domingo, 29 de julho de 2018

O livro Ruptura de Manuel Castells

Acabei de ler o livro Ruptura, a crise da democracia liberal de Manuel Castells, que se debruça sobre o problema da representação política nas democracias contemporâneas, onde o elo entre governantes e governados parece que se rompeu de forma definitiva. Havendo a emergência de variados discursos, que com alguma falsidade, mas com certa aceitação geral se auto declaram como outsiders do sistema político imperante, tais como; Trump, Macron, João Dória, Berluschoni, e outros. Castells não faz menção aos anseios pela democracia direta, em contraposição a democracia representativa, que vem sendo pautado pelo movimento 15-M espanhol. A ruptura transcende o racionalismo iluminista, berço da democracia, interferindo no senso comum pelo lado cognitivo e emocional, onde a descrença dos dirigidos aos dirigentes assume proporções inusitadas. Um retorno ao discurso identitário, com a emergência de partidos xenófobos, nacionalistas e restauradores de um passado mítico, que acabaram derivando em decisões passionais, tais como; Brexit, Movimento 5 estrelas da Itália, ou neonazistas naquela que parecia vacinada, a velha Alemanha. O livro tem pretensões universalizantes, mas na verdade incorre num certo euro centrismo, e até mais num hispano centrismo, pois mesmo sobre o contexto europeu a ausência de aprofundamento sobre a Alemanha e a Itália denunciam essa tendência.

"Não é uma rejeição à democracia, mas a democracia liberal tal como existe em cada país, em nome da democracia real, como proclamou na Espanha o movimento 15-M. Um termo evocador que convida a sonhar, deliberar e agir, mas que ultrapassa os limites institucionais estabelecidos." CASTELLS 2018 página8

Castells localiza o problema nos partidos e na classe política, identificando um certo burocratismo, que autonomizou essas esferas com relação ao cidadão comum, se posicionando de forma corporativa determinando uma recorrente frustração das mais variadas esperanças. O resultado é que a resignação ou resiliência dos governados vem sendo substituída pela indignação, fazendo com que 2/3 dos habitantes do planeta não se sintam representados pelos políticos, que cada vez mais se profissionalizam e abandonam suas ideologias. Há uma clara ruptura da coesão social das sociedades centrais ou periféricas, onde uma parcela significativa da população parece ser abandonada pelas elites cosmopolitas. A esquerda definitivamente parece ter perdido o bordão universalista expresso no Manifesto Comunista - "Operários do mundo uni-vos." - tornando-se provinciana frente as camadas profissionais mais internacionalizadas e alienadas.

"Ao passo que as camadas profissionais de maior instrução e maiores possibilidades se conectam através do planeta em um nova formação de classes sociais, que separa as elites cosmopolitas, criadoras de valor no mercado mundial, dos trabalhadores locais desvalorizados pela deslocalização industrial, alijados pela mudança tecnológica e desprotegidos pela desregulação trabalhista. A desigualdade social resultante entre valorizadores e desvalorizados é a mais alta da história recente... Enquanto as elites triunfantes da globalização se proclamam cidadãs do mundo..." CASTELLS 2018 páginas18e19

A criação espontânea de valor nesse tipo de economia passou a representar a consequência da desregulação geral fiscal, principalmente sobre o capital rentista, que libertado das suas amarras passou a fluir de forma ansiosa e rápida sobre os lugares. Mas, na verdade as raízes de fato da crise se localizam no capital financeiro global, que passou com as tecnologias de informação e comunicação a pautar os governos nacionais, estaduais e municipais com sua criação artificial e ansiosa de valores, seduzindo e corrompendo todos os níveis de governo. A ciranda financeira assumiu proporções nunca antes identificadas, onde a moeda não precisou mais dos setores produtivos, gerando mais concentração de riqueza num sistema perverso, onde quem tem dinheiro consegue gerar mais dinheiro, sem os perigos da produção. Castells, apesar do seu marxismo não identifica as tendências monopolistas do capitalismo tardio, não apontando o conluio sempre recorrente entre o grande capital produtivo e o rentismo hegemônico, deixando entender que haveria divergência de interesses, entre esses dois atores. O desafio econômico de nossos tempos, me parece muito mais capilarizar entre pequenos investidores as iniciativas ordenadoras e reguladoras dos Estados contemporâneos, garantindo a fixação dos negócios e do emprego nos lugares. A volatilidade dos grandes grupos, produtivos e rentistas, parecem demonstrar o esgotamento de um modelo, que ainda insiste, apesar da crise de 2008, em pautar as ações dos governos, para resultados imediatos.

"Na raiz da crise de legitimidade política está a crise financeira, transformada em crise econômica e do emprego, que explodiu nos Estados Unidos e na Europa no outono de 2018. Foi, na realidade, a crise de um modelo de capitalismo, o capitalismo financeiro global, baseado na interdependência dos mercados mundiais e na utilização de tecnologias digitais para o desenvolvimento de capital virtual especulativo que impôs sua dinâmica de criação artificial de valor à capacidade produtiva da economia de bens e serviços. De fato, a espiral especulativa fez colapsar uma parte substancial do sistema financeiro e esteve prestes a gerar uma catástrofe sem precedentes. À beira do precipício, os governos, com nosso dinheiro, salvaram o capitalismo... E assim, país a país, os governos foram intervindo, evidenciando a falácia da ideologia neoliberal que argumenta a nocividade da intervenção do Estado nos mercados." CASTELLS 2018 página20

A capacidade de planejamento e de dimensionamento das oportunidades no médio e longo prazo parece não existir mais, um literal achatamento do tempo, onde os agentes econômicos parecem esquecer das gerações futuras, pretendendo realizar o máximo de lucro em curtíssimo prazo, sem qualquer vínculo com a economia local. O Estado protege cada vez mais os especuladores e fraudadores sobre a alegação de que representam grupos muito grandes e poderosos, que se quebrarem significariam verdadeiras tragédias. "So big to crash", na expressão em inglês, que justificou a salvação do conglomerado segurador da maior parte dos bancos do mundo, a American International Group (AIG), que sobre a anuência de Obama foi literalmente nacionalizada com dinheiro do contribuinte americano, que comprou 80% das suas ações.  Há também uma clara emergência nas finanças internacionais de uma distinção de posicionamentos e ações, onde a economia central pode tudo, enquanto a periferia é condenada ao rigor fiscal.

"E, embora o caso da Espanha seja particularmente lancinante, porque Zapatero e Mariano Rajoy chegaram a mudar a sacrossanta Constituição segundo os ditames de Angela Markel e da Comissão Europeia em troca da recuperação dos bancos e da dívida pública, o mesmo tipo de práticas de austeridade se impôs em toda a Europa. Mas não nos Estados Unidos, onde a administração de Obama aumentou o gasto público, sobretudo em infraestrutura, educação e inovação, permitindo que o país saísse da crise muito antes da Europa." CASTELLS página22

A atitude da social democracia e do trabalhismo europeu, e também de outros partidos de esquerda como o PT no Brasil, que embarcou na implantação de políticas de austeridade fiscal cobrou um preço alto em vários países como Reino Unido, França, Alemanha, Holanda, Espanha e Escandinávia, onde as bases socialistas se sentiram traídas,e até no Brasil. A última eleição de Dilma também repete essa mesma traição, quando após uma eleição apertada a presidenta eleita se aproxima do discurso do ajuste fiscal, com a nomeação de Joaquim Levy para Ministro da Economia. A realidade na semi periferia do capital repete a mesma lógica de esvaziamento das posições de esquerda, em favor da pauta da hegemonia financeira, que aliás já estava presente na recusa de confrontar os imperativos do mercado, na Carta aos Brasileiros do primeiro Lula. Mas, não é apenas a presença de um certo esvaziamento ideológico dos partidos de esquerda e de direita, há ainda a ampliação da corrupção sistêmica na política. A ideologia neo liberal elegeu como modelo de sucesso triunfante, o consumo, a posse de bens sofisticados, e o ganho empresarial como forma hegemônica de operar.

"É a ideologia do consumo como valor e do dinheiro como medida do sucesso que acompanha o modelo neoliberal triunfante, centrado no indivíduo e em sua satisfação imediata monetizada. Na medida em que as ideologias tradicionais - fossem as igualitaristas de esquerda ou aquelas a serviço dos valores da direita clássica - perderam firmeza, a busca do sucesso pessoal através da política relaciona-se com a acumulação pessoal de capital aproveitando o período em que o indivíduo detém posições de poder." CASTELLS 2018 página25

Nesse campo, a presença das notícias negativas e de uma política de exploração do escândalo, que são muito mais sedutoras para os veículos de comunicação possui um potencial devastador gerando um sentimento geral de desconfiança e reprovação sobre a atividade política. No Brasil, o mundo da pós verdade ancorado nas chamadas mídias sociais, fragmenta os fatos em um número exponencial de versões, onde a incerteza é a única verdade aceitável. Há também a presença do medo, e seus reflexos políticos, que na Europa e nos países centrais assume uma dimensão extraordinária a partir do terrorismo principalmente islâmico. Enquanto no Brasil e nos países da semi-periferia, a violência vem sendo insuflada a partir do tráfico de drogas, milícias e outras organizações a margem do Estado. A consequência política dessas presenças é a negação das liberdades civis, a militarização do espaço público, a estigmatização de uma parcela da sociedade pela religião ou pela etnia, e a emergência de um estado de exceção. A discriminação laboral, educacional, territorial, política e cultural acaba levando todos a uma baixa auto estima, onde a sensação geral é de perda da coesão social e ampliação do sentimento de que ficamos para trás. Diante dessa insegurança, os aparelhos políticos cristalizados bloqueiam a emergência de novas experiências, como a do Senador social democrata Bernie Sanders por Vermont, que foi barrado pela burocracia do Partido Democrata, por suas posições antiestablishment. A última eleição americana ainda guarda segredos da articulação da campanha de Trump com o governo russo, que hackeou os computadores do Partido Democrata franqueando informações fundamentais. A classe operária branca da américa profunda, golpeada e ressentida pela imigração foi a principal expressão contra o declínio da nação, mesmo entre votantes brancos e universitários, Trump teve 49% dos votos, contra 45% de Hillary.

"O pertencimento racial foi o indicador chave dessa reação maciça dos brancos. Parece que a eleição de Obama, em vez de ter apaziguado o racismo, aguçou-o, levando para Trump o voto de ressentimento racial dos brancos, particularmente acentuado entre os brancos de menor instrução, mas igualmente majoritário entre os homens da classe média com qualificação profissional...São pessoas atemorizadas pela rápida mudança econômica, tecnológica, étnica e cultural do país." CASTELLS 2018 página47

A identidade patriarcal do homem branco contestada por uma infinidade de discursos afirmativos de outros grupos se sentiu ameaçada, produzindo a emergência de discursos racistas, neonazistas e antissemitas, acabando por eleger Donald Trump de forma inesperada. Mas o discurso antissistema de Trump da campanha acabou, como o do próprio Obama se dobrando aos ditames de Wall Street, e sua lógica rentista, o que pode ser comprovado com a nomeação de Steven Mnuchin do Goldman Sacks para chefiar o Tesouro. Logo no início de seu governo houve uma forte alta da bolsa, apesar da reserva do setor mais produtivo, com relação aos arranjos protecionistas do novo governo, e seu projeto messiânico de nacionalismo radical. Na verdade, a lógica especulativa e rentista dos grupos sociais das elites cosmopolitas continua permeando um certo darwinismo social, que pretende dividir o mundo entre escolhidos bem sucedidos, e uma ampla massa de excluídos e párias. CASTELS 2018, aborda então o Brexit, a saída também inesperada da Grã Bretanha do bloco da União Europeia, quando 51,9% dos britânicos optaram num plebiscito vinculante pelo desligamento. As elites inglesas pareciam estar descontentes com o imenso afluxo de imigrantes, principalmente do leste europeu, que vinham invadindo uma suposta excepcionalidade da ilha britânica. David Cameron, o aristocrata do partido Conservador foi eleito em 2015 com a promessa de realização de um plebiscito, que avaliasse a pertinência na União Europeia. Ele próprio favorável a permanência no bloco europeu, mas comandando uma campanha, que chegou a ser conhecida como "Projeto Medo", onde era anunciada uma verdadeira catástrofe econômica e social se a separação vencesse.

"De modo que o motivo explícito de mobilização a favor do Brexit foi claramente a exigência de controle das fronteiras e a rejeição à imigração...Mas o que se expressou através da oposição à imigração e à União Europeia foi a profunda divisão de classe e de culturas que define a sociedade britânica, assim como as sociedades ocidentais em geral. O local se opôs ao global utilizando o único instrumento disponível: a fronteira. CASTELLS 2018 página63

O destaque na citação é meu, para chamar a atenção para um conflito que vem crescendo pelo mundo, onde empreendedores locais pulverizados se contrapõe a grandes investidores internacionais, que procuram cada vez mais se descolar da base geográfica, fluindo pelo mundo. Mas, o mais interessante no processo do Brexit foi o realinhamento do Partido Trabalhista as posições mais a esquerda, com o abandono definitivo da terceira via e seus compromissos com o social-liberalismo de Tony Blair. A emergência de Jeremy Corbyn dentro do Partido Trabalhista, ironizada pelos seus caciques - Tony Blair, Gordon Brown, Jack Straw e Ed Miliband - e pela mídia como velharias da antiga esquerda, na verdade reforçou sua posição em 2017, fazendo com que o trabalhismo aumentasse em 31 assentos, varrendo a maioria absoluta dos conservadores. Corbyn, em seu discurso ampliou as vozes críticas a alguns alinhamentos automáticos do establihment partidário inglês, seja da esquerda ou da direita, como a subordinação à pauta financeira e às políticas de austeridade fiscal impostas pela Alemanha. Pela primeira vez depois da crise aguda de 2008 eram propostas nacionalizações seletivas de setores estratégicos, como energia e transportes; aumento substancial dos gastos públicos em educação, saúde, moradia e segurança, a partir do aumento de impostos sobre ricos e grandes empresas. Será, que o consenso neoliberal da classe política começa a ser colocado em cheque?

"Dessa vez, os jovens e os setores mais instruídos votaram mais nos trabalhistas do que nos conservadores. Mas também a classe operária das zonas industriais retornou ao velho partido social democrata. Os que votaram contra o Brexit votaram significativamente nos trabalhistas. CASTELLS 2018 página71

Na França, também se desenvolverá processo semelhante, com a emergência de Emmanuel Macron e Jean-Luc Mélenchon, o primeiro, ministro da economia no gabinete socialista do primeiro ministro Manuel Valls criou um movimento a partir de publicitários denominado "En Marche", o segundo, um dissidente socialista, que lançou uma candidatura alternativa "A França Insubmissa". O primeiro turno acabou com Macron com 24% dos votos, Le Pen com 21%, Fillon com 20% e Mélenchon com 19,6%. No segundo turno deu-se um passeio de Macron, com a maioria dos votantes rejeitando as teses de extrema direita de Marine Le Pen, apesar de Mélenchon negar o apoio a Macron, por suas teses neoliberais, quando havia sido ministro. Na sequência, um nível histórico de abstenção perpassou as eleições legislativas em junho de 2017: 51,2%. E, apesar disso a pseudo novidade política da França, Macron pretende implantar uma reforma trabalhista, que precariza o emprego e congela os salários. Na verdade, o que tudo isso denuncia é que o projeto da União Europeia é elitista e tecnocrático, imposto a maioria dos cidadãos sem debates e consultas, que permitissem a cooptação de amplas massas. A hegemonia alemã foi capaz de impor políticas de austeridade orçamentária, que correspondiam muito mais aos interesses do seu sistema financeiro, do que aos países membros, a crise de 2008 começa a demonstrar que esse sistema não se sustenta mais. 

O livro de Manuel Castells é uma singular oportunidade de conhecer os processos históricos mais recentes na Europa, pelo menos na Espanha, na Inglaterra e na França, mas também nos EUA mostrando claras analogias com o desencantamento político em nossa América Latina.

BIBLIOGRAFIA:

CASTELLS, Manuel - Ruptura, a crise da democracia liberal - Editora Zahar Rio de Janeiro 2018

RECENTE ENTREVISTA DO ESTADO DE S.PAULO (22/07) COM MANUEL CASTELLS

"HOJE, NO BRASIL, A QUESTÃO NÃO É ESQUERDA OU DIREITA, E SIM PARTIDOS DEMOCRÁTICOS CONTRA COALIZÃO NEOAUTORITÁRIA"

ESP: O senhor crê na possibilidade de candidatos de partidos sem muita capilaridade venceram a eleição presidencial brasileira mesmo com o peso das máquinas partidárias? Muitos apostam em uma queda gradual de Jair Bolsonaro e Marina Silva no decorrer da campanha.
 
Castells: As máquinas regionais são decisivas por sua capilaridade e porque são a base do clientelismo e, portanto, da corrupção. Creio que tem razão quando diz que Bolsonaro irá cair – o poder econômico brasileiro não é aventureiro. No entanto, a política tem sua lógica própria e uma campanha demagógica em plena confusão e com crise econômica pode causar uma hecatombe institucional. O manifesto dos partidos de centro liderado por (Fernando Henrique) Cardoso é uma chamada de atenção ao perigo que representa Bolsonaro, e creio que pode ser um fator decisivo para deter a crise da institucionalidade. Hoje, no Brasil, a grande questão não é esquerda ou direita, e sim partidos democráticos (ainda que corruptos) contra uma coalizão neoautoritária apoiada por grupos de interesses ideológico extremistas internacionais.

ESP: Apesar de toda a inovação do Podemos, quem volta ao poder enquanto esquerda na Espanha é o tradicional PSOE. Quão influente é a existência do Podemos para o novo governo de Pedro Sánchez?

Castells: Há uma nova política na Espanha que surge do movimento 15-M. Não só o Podemos surge do 15-M, como Pedro Sánchez afirma se inspirar em muitos dos valores desse movimento. A aliança parlamentar entre PSOE e Podemos já é um feito e só mediante essa colaboração pode se desenrolar o novo projeto reformista e democrático espanhol. Tudo depende de que nos anos até as eleições essa aliança possa aprovar políticas sociais progressistas a fim de se consolidar no poder por meio das eleições. Há uma convergência explícita entre Sánchez e Iglesias (líder do Podemos), algo semelhante ao que ocorre em Portugal, o país europeu que melhor funciona política e economicamente no momento. O grande problema segue sendo a Catalunha, difícil de resolver por causa do radicalismo do presidente catalão e a utilização desse radicalismo por parte do nacionalismo espanhol representado pelo partido Ciudadanos, cuja base de apoio se alimenta da oposição a Catalunha. Sánchez está tentando dialogar e conciliar, mas os nacionalismos dificultam.

ESP: O sr. crê na possibilidade de Portugal e Espanha, que historicamente não têm muito peso na União Europeia, influenciarem a política de Bruxelas por meio da negação da austeridade? Quão simbólica é a posse de Mário Centeno, o ministro das finanças portuguesas, como presidente do Eurogrupo?

Castells: Portugal está demonstrando que uma política sem austeridade, mas com rigor fiscal, é mais adequada para o sul da Europa, e Centeno tem cada vez mais respeito entre seus colegas. Sánchez quer avançar nessa direção, mas agora precisa reformar as instituições, corroídas pela corrupção sistêmica do PP. Até agora, Sánchez conseguiu formar uma aliança estratégica com Merkel e Macron para dar uma resposta humanitária conjunta à gravíssima crise dos refugiados, agravada pelo fascismo italiano. Em menos de um mês de governo, Sánchez mudou o clima político na Espanha, que é a quarta economia da União Europeia, e na Europa. Prepara-se uma confrontação com os regimes neofascistas da Polônia, Hungria, República Checa, Áustria e Itália, os ‘bolsonaros’ europeus. Estamos em uma situação de emergência e Sánchez e António Costa (primeiro-ministro português), junto com Merkel e Macron, são a esperança da sobrevivência dos valores democráticos na Europa.

sábado, 14 de julho de 2018

A sempre repetida revolução-restauração da nossa história e as favelas

A transformação da Itália
Antonio Gramsci teve como um de seus principais temas, o Risorgimento italiano, que em português significa Resurgimento, e que ocupa parte substancial da história do século XIX (1815-1870), como o movimento de construção da unificação do Estado nacional na Itália. O mapa italiano em 1829 era composto por uma série de reinos, que aqui podem ser resumidos do norte para o sul, como; o Piemonte-Sardenha com a capital em Turim, a Lombardia cuja a capital era Milão, o Veneto onde a principal cidade era Veneza, os reinos de Parma e Módena, o Ducado da Toscana onde estava Florença, os Estados papais polarizados por Roma, e o Reino das duas Sicílias que tinha sua centralidade em Nápoles. Essa configuração de diversas Cidades-Estados, muitas vezes ocupados por potências européias como o Veneto pelo Império Austríaco, ou Roma por Napoleão III, e a Sicília também pela França chegaram ao final do século XIX (1870) como a Itália que hoje conhecemos. Gramsci em sua caracterização desse periodo, como uma revolução burguesa, que diferentemente da França, declinava da ruptura violenta, e enveredava por uma modernização sem a mobilização popular, uma Revolução-Restauração, ou uma transformação por cima. Essa revolução-restauração burguesa liberal e tardia, que envolvia o nacionalismo contra o inimigo austríaco, na verdade não rompia seus compromissos com a velha ordem social, apesar da presença de uma série de posicionamentos mais populares pulverizados entre; maçons carbonários, republicanos, democráticos e jacobinos. Essa operação de conservar mudando, significava uma desorganização molecular da hegemonia dominante, ao mesmo tempo em que procura manter acordos e privilégios dos grupos instalados no poder. O modelo de pensar a história em Gramsci, sempre envolveu essa complexa relação entre transformação e preservação, que desemboca na estrutura das lutas ideológicas, que podem se consolidar em predominâncias ou hegemonias. A política para Gramsci é sempre um jogo de convencimento, onde grupos de interesses específicos constroem narrativas explicadoras (ideologias), que por obter um poder de convencimento amplo (hegemonia), se consolidam  como predominâncias.

"O capitalismo é um fenômeno mundial e seu desenvolvimento desigual significa que as nações não podem estar individualmente no mesmo nível de desenvolvimento ao mesmo tempo...o ímpeto de progresso não estar firmemente vinculado ao vasto desenvolvimento local [...] mas, ao contrário, ser reflexo de desenvolvimentos internacionais que transmitem suas correntes ideológicas para a periferia - correntes nascidas do desenvolvimento produtivo dos países mais avançados." GRAMSCI Q19 página90

Gramsci sempre mencionou a necessidade das narrativas dos grupos de interesses superarem os limites corporativos, ou dos interesses imediatos, sensibilizando parcelas mais amplas da população, alcançando o consentimento geral, ou hegemonia. O sistema de pensamento gramsciano envolve a expansão capitalista no mundo, seu poder de convencimento e sua persuasão, a interdependência entre Estados nacionais e suas especificidades culturais e econômicas são levadas em conta. Dentro dessa estrutura de pensamento há claros conceitos espaciais e históricos como, a centralidade e a periferia, ou a vanguarda e uma certa retaguarda tardia, que organizavam uma hierarquia de pensamento. A ampliação do sistema social baseado na concorrência, o capitalismo, do qual as Revoluções Inglesa, Americana e Francesa eram ao mesmo tempo seu centro e também sua vanguarda, se espalhando pelo mundo europeu, atingindo a Alemanha e a Itália  de forma tardia, determinando especificidades como a via prussiana, ou a revolução passiva. Tais acontecimentos eram explicados pela ampliação tardia do capital pelo mundo, que invariavelmente envolviam soluções autoritárias e autocráticas, onde o Estado assume uma clara hipertrofia frente a fraqueza da sociedade civil. Gramsci por sua origem na Sardenha, tinha uma consciência apurada das noções de periferia e subalternidade, que perpassavam as mentalidades do sul da Itália, agrário e atrasado, em relação ao norte, urbanizado e desenvolvido. Noções como dirigente, comando, intelectual estão estruturadas em seu pensamento para romper a estrutura de dominação vertical e autoritária, estabelecendo-se uma relação com mais horizontalidade, permitindo manifestações moleculares e dispersas.

A via reacionária de modernização capitalista é um pouco a tônica da nossa história, tanto no caso da Revolução de 1930, como também na Ditadura Civil e Militar de 1964, ambas com claras conotações autoritárias, que afastam os setores populares sempre com o argumento do despreparo ou imaturidade das massas de defender seus interesses. Na verdade, alguns autores (VIANNA 1997) retrocedem ainda mais atrás em nossa história nessa analogia com o conceito gramsciano da Revolução Passiva, na transmigração da familia real portuguesa para a Colônia, que se deve a um movimento defensivo em relação à irradiação da Revolução Francesa, sob Napoleão. Nesse contexto, a condução da expansão da acumulação capitalista é feita também a partir do Estado, com uma clara hipertrofia das suas iniciativas frente as dos indivíduos e cidadãos. Uma espécie de minoridade das ações moleculares, dispersas na sociedade civil, que invariavelmente esperam a iniciativa indutora do Estado, que estão presentes nas nações de desenvolvimento tardio do capitalismo; Alemanha e Itália, mas também o Brasil. O modelo de capitalismo renano-prussiano, aonde o Estado assume maior protagonismo traz consigo uma via autocrática e autoritária, que ao mesmo tempo que implanta a nova ordem concorrencial, também paternaliza e reprime as iniciativas moleculares na sociedade. Essa argumentação possui profundos vínculos espaciais, determinando um centro irradiador e a periferia, mas também sub centros modernizadores, como o norte da Itália ou São Paulo, e periferias arcaicas como o sul da Itália ou o Nordeste do Brasil. Nesse quadro a modernização periférica não é só penalizada pela proximidade do arcaico, mas também e principalmente é beneficiada, super explorando e se apropriando da proximidade da precariedade, depreciando os salários. O fenômeno também se manifestava nos países centrais do desenvolvimento capitalista, determinando centros dinâmicos, Londres e periferias subalternizadas, Irlanda. Esse processo impulsionava desenvolvimentos desiguais, determinando fluxos migratórios, que ao final deprimiam o valor da mão de obra nos centros dinâmicos, a partir da super oferta de mão de obra.

Nesse contexto, o interesse pela manutenção do arcaico e da proximidade do subdesenvolvimento passa a ser funcional, possibilitando os acordos entre elites modernizantes e antigas oligarquias arcaicas, que realizam o benefício mútuo, represando as explosões revolucionárias. A modernização se beneficia do arcaico, pois esse último garante um processo de acumulação muito mais vantajoso, que ao final consolida o acordo entre realidades que pareciam irreconciliáveis. Esse contexto também determina uma certa subalternidade do nosso pensar, que literalmente não enxerga nossa realidade, se refugiando em outros modelos, que fatalmente não se ajustam as nossas condições. Um campo emblemático dessa condição é a política habitacional no país, que invariavelmente tem como premissa, o não reconhecimento da favela, como um fruto particular de nossa realidade, e, que num determinado estágio no futuro de nosso desenvolvimento nacional poderia ser suprimida integralmente. A habitação precária sempre foi fruto do não atendimento de parcelas expressivas de nossa população pelo mercado formal de produção habitacional no Brasil, que mesmo nos momentos de grande boom econômico, nunca conseguiu atender uma faixa entre 30 a 40% de nossa população, que não acessa o financiamento da casa própria. Essa minoridade do nosso desenvolvimento, que perpassa todas as cidades brasileiras, afinal todas possuem assentamentos improvisados tipo favelas é por um lado, a demonstração da precariedade de nosso mercado imobiliário, mas por outro também pode ser vista como uma potente solução elaborada pelo conjunto da sociedade civil molecular, diante dessa inacessibilidade a moradia. A favela brasileira não deve ser nunca romantizada, afinal ela é claramente consequência da não universalização do nosso mercado imobiliário, portanto de uma precariedade efetiva, mas deve ser vista como uma solução criativa e potente, encontrada por uma parcela de nossa população, que parecia ter sido abandonada pelo país.

O pensamento de Gramsci, que possui profundas conotações espaciais e históricas sobre o desenvolvimento da economia capitalista no mundo, como um sistema único e interdependente nos ajuda a construir a consciência de uma certa subalternidade, presente no pensar brasileiro, que nos impede de identificar as especificidades de nosso processo. A emergência tardia de uma economia concorrencial, represada pela escravidão e por outros traços de nossa história, determinou uma incapacidade de identificação de manifestações positivas em nossa precariedade, como a favela, que precisam mudar. A leitura de Gransci, através do cientista político Luiz Werneck Vianna, no livro A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil, nos permite refletir de forma mais estruturada nossa inserção na economia mundo, passando a identificar nossa subalternidade dentro de suas reais potencialidades, e não apenas como negatividade.

BIBLIOGRAFIA:

VIANNA, Luiz Werneck - A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil - Editora Revan Rio de Janeiro 1997

DEL ROIO, Marcos org. - Gramsci, periferia e subalternidade - Editora EDUSP São Paulo 2017