a IV 

"A cidade segundo sentença dos filósofos é como uma casa grande, e vice versa, a casa é uma pequena cidade... As coisas públicas pertencem a todos os cidadãos; é sabido que a importância e a razão de fazer cidades deve ser esta: que os habitantes vivam em paz, e dentro do possível livre de incômodos, livres de toda moléstia. E sem dúvida se deverá considerar e novamente examinar desde o princípio em que lugar, em que situação e com que muralhas se deve fazer." PATETA 1997 página77 

A tomada de consciência da formulação de
utensílios humanos a partir do barro
Assim, devo a escolha do filme a Guerra do Fogo, lançado em 1981, do diretor Jean Jacques Annaud, numa produção franco-canadense também ao professor Juarez, como abordagem inicial da problemática da relação do gênero humano com a natureza e com nosso planeta. E, nesse texto pretendo destacar os aspectos levantados no filme a respeito do habitat do homem e das diversas formas de ocupação do território do nosso planeta pelo ser humano. Um ser, que intrinsecamente não reconhece como dado no planeta terra, a sua casa, mas que modifica a natureza para adequá-la a suas necessidades, essa premissa, que não é exclusiva da humanidade, pois; castores, joãos de barro, abelhas e outros também a promovem, modificações notáveis para otimizar a reprodução de suas espécies. Nos manuais de história a pré-história é qualificada como o período de 200.000 antes de Cristo, datação da provável aparição do homo sapiens, até 4.000 antes de Cristo, quando ocorre a descoberta da escrita nas sociedades do Oriente Próximo. Tal situação, determina que esse imenso período seja lido e descrito a partir de pinturas, registros gráficos, arqueologia, e outros, o que determina uma ampliação das suas possibilidades, e da capacidade de interpretação da nossa contemporaneidade. A história será sempre uma apropriação do tempo passado por uma contemporaneidade, que avalia os fatos ocorridos a partir de sua perspectiva, e diante dos dilemas vividos no seu tempo presente. Mas, a pré história por seu caráter ainda não auto documentado (ausência da escrita) enfatiza essa condição de interpretação e de apropriação do período pelas angústias do nosso tempo. Ao final, o patrimônio construído pela humanidade é dela própria, e deve ser entendido como "O Comum", que não é propriedade de ninguém especificamente, mas de todo gênero humano, aberto a novas narrativas e interpretações. É claro, no entanto, que essa história da eleição de um filme franco canadense, aqui apresentada possui uma matriz Euro Cêntrica, e portanto limitada aos pressupostos impostos por essa narrativa, mas que pretende trazer de forma despretenciosa o instrumental para sua descolonização por parte dos alunos. Afinal, o lugar onde está sendo formulada e construída, essa HTArq-1 é a cidade de Niterói, dentro da cidade metropolitana do Rio de Janeiro, no Brasil, um país latino americano, periférico ao sistema de domínio mundial denominado, Euro Atlântico e Estadounidense de nossa contemporaneidade.

"E finalmente ao eleger o sítio para construção da Vila deve se fazer todas aquelas considerações que se fizeram para eleger o sítio para a cidade: posto que a Cidade não é outra coisa que uma casa grande e, ao contrário, a casa é uma cidade pequena." Andrea Palladio Os quatro livros da Arquitetura 1570, página46 do livro II in PATETA 1997, página 77

A aglomeração de cabanas de uma tribo primitiva
 protegidas e resguardadas de inimigos
pelo pântano
O tema central do filme é o domínio da tecnologia de controle do fogo pela espécie humana, localizado num tempo arbitrário de aproximadamente 80.000 anos antes de Cristo, quando a humanidade encara o fogo como um objeto cercado de mistérios, que poucos grupos governavam na sua geração. Essa informação temporal é comunicada logo no início do filme através de um texto escrito que rola na tela, sendo a única informação textual e objetiva da experiência cinematográfica. Aliás, uma das virtudes da película é a ausência durante suas 1 hora e trinta e cinco minutos de duração, de qualquer diálogo inteligível pelo espectador. A linguagem oral, que já está presente entre os grupos humanos do filme é incompreensível para sua audiência, o que demanda dos atores um esforço maior para transmissão clara dos desejos e vontades dos personagens através do corporal. Tal decisão, enfatiza a comunicação da imagem e do cinema e da representação, e nos transporta a um mundo de absoluta supremacia da imagética, que coloca a audiência livre de uma descrição oral e literal precisa, acentuando nossa atenção a expressividade dos rostos e ao corporal dos atores. Além disso, o recurso abre a audiência uma ampla gama de interpretações, como numa obra aberta, onde as narrativas podem ser construídas a partir da livre associação de ideias e gestos, que ao final se constituem no texto objetivo do filme. Essa característica nos remete aos filmes mudos do começo da história do cinema, ou a cineastas como Alfred Hitchcok, que sempre lançaram mão em seus filmes de longos trechos sem diálogos ou legendas, enfatizando a ideia da comunicação direta apenas pela imagem, reforçando a ambiência da livre interpretação e da associação de ideias pelos expectadores. E, aqui é importante assinalar que o estudo dos objetos primitivos, enfim da arte primitiva não deve ser considerado um mero documento etnográfico mas como fato artístico vivo e atuante. Pois como disse Marc Bloch, não se faz história daquilo que não mais nos atinge, mas sim dos fenômenos que continuam atuando, como uma linha mestra da civilização, como enfatiza Giulio Carlo Argan sobre a atemporalidade dos objetos artísticos;

"De fato, cada obra não apenas resulta de um conjunto de relações, mas determina por sua vez todo um campo de relações que se estendem até o nosso tempo e o superam, uma vez que, assim como certos fatos salientes da arte exerceram uma influência determinante mesmo à distância de séculos, também não se pode excluir que sejam considerados como pontos de referência num futuro próximo e distante. Basta lembrar a arte pré-histórica e primitiva..." ARGAN 1992 página 15

Imagem da cabana da tribo sedentária do filme
A Guerra do Fogo, mostrando técnicas de 
vedação a partir do couro e do barro

Ao longo do filme também percebe-se diferentes tipos de clãs e grupos humanos, que além de guerrearem entre si também se relacionavam, inclusive sexualmente, com diferentes conotações, que denotam que o intercâmbio humano entre diferentes bio-tipos é a verdadeira fortuna da humanidade. De certa forma, essa característica que será enfatizada com o sedentarismo e a revolução agrícola, ocorrida segundo a periodização dominante entre 18.000 e 4.000 anos antes de Cristo. Essa tendência é anunciada pelo filme como uma presença já existente entre os grupos humanos, e que será claramente impulsionada pela posterior revolução urbana, 4.000 anos antes de Cristo. Particularmente, no episódio que levanta a hipótese de  cobrança e obrigatoriedade pelo grupo sedentário ao membro do grupo da caverna para que fertilize as suas mulheres mais gordas e avantajadas. Ao mesmo tempo, tal tendência está longe de ser romantizada pelo filme, como uma ética humana determinada naturalmente, pois há menção inclusive a práticas antropofágicas, que ocorreriam não entre os iguais, mas entre os diversos. Há, também uma certa diferenciação pré-conceituosa, no universo intra-comunidade, envolvendo portanto semelhantes no episódio, que claramente  mostra o tratamento diferenciado às mulheres mais magras do clã, que são preteridas na pretensa seleção reprodutiva da tribo sedentária. O fato é que o filme claramente apresenta a hipótese de busca por uma seleção reprodutiva controlada, por parte da comunidade sedentária, que visa o aprimoramento da constituição física e estrutural das futuras gerações. Será, que tal episódio pode ser comprovado pelos vestígios e rastros deixados por nossos antepassados, nos sítios arqueológicos existentes? Ou, como uma ética das relações humanas deve incluir sempre como premissa o livre arbítrio e a escolha do indivíduo, frente até as determinações do grupo? Importante, destacar que o argumento ou narrativa é plausível, mesmo que pendente de comprovação factual pelo sítio arqueológico ou vestígio, mostrando-nos que a história, seja pré escrita ou pós escrita está aberta as nossas leituras e narrativas.

"Direi agora brevemente, o que é que creio que seja a arquitetura. Arquitetura em sentido positivo, para mim, é uma criação inseparável da vida e da sociedade na qual se manifesta; em grande parte é um feito coletivo. Ao construir suas habitações, os primeiros homens realizaram um ambiente mais favorável para suas vidas ao construir-se um clima artificial, e construíram de acordo a uma intencionalidade estética. Iniciaram a arquitetura, junto com os primeiros indícios da cidade; de essa maneira, a arquitetura é co-natural com a formação da civilização, e é um feito permanente, universal e necessário. Seus caracteres estáveis são a criação de um ambiente mais propício a vida e a intencionalidade estética." ROSSI, in PATETA 1997 página75

Mas, além da comprovação o fato é que somos uma espécie, que claramente apresenta fragilidades com relação a sua reprodução e manutenção, frente ao mundo natural, que foram compensadas exatamente pelo compartilhamento de saberes e tecnologias. Efetivamente, o ser humano nasce extremamente dependente das gerações mais velhas, forjando sua independência natural a partir dos cinco anos de idade ou mais, afinal sua conformação cerebral, por exemplo, estará plenamente constituída apenas a partir dos dois anos de vida, e, na dependência da recepção adequada de alimentos e proteínas. Mas, o filme explora claramente a marcação das diferenças entre os grupos humanos, que é feita por diferentes sinais corporais e faciais, tais como; mais ou menos pêlos, a presença de um certo prognatismo de sobrancelha e queixo ou sua ausência, a utilização de vestiário ou não, dentre outros.  Esses grupos, dominam e possuem diferentes acessos a tecnologias de apropriação do fogo, mas também de construção de moradias e do seu agrupamento, bem como de sua defesa e do cultivo de plantas, frutos e sementes. É representativo da questão do domínio do território e da escolha do melhor local para a aglomeração de moradias - uma vila, ou mini cidade - no episódio da aproximação de um membro do grupo que vive em cavernas, do grupo, que já produz sua habitação, com uma estrutura de galhos flexíveis e vedação com peles, couros de animais e barro. O episódio nos mostra um representante de um grupo de estatura e compleição física mais avantajada (o grupo da caverna), que é capturado pelo pântano, e é submetido a uma sub imersão progressiva pelo alagado. Tal fato, denota o domínio da tecnologia da escolha do sítio para a aglomeração das barracas a partir de uma estratégia de defesa, a partir da utilização do alagado natural, que fragiliza os indesejados visitantes, desconhecedores das sutilezas do caminho seguro à vila. Como uma muralha da cidade medieval, ou como a Laguna da cidade de Veneza percebe-se a estratégia da escolha do lugar da aglomeração como um conhecimento, ou o domínio empírico experiencial da defesa da aldeia frente aos estranhos.

"A arquitetura consiste de algum modo em ordenar o ambiente que nos rodeia, oferecer melhores possibilidades ao assentamento humano, portanto, as relações que tem a missão de estabelecer são múltiplas, inter atuantes entre si; se referem ao controle do ambiente físico, a disposição de certas possibilidades de circulação, a organização das funções, de seu agrupamento ou segregação de suas relações; responde a certos critérios econômicos, se move em, e move, certas dimensões tecnológicas, provoca modificações na paisagem, etc... Mas organizar estas relações é algo completamente diferente de sua simples soma, é o significado que deriva do modo de lhe dar forma, é colocar-se dentro da tradição da arquitetura como disciplina, com um novo gesto de comunicação, com uma nova vontade de transformação da história." GREGOTTI in PATETA 1997 página 75

Enfim, o Filme a Guerra do Fogo coloca nos a questão de um debate fundamental inserido em nossa contemporaneidade; a quem pertence o desenvolvimento das técnicas, que criam um ambiente mais favorável a vida humana, com intencionalidade estética? A quem pertence o tijolo, a taipa de pilão, o solo cimento, a telha moderna de barro, a esquadria de madeira ou PVC, tecnologias, que assim como a geração do fogo foram gestadas pela humanidade num longo processo de compartilhamento. A arquitetura é um fato "permanente, universal e necessário", garantir que seu acesso seja universalizado a todos os membros da espécie humana, talvez seja o maior desafio colocado para o nosso ofício em nossos tempos contemporâneos. Tal objetivo é muito mais fácil de ser atingido, a partir da premissa da colaboração, solidariedade e do compartilhamento comunitário, do que pela competição desenfreada, ou pelo conflito de todos contra todos.


BIBLIOGRAFIA:

ARGAN, Giulio Carlo - História da Arte como História da Cidade - Editora Martins Fontes, São Paulo 1992

PATETA, Luciano - Historia de la Arquitectura, Antologia Critica - Editora Herman Blume, Madrid 1997

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Apontamentos da Aula 2: Arquitetura, Cidade, Filosofia e os 4 eixos do Congresso UIA2021Rio

 


A segunda aula do curso, Arquitetura, Cidade, Filosofia e os 4 Eixos do Congresso UIA2021Rio identificou a centralidade da questão habitacional nas grandes cidade contemporâneas, encarando-a como um direito, mas do que uma mercadoria. A centralidade dessa questão é por sua capacidade de transmitir de forma convincente, ao conjunto da sociedade, a ideia de que nenhum agente ou ator será deixado a margem, ou de lado. A ideia de um projeto de inclusão, para a cidade brasileira, e não mais de exclusão, como vimos na primeira aula. A ideia, de que a prática do planejamento e da projetação envolve uma dimensão de positividade transformadora, aonde o fazer se volta para a práxis, para a operacionalização dos desejos que foram socialmente construídos. Apresentou-se também a dimensão propositiva das ações de plano e projeto, que se arriscam na formulação de arranjos localizados no futuro, aonde declina a descrição e emerge a prescrição. O enfrentamento do vir-a-ser, como uma forma de interpretar o contexto com uma contribuição que se aproxima da arte e da ciência, na sua construção argumentativa, buscando cooptar os usuários.

“A história é uma comparação implícita entre o passado e o presente...E, por que seria ilícita a elipse quando a comparação é feita com uma hipótese futura, ao passo que seria lícita se feita com um fato passado... Se os fatos sociais são imprevisíveis e o próprio conceito de previsão é nada mais do que um som, o irracional não pode deixar  de dominar e toda organização de homens é anti história é um preconceito.” GRAMSCI 2001 página176

O tema habitacional da cidade brasileira é problematizado a partir da condição de subalternidade da cultura no Brasil, o “complexo de vira-latas” do nosso dramaturgo maior, Nélson Rodrigues, que foi apresentado na primeira aula. Um tema que permanece em aberto, e que historicamente foi encarado de uma maneira euro cêntrica, sem olhar para as reais condições alcançadas pela população precariada nas cidades brasileiras, que auto construíam seus abrigos nas favelas. O alijamento do mercado imobiliário formal, que mesmo nos momentos de maior produção de Habitação de Interesse Social (HIS), não conseguiu alcançar a grande maioria da nossa população. Atestam essas condições, não só as favelas mais as ocupações nos centros das cidades brasileiras. O Edifício Wilton Paes de Almeida, construído em (1960-68), de 24 andares, no centro de São Paulo, do arquiteto Roger Zmelkov, tombado pelo Conselho do Patrimônio (COPRESP) da cidade em 1992, veio ao colapso por incêndio devido suas precárias das instalações elétricas. No Rio de Janeiro, também o antigo Edifício do INSS no centro da cidade, ao lado da Assembleia Municipal é atualmente a Ocupação Manoel Congo, que desde de 2008, luta por sua regularização. Segundo a Fundação João Pinheiro de Belo Horizonte em Minas Gerais, o déficit habitacional no Brasil, chega a 6,9 milhões de domicílios, mas num paradoxo há no Brasil 6,05 milhões de imóveis desocupados. Certamente, além da subalternidade, o tema habitacional nas cidades brasileiras está refém da nossa cultura perpassada pelo Patrimonialismo exarcebado, e pela Absolutização da Propriedade Privada. Uma condição cultural, que bloqueia e represa o desenvolvimento mais inclusivo das cidades brasileiras, que apesar de desfrutarem de uma lei - o Estatuto da Cidade - , que representa um grande avanço, não encontra sua aplicação naturalmente introjetada.

“Foi, portanto, precisamente esta aguda falta de habitações, este sintoma da revolução industrial que se completava na Alemanha, que nessa altura encheu a imprensa com dissertações sobre a «questão da habitação» e deu azo a todo o tipo de charlatanarias sociais.” ENGELS 2015

O trecho acima foi retirado da A Questão da Habitação, que foi escrita por  Friedrich Engels entre maio 1872 e janeiro 1873, para o jornal Volkstaat em resposta a uma série de artigos que foram publicados nesse jornal de Leipzig, num debate sobre o alojamento das classes precarizadas dentro das cidades industriais europeias, que na ocasião explodiam de tamanho. Portanto, o texto faz mais de um século, e já apontava o significado da absolutização do Direito de Propriedade no solo da cidade, para as populações precarizadas, e, como tal condição bloqueava o acesso a essa benfeitoria, a moradia. O Brasil, assim como outros países na periferia do sistema capitalista possui parcelas expressivas da sua população, que não conseguem acessar pelo mercado formal, a condição da habitação. As marcas do colonialismo, do patrimonialismo, do patriarcado permanecem operando bloqueando uma reflexão própria e adequada às condições locais. Dentro dessa questão, se pensarmos sobre as favelas e os loteamentos irregulares, formas de promoção do acesso a moradia nas sociedades da periferia do capitalismo, nas cidades brasileiras, percebe-se a permanência do colonialismo.

"Ao analisar todos os orçamentos coloniais de 1925, por exemplo, constata-se que as colônias francesas tinham, em média, apenas dois fucionários públicos para cada mil habitantes, mas que cada um desses funcionários era remunerado cerca de dez vezes mais do que o nível de renda nacional médio por adulto nas colônias; já na metrópole, no mesmo período contavam-se cerca de dez funcionários para cada mil habitantes, com cada um ganhando o dobro da média nacional por habitante.”  PIKETI, 2020 pág.253

Após relembrar temas da primeira aula, tais como; o discurso de Ailton Krenak, que nos relembra a diversidade da humanidade, e a necessidade de ouvir as práticas e pensamentos dos povos originários da América. Ou, as diferentes leituras sobre a performance do século XX, a partir de dois livros; A era dos Extremos, o breve século XX 1914-1991 de Eric Hobsbaun 1995, e, O Longo século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo de Giovanni Arrighi 1996. Foi apresentada uma conceituação cara ao filósofo do início do século XX, na Itália, Antônio Gramsci (1891-1937), que caracterizou os intelectuais como tradicionais e orgânicos. Uma ideia fundamental no enfrentamento do colonialismo, que é visto pelo filósofo como um processo intrínseco da política, a expressão dos grupos subalternos, que ao se constituírem como identidade, elegem seus representantes. Para Gramsci, os intelectuais orgânicos eram membros vinculados às condições periféricas e subalternas, que ao buscar sua identidade ou auto expressão elegiam seus pensadores. Há nessa postura, uma consciência do desenvolvimento capitalista, que sempre nos remete ao confronto-complementariedade entre o arcaico e o moderno, aonde as duas condições não são apenas polos antagônicos, que se anulam, mas realidades que tomam conhecimento mútuo, e muitas vezes exploram sua proximidade de forma complementar, numa lógica econômica e geográfica interdependente. No caso particular da Itália por exemplo, as populações do sul da península ou da sua Sardenha, que migravam em direção às cidades industriais do norte (Turim e Milão) fragilizados em busca de emprego. Ou como no caso do Brasil, aonde populações nordestinas migraram e migram para São Paulo em busca de trabalho, e são constantemente fustigadas na sua condição de subalternos. A questão dos intelectuais orgânicos, que nascem das condições objetivas da existência do precariado, e que conseguem superar a sobrevivência, problematizando as razões de sua existência precária. Capacidade de formulação de uma narrativa auto-descritiva, ao mesmo tempo inaugural, construtora e produtora da Identidade e da Representação.

“...processo histórico de formação das diversas categorias de intelectuais, que é observado em todo grupo social, por nascer na base originária de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe conferem homogeneidade e consciência de sua função no campo econômico.” GRAMSCI 1934 Q4

A analogia utilizada para exemplificar essa condição no Brasil foi a diferença entre intelectuais como Antônio Cândido (intelectual tradicional) e Marielle Franco (intelectual orgânico), portadores de situações sociais, que condicionaram seu pensar. Mas a vertente aberta por Gramsci continua operando pelo mundo, e produzindo afilhados diferenciados. O historiador Indiano Ranajit Guha (1923-) estabelece na Universidade Sussex, na Inglaterra um grupo de pesquisadores em 1959, denominado Subaltern Studies. Abordagem anti essencialista e multi polar, baseada em Gramsci, com sua construção de entender o sistema capitalista a partir de um centro, que vulnerabiliza parcelas expressivas da população de todo o mundo. A também pesquisadora indiana, Gayatri Chakravorty Spivak (1942-) desenvolve nos EUA, na Universidade de Columbia, associada ao grupo do Subaltern Studies, escrevendo em “Pode o subalterno falar?” (versão em inglês 1988 e português em 2010-UFMG), usando Gramsci e o filósofo franco-magrebiano, Jaques Derrida (1930-2004). Ela é crítica literária, sendo sua tese de doutorado sobre o poeta irlandês Yeats, orientada pelo renomado Paul de Man. A construção da professora Spivak diferencia o falar por, do representar alguém, mostrando-nos como a representação política e simbólica envolve recursos complexos de linguagem.

"Sua crítica [de Spivak], de base marxista, pós-estruturalista e marcadamente desconstrucionista, frequentemente se alia a posturas teóricas que abordam o feminismo contemporâneo, o pós-colonialismo e, mais recentemente, as teorias do multiculturalismo e da globalização.“ ALMEIDA, Sandra Regina Goulart (UFMG – tradutora)

Essas propostas partem do Caderno 25 dos Q. di Carcieri de Gramsci, um dos poucos com título, que recebe clara denominação de; “Às margens da História: História dos Grupos Sociais Subalternos”. Há uma importante menção nos estudos da professora Spivak, a 11ª Tese sobre Feuerbach de Karl Marx; “Os filósofos até então pretenderam interpretar o mundo, hoje é mais importante modifica-lo.” Portanto, seu intento aparece em princípio como pensar a teoria crítica como uma prática intervencionista, engajada e contestatória. O livro; “Pode o Subalterno falar?”, assume um caráter  dialógico dos atos de escuta e fala, uma espécie complexa de “...reprodução de sua submissão à ideologia dominante.” Num comentário sobre um texto clássico do Derrida; A Política da Tradução, SPIVAK menciona a dificuldade de “fazer falar o texto de outrem, um processo contínuo de adiamentos, aproximações e sobretudo negociações.” Numa poderosa analogia com os procedimentos de plano, projeto e gestão do objeto a longo prazo, afinal os arquitetos operam materializando desejos de outrem. SPIVAK diferencia o Falar pelo Outro, da distinção clássica entre assumir o lugar do outro (falar por) e representar o outro (performance). Afinal, o “Sujeito subalterno é irredutivelmente heterogêneo..., nenhum ato de resistência pode ocorrer em nome do subalterno sem que esse ato esteja imbricado no discurso hegemônico.”

“Por "complexo de vira-lata" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima.” Nelson Rodrigues

No Brasil, a presença dessa vertente também se manifesta de forma articulada, tendo os gramscianos brasileiros grande expressividade no pensamento internacional. Há uma grande diversidade de gramscianos, começando por Carlos Nelson Coutinho (1943-2012), tradutor dos Quaderni di Carceri e formulador de um dos mais importantes artigos para a esquerda brasileira; “A democracia como valor universal” no final dos anos 70, que se afastava das formas de conquista violenta do poder, e é fortemente influenciado pelas posturas do PCI e do euro comunismo de então de Enrico Berlinger. O Leandro Konder (1936-2014) filósofo e professor da UFF e da PUC-Rio, escreveu a “Questão da Ideologia”, no qual percorre a abordagem de uma série de pensadores sobre a estruturação da compreensão do real, e a dissimulada presença ideológica. Luiz Werneck Vianna (1938-), sociólogo e professor da Puc-Rio escreveu a “Revolução Passiva, iberismo e americanismo” no Brasil, analisando a transformação da sociedade brasileira de escravista e agrário exportadora, em competitiva, urbano e industrial, numa transição acomodada e articulada de forma autoritária entre as elites apenas por cima, e sem envolvimento popular. E, por último, Marcos del Roio (1954- ) professor da UNESP no campus de Marília SP, organizou o livro Gramsci, Periferia e Subalternidade de 2017, e escreveu Gramsci e Emancipação do Subalterno 2018, destacando a identidade sarda do filósofo italiano, e seu combate ao positivismo. É também presidente da International Gramsci Society Brasil , e defende a tese de que o movimento operário no Brasil era americanista, no seu pragmatismo. DEL ROIO 2017, crítica a segmentação da ordenação do ensino público no mundo, que enfatiza aulas técnicas para os trabalhadores, enquanto o aprendizado humanista era destinado a burguesia e pequena burguesia. De um lado atividades mecânicas e pragmáticas e de outro a preparação para a administração e gerência pública. Em claras aproximações com o pensamento de Paulo Freire, auto-educação e liberdade; escola de direção e administração do processo fabril, transmissão de uma cultura operacional próxima e já acumulada, mas ainda subalterna, para buscar sua superação. Estamos, afinal diante de uma pedagogia da auto superação, um aprendizado desenvolvido por Gramsci na sua experiência com o jornal de Turim, A Ordem Nova.

“A escola organizada pelo L´Ordine Nuovo começou a funcionar em fins de 1920, quando o movimento dos conselhos de fábrica começava já a declinar, vítima dos ataques convergentes do Estado.... não tinha a intensão de preparar os trabalhadores para um mundo a eles estranho. Pelo contrário, a ideia era reforçar o princípio da solidariedade...A ideia de que o educador se deixa educar..., para a autogestão da produção e para a administração pública, entendida como auto-governo.” ROIO 2018 página121

O que nos leva a refletir sobre a linguagem humana, sua interação com o mundo real, sobre o trabalho humano e sua capacidade de representar o agente realizador. A linguagem de certa forma surge do distanciamento entre homem e natureza, afastando-o das coisas, tornando possível a nomeação delas. Enquanto, os animais vivem imersos na natureza, o homem cria um mundo artificial. A cidade e a arquitetura são os frutos da artificialização do mundo pelo homem. Emergem para nossa consciência três partes da experiência humana; O REAL: modo indicativo (o que existe), O ÉTICO: o modo imperativo (o que deveria existir), O POSSÍVEL: o modo subjuntivo (o que poderia existir). Nessas três possiblidades de abordagem do real, a humanidade desenvolve sua percepção do que existe, e imagina-se como indutor ou dedutor do que existe. Na sua interação com os objetos, produzidos por ele mesmo reflete que os artefatos não agem, mas paradoxalmente muitas vezes determinam nossas ações. As coisas definem como devem viver os indivíduos aos quais elas deveriam servir. Inversão entre sujeito e objeto, entre meio e fim, gerando a alienação. Expressão e mímese são faces do mesmo processo: toda expressão é uma mimese do sujeito, e toda mimese é uma expressão do objeto.

“Todas as artes expõe a relação fundamental entre homem e mundo – a relação de inerência: o sujeito é um momento do objeto. Mas enquanto a arquitetura expõe essa relação de um ponto de vista objetivo (o mundo contém o homem), as demais artes a expõe de um ponto de vista subjetivo (o homem está contido no mundo).” PULS 2006

O que também nos traz a reflexão de ARGAN, sobre a dimensão crítica do projeto; “Não se projeta nunca para, mas sempre contra alguém ou alguma coisa”. O que não significa projetar para si mesmo, mas imaginar e engendrar um outro mundo, que nasce da espacialidade, mas aponta para novos arranjos societários inexistentes e inesperados. É claro, que o planejamento e a projetação podem servir ao pensamento conservador, como aliás serviram historicamente no Brasil, para um alinhamento exclusivista e elitista. Toda classe dominante precisa atender parcialmente os interesses de algumas classes dominadas e desatender os interesses de outras. A obra é um discurso no qual um sujeito coletivo pede ou exige que o outro assuma uma posição que lhe seja favorável. O primeiro apela a um interlocutor, método dialógico, buscando persuadi-lo da justeza da obra representada no plano ou no projeto. O planejamento e a projetação não são apenas atividades científicas, mas também presumem ações artísticas, aonde o que se pretende é uma adequação completa ao contexto, aonde não há apenas a objetivação do espaço, mas o seu ordenamento sensível. A arte não é nem universal nem singular, ela é necessariamente particular, mostrando-nos como naquele momento foi possível se alcançar uma síntese reveladora. Segundo, o juízo um ente será considerado belo se agradar a muitos indivíduos em diferentes gerações e tempos, servindo ao mesmo tempo como Contemplação e Objetividade do processo de construção do humano. Na arquitetura e no urbanismo, as diferenciações tradicionais entre o Juízo do gosto puro e o Juízo do gosto aplicado estão misturados, determinando a indivisibilidade entre a Contemplação e a Objetividade. Tanto no planejamento, como na projetação o processo se encontra aberto, pois invariavelmente, ao se iniciar dispara a definição do que será, deixando seus participantes diante de perplexidades. Há um constante alcance de Conflitos eternos e Consensos episódicos, que se sucedem, mostrando-nos a natureza diversa da condição humana, em seus vários aspectos e conhecimentos.

“A obra não manifesta apenas a consciência da classe de origem (produtora), mas também a da classe de destino (consumidora)” PULS 2006

Mas não podemos imaginar, e nos deixar envolver pela crença iluminista de progressão contínua e unidirecionada das realizações humanas, uma crença cega no progresso tecnológico e cientificista, que nos trouxe a uma face perversa da modernidade. Os totalitarismos e a imposição científica da tecnocracia foram definitivamente abalados por um livro de 1948 de Max Hockheimer e Theodor Adorno, A Dialética do Esclarecimento, fragmentos filosóficos. Nele a pretensão ocidental e eurocêntrica de mostrar se como o núcleo duro da civilização foi desmascarada pelos dois filósofos da Escola de Frankfurt, asilados da Alemanha na Califórnia, pela ditadura de Hitler. A Alemanha, o país com maior grau de alfabetização na Europa e com a maior população universitária havia sido envolvida pela barbárie nazista, desembocando na unidirecionalidade ansiosa da técnica, desprezando a diversidade. Adorno e Hockheimer retrocedem ao mito de Ulisses ao atravessar o Mar de Sereias, nos relatos da Odisséia, resistindo ao seu canto amarrado ao mastro da embarcação, obrigando seus marinheiros a vedar seus ouvidos. É a metáfora da fruição e contemplação exclusiva da arte pela classe dirigente, condenando as categorias braçais dos marinheiros ao obscurantismo, levando o mundo em direção ao totalitarismo, que tem origem "naquela auto afirmação unitária". A pretensão ocidental de ser a representação única da civilização humana era desbancada pelos dois filósofos da Escola de Frankfurt, desiludidos com o movimento do Iluminismo. 

"Cantar a ira de Aquiles e as aventuras de Ulisses já é uma estilização nostálgica daquilo que não se deixa mais cantar, e o herói das aventuras revela-se precisamente como o protótipo do indivíduo burguês, cujo conceito tem origem naquela auto afirmação unitária que encontra seu modelo mais antigo no herói errante." ADORNO e HORKHEIMER 1985 página53

A partir desse ponto, a aula enveredou por mapear o desenvolvimento da Epistemologia do Projeto, desde o século XIX, com a emergência das cidades industriais até a nossa contemporaneidade com a emergência da acessibilidade das massas a informação e a educação. A partir de autores como; August Welby Northmore Pugin (1834-1875), John Ruskin (1819-1900), e William Morris (1834-1896) mostra-se como além da nostalgia pelo medievo, esses arquitetos buscavam a reconstrção do artesão de obra, como figura central no canteiro. Esses autores enfatizavam a primazia da esfera pública na construção do ambiente humano, afastando-se de um fazer personalista e demiúrgico, celebrando um saber compartilhado, que deve ser reforçado perante as ameaças da produção em massa, anônima, sem qualidade e atributos. Wiliam Morris, que era socialista assinalava a necessidade de construir um ambiente colaborativo e didático nos canteiros de obra, como um esforço civilizatório; “Não podemos nos furtar da arquitetura, uma vez que fazemos parte da civilização.” Não se imaginava apenas a colaboração dos especialistas na execução da obra, mas se pensava também em trazer à participação os usuários, com suas demandas e desejos. Há uma crítica moral à sociedade, uma denúncia romântica da arte eclética e acadêmica, da desumanização do maquinismo e do empobrecimento do espaço e do território na era industrial. Novo discurso social da arquitetura ligado a ampliação solidária e civilizatória do “Comum” e distinguindo duas maneiras de abordar o desenho; uma formal-compositiva e outra ético-política. Na verdade, esses autores são fundadores de uma tradição anti maquinista, culturalista e humanista, que vincula a concepção do espaço e a arte a ordenação social e alcance da cidadania. Ultrapassando o século XIX e chegando até nós por autores mais contemporâneos como; Patrick W. Geddes, Lewis Munford, Jane Jacobs, Bernard Rudofsky, Christopher Alexander e Carlos Nelson dos Santos. Há aqui a recuperação da arquitetura vernácula, da auto construção e dos argumentos ecológicos ligados a formação do ambiente humano, que se ergue a partir da solidariedade entre os agentes e atores da cidade.

Na verdade, a aula se fecha com a afirmação e celebração do "complexo de vira latas" de Nelson Rodrigues, como uma expressão sintonizada com o slogan do Congresso UIA2021Rio; "Todos os Mundos; Um só Mundo; Arquitetura 21" no sua celebração da diversidade cultural do planeta. Sem dúvida, há um valor imaterial na cultura brasileira, que nós não damos conta, afinal; não existe um Brasil puro sangue, não existe um povo brasileiro, mas existe uma idéia de Brasil. Desde cedo somos acostumados à diversidade, somos na verdade mineiros, paulistas, cariocas, paraibanos, baianos, pernambucanos, paraenses, índios, negros, japoneses, etc... Somos localistas e, muitas vezes como em Minas Gerais somos na verdade da Zona da Mata, do Triângulo, do Sul, do Centro ou do Jequitinhonha.  Talvez a nossa constante auto ironia, o nosso complexo de vira latas seja o valor imaterial maior da cultura brasileira. Uma cultura cosmopolita, pois está sempre interessada em ouvir o outro. Falta-lhe se colocar numa posição de potência de outra ordem, não mais capitalista, racista, patrimonialista, ou colonialista. O Brasil precisa acordar do cansaço da verticalização de suas instituições, quer se transformar numa diversidade horizontal, igualmente empoderada. O Plano e o Projeto desempenham papel fundamental nesse novo Brasil.


BIBLIOGRAFIA:

ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max - Dialética do Esclarecimento, fragmentos filosóficos - Editora Jorge Zahar Rio de janeiro 1985

ALBERTI, Leo Baptista - De arquitetura, a arte de construir: tratado de arquitetura e urbanismo - Editora Hedra São Paulo 2012

ARRIGHI, Giovanni - O Longo século XX: dinheiro, poder e as origens do nosso tempo - Editora Unesp São Paulo 1996

BRANDÃO, Carlos Antonio Leite - Os modos do discurso na teoria da arquitetura - disponível em www.arq.ufmg.br/ia/teoria.html 2006

ENGELS, Friedrich - Sobre a questão da Habitação - Editora Boitempo São Paulo 2015

GRAMSCI, Antonio - Cadernos do Cárcere - Civilização Brasileira Rio de Janeiro 2001

HABERMAS, Jürgen - Arquitetura Moderna e Pós Moderna - Revista Novos Estudos do CEBRAE setembro de 1987

HOBSBAWN, Eric - Era dos Extremos, o breve século XX, 1914-1991 - Editora Companhia das Letras São Paulo 1995

PIKETI, Thomas - Capital e Ideologia - Editora Intrínseca Rio de Janeiro 2020

PULS, Maurício - Arquitetura e Filosofia - Editora Anna Blume São Paulo 2006

ROIO, Marco del - Gramsci e Emancipação do Subalterno - Editôra UNESP São Paulo 2018

SANTOS, Boaventura de Souza - O futuro começa agora, da pandemia à utopia - Editora Boitempo, São Paulo 2021

SPIVAK, Gayatri Chakravorti - Pode o Subalterno falar? - Editora UFMG Belo Horizonte 2010

TAFURI, Manfredo - Teorias e História da Arquitetura - Editorial Presença Lisboa 1981