quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Dois livros e o carnaval, um sobre as oligarquias, e outro, sobre o precariado no Brasil

Dois livros recentemente lançados, lidos de forma intercalada estão mobilizando a minha atenção nesse carnaval de 2018, o primeiro é A oligarquia brasileira, visão histórica do jurista Fábio Konder Comparato, e o segundo, A ralé brasileira: quem é e como vive do sociólogo Jessé Souza. São construções poderosas no sentido de explicar nosso país, nesse início do século XXI, ambos tratam da péssima distribuição de renda do Brasil, e dos dois extremos do nosso espectro social. COMPARATO 2017, desenvolve seu texto em torno de uma revisão histórica, mostrando uma recorrência impressionante no módus operandi de nossas elites endinheiradas, a partir da construção de suas leis. Enquanto, SOUZA 2018 desenvolve uma revisão de nossos clássicos da sociologia brasileira, que construíram nossos discursos auto explicadores. Duas realidades, a oligarquia e a ralé, que estão profundamente conectadas e interdependentes, muitas vezes determinando os comportamentos da sociedade como um todo. O fato inescapável, é que o Brasil está entre as dez maiores economias do mundo, possui uma oligarquia que anda com desenvoltura por todas as partes, e uma enorme massa de despossuídos, que não se beneficiaram ontem e hoje desse mesmo desenvolvimento. Essa conjuntura não é fruto do desejo dos deuses, ou foi criada pelo acaso, mas ela é construção de uma vontade, de um plano e de um projeto, que essa mesma oligarquia traçou de abandono da sua própria população. O desenvolvimento tardio de nossa burguesia fez com que ela já nascesse internacionalizada, e não tivesse vínculos produtores de um projeto de nação. A recusa e o abandono de parcelas expressivas de sua própria população parecem hoje práticas disseminadas entre todas as elites do mundo, que abandonaram a produção e abraçaram um rentismo sem lugar.

A Oligarquia brasileira, visão histórica

COMPARATO 2017 historiciza a partir de nossa prática política, particularmente nos momentos de transição no Estado, a forma particular das nossas oligarquias se acomodarem no poder, evitando conflitos, e procurando ajeitar interesses pretéritos e futuros de forma a recalcar o embate. Começando com nossa independência, que contrapôs as cortes em Portugal aos nossos grandes proprietários rurais, que queriam permanecer indicando os altos funcionários do nascente império. Dom João VI abdica informalmente, passando a coroa do reino brasileiro a seu filho primogênito, Pedro I, volta a Portugal pretendendo conservar o reino lusitano. Logo depois, numa localidade entre a então provinciana São Paulo e o Rio de Janeiro, esse príncipe português declara nossa independência no meio do mato, indignado com as pressões das cortes, longe de qualquer manifestação ou proximidade popular, como atesta o trecho destacado de Saint Hilaire;

"O povo nada ganhou com a mudança operada. A maioria dos franceses lucrou com a Revolução que suprimiu privilégios e direitos auferidos por uma casta favorecida. Aqui, lei alguma consagrava a desigualdade, todos os abusos eram o resultado do interesse e dos caprichos dos poderosos e funcionários." citação de Saint Hilaire em COMPARATO 2017 página 21

Segue-se a abdicação de D. Pedro I em favor de seu filho, Pedro II, ainda infante, que foi caracterizada por Joaquim Nabuco, como;

"um desquite amigável entre o Imperador e a nação, entendendo-se por nação a minoria política que a representa." citação de um Estadista do Império em COMPARATO 2017 página 21.

Chega-se a proclamação da república, a qual nasce de um mal entendido, no qual o marechal monarquista Deodoro da Fonseca, queria apenas destituir o Primeiro Ministro, o Visconde de Ouro Preto, insatisfeito com o papel legado as nossas forças armadas, após a Guerra do Paraguai. Essa insatisfação será manipulada pelos grandes latifundiários do sudeste, contrariados com a Lei do Ventre Livre e a Lei Aurea, impostas pelo poder monárquico.

A Revolução de 30, segue na mesma toada, nascendo da divergência profunda entre a oligarquia patriarcal e agrária geral contra o apoio preferencial à cafeicultura, na proteção ao preço internacional do café pelo Estado. Assim, a industrialização paulista, fomentada pelo Estado, segue a política de acomodação com os interesses inicialmente contrariados, pelo movimento de  30.

A destituição do Ditador Getúlio Vargas mais uma vez se dará de forma pacífica e conciliada por cima, com a eleição do Ministro da Guerra do caudilho gaúcho, Eurico Gaspar Dutra para a presidência do país, o mesmo que o expulsara do Palácio do Catete, que apesar disso também será indicado pelo próprio. E, a própria eleição de Getúlio Vargas como senador por dois estados; Rio Grande do Sul e São Paulo, e também, como Deputado Federal por outros seis estados da federação.

O breve período democrático de 1946 a 1964 será interrompido pela ditadura civil-militar, sem qualquer resistência, a partir de uma profunda cisão entre a classe política eleita e as oligarquias de latifundiários e empresários urbanos assustados com as reformas de base do governo João Goulart. Na verdade, essas reformas de base do governo João Goulart envolviam uma certa radicalização nacionalista, tematizadas pelas reformas; urbana, agrária, bancária e tributária.

Nossa redemocratização, que sucedeu a ditadura também envolveu, de um lado, a barganha do movimento de massas das Diretas Já, com o outro lado, a eleição indireta e manipulada por cima de Tancredo Neves. Mais uma vez uma certa demofobia é manifestada pelas nossas oligarquias, que ao mesmo tempo querem se desvencilhar dos militares, sem no entanto confiar nas massas populares, frustrando uma nação inteira. Na verdade, toda essa recorrência histórica é sustentada por uma mentalidade coletiva arraigada em nossa sociedade, que impede qualquer comunhão social entre o grupo dominante e os dominados. Uma mentalidade oligárquica e demofóbica.

Chegando ao golpe legislativo contra a presidente Dilma Roussef, que mais uma vez contorna o confronto, e é caracterizado por COMPARATO 2017 da seguinte forma;

"Segundo todas as evidências, o golpe foi orquestrado na sombra pelo governo norte-americano, e executado com o auxílio da Operação Lava-Jato e a colaboração de membros de nosso Judiciário e do Ministério Público... O governo norte-americano obteve de imediato três apreciáveis vantagens; 1) a alienação pelo Brasil das imensas reservas de petróleo do chamado pré-sal, cuja a exploração competia unicamente a Petrobrás, 2) o desmonte das grandes empreiteiras brasileiras de obras públicas, que haviam conquistado extensos mercados na América Latina e na África, 3) o enfraquecimento da aliança internacional dos chamados BRICS (compreendendo Brasil, Russia, India, China e África do Sul), que atuavam livres da influência dominante dos Estados Unidos e da União Europeia." COMPARATO 2017, página24

Isso tudo, apesar dos sinais claros da presidenta Dilma Roussef de tentar ao ser eleita para o segundo mandato, contemplar o programa mais a direita de ajuste fiscal chancelado pela indicação de Herbert Levy para o Ministério da Fazenda, frustrando seus eleitores. Tudo isso caracterizaria um conjunto de valores éticos, sentimentos, crenças e preconceitos arraigados na sociedade brasileira, que foram plasmados pela nossa história, onde a classe média, sobretudo funcionários públicos e profissionais liberais, mantinham-se mais próximos dos oligarcas pela profunda cisão determinada pela escravidão e pelo latifúndio. A grande massa de nossa população, com sua precariedade abissal sempre se afastou dos nossos extratos médios, que acabaram desfrutando de comodidades inusitadas - empregadas domésticas, motoristas, faxineiras, etc... - exatamente por essa precariedade. Eram características de nossa mentalidade predominante, limitadas a partir da conceituação da escola francesa de história dos Anales de Fernand Braudel,e pela presença cada vez mais ampla e interessada da hegemonia do Capital.

Além disso, COMPARATO 2017 aponta que a sociedade brasileira desenvolveu um arraigado privatismo, desconsiderando constantemente o bem comum, uma preocupação exclusiva dos interesses pessoais e familiares Tal condição determinou uma ansiosa preocupação de usufruir de seus bens, sem sequer explorá-los, essa possessividade sem usufruto no momento atual de hegemonia do capital financeiro, acabou criando um estamento poderoso de exclusividade rentista. Onde parece que nossa oligarquia se sente em casa, pois esse módus operandi lhe garante ganhos exorbitantes, e, ao mesmo, tempo, um afastamento da realidade precária, pois não produz mais nada, apenas especula, não tendo mais necessidade de interagir com a massa dos despossuídos. Outra característica é o arraigado personalismo, que parece não confiar em organizações ou instituições impessoais, comprovado pela prática recorrente de busca de um conhecido ou amigo na repartição competente. Uma terceira marca da sociedade brasileira seria a predominância do emotivo frente ao racional, assinalada pela máxima do ditado popular; "aos amigos, tudo, aos inimigos, a lei." A quarta característica seria uma certa dualidade de comportamentos contraditórios entre a esfera privada e pública, onde no espaço público nos mostraríamos progressistas e civilizados, enquanto na intimidade manteríamos costumes atrasados e primitivos. Por último, há a arraigada corrupção entre a oligarquia e a burocracia estatal, um costume radicalizado pelo capitalismo, que sempre compreendeu o Estado como a materialização dos interesses dos proprietários.

Dentro da reconstrução histórica empreendida por COMPARATO 2017, destaco quatro momentos que exemplificam de forma paradigmática as relações de nossa oligarquia com as leis e o ordenamento jurídico construído por ela mesma. Em 28 de setembro de 1871, D.Pedro II conseguiu aprovar a Lei do Ventre Livre, na então Câmara dos Deputados, apesar da forte oposição das províncias cafeicultoras do sudeste (Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo) provocando um amplo debate sobre o regime da servidão no país. O Partido republicano fundado um ano antes se declarou contra o projeto;

"... alegando três razões: 1) por suscitar a revolta dos cidadãos e a insubmissão dos escravos; 2) por ser de iniciativa pessoal do imperador e não dos deputados e senadores; 3) por ter sido elaborado nas trevas do palácio, à revelia da nação." CARVALHO, José Murilo de - A construção da ordem - Editora UFMG Relume Dumará Belo Horizonte 1996 página286, citado por COMAPARATO 2017 página 134

O partido republicano em seu manifesto de 1870, simplesmente não fazia menção a questão da escravidão, defendendo que a questão deveria ser federalizada, cabendo a decisão aos governos das províncias! Como se não bastasse, COMPARATO 2017 também narra as dificuldades para a operacionalização da Lei do Ventre Livre, pois envolvia a responsabilidade sobre o rebento liberto, que acabou ficando sob a guarda do senhor proprietário da mãe, que tinham a obrigação de cria-los até os oito anos. A partir desse momento, o senhor poderia optar por receber uma indenização do Estado no valor de 600$000 (seiscentos mil réis), ou utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos! Enfim, a supressão do regime de servidão, assim como o fim da Ditadura Civil Militar de 1964 seguia por um ordenamento; "lento, gradual e seguro" de pelo menos 21 anos.

O outro exemplo, foi no início do governo republicano, que envolvia a abolição da escravatura que desencadeou um grande movimento de capitais especulativos, o chamado Encilhamento, que foi detonado pela lei de 1890 de Rui Barbosa, então Ministro da Fazenda, conformando uma nova Lei Bancária. O objetivo era propiciar a expansão da indústria, da agricultura e do comércio, a partir de um sistema de emissão monetária com lastro não em ouro, mas em apólices da dívida pública, tal determinação causou uma imensa especulação na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. A febre do dinheiro fácil tomou conta de nossa burguesia e também de nossa classe média, que tendeu a copiá-la. É exemplar o depoimento de Raul Pompéia no Jornal do Comércio em 04 de janeiro de 1892;

"Desaprendeu-se a arte honesta de fazer a vida com o natural e firme concurso do tempo, do trabalho. Era preciso melhorar, mas de pronto: ao jogo pois!" COMPARATO 2017 página156

O terceiro exemplo, que selecionei é o da Operação Bandeirante em São Paulo, em plena Ditadura Civil-Militar, quando no segundo semestre de 1969 o então Ministro da Fazenda, Antonio Delfim Neto convoca banqueiros e industriais paulistas para financiar o II Exército no esforço de combate aos opositores do regime. A poderosa FIESP convoca também grandes conglomerados industriais, que a integravam para colaborar no investimento, tais como a Volkswagen e a Ford, que forneceram automóveis, assim como a Ultragás, que emprestava caminhões e a Supergel que abastecia a carceragem com refeições congeladas. Pois bem, até hoje esses imensos conglomerados industriais e bancários apenas se desculparam, sem serem penalizados por qualquer indenização.

O Quarto e último exemplo é o do monopólio da informação em nosso país, que está vedado por nossa Constituição Federal de 1988 em seu artigo 220, que proclama; "os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente ser objeto de monopólio ou oligopólio." Apesar disso todos sabemos, que nossos meios de comunicação estão nas mãos de poucas famílias, e passados vinte e cinco da aprovação de nossa constituição permanecemos submetidos a um monopólio do pensamento único. COMPARATO 2017 menciona a ação de inconstitucionalidade movida no Supremo Tribunal Federal contra essa situação, que ainda aguarda desde 2013 instrução de sua relatora a Ministra Rosa Weber, sem a qual a ação simplesmente não é julgada. Enfim, vivemos sobre o monopólio concentrador da informação.

A ralé brasileira: quem é e como vive

Por outro lado, A ralé brasileira trata do extremo oposto de nosso espectro social, o precariado desqualificado de trabalhadores musculares, uma imensa massa de sub cidadãos, que perambula por nossas cidades atrás da sobrevivência. O livro é organizado por Jessé Souza, e conta com a participação de outros doze pesquisadores, da sua rede, que desenvolvem abordagens teóricas e empíricas sobre o precariado brasileiro. Os textos empíricos narram experiências concretas de membros do nosso precariado, tais como; empregadas domésticas, catadores de lixo, lavadores de carro, moradores de rua, etc... Os textos com abordagem teórica traçam o mapa do embasamento geral, colocando as premissas das pesquisas empíricas, e são todos assinados por Jessé Souza, que na verdade repete seus posicionamentos de outros livros já comentados aqui no blog**.

O termo ralé, apesar da minha concordância com grande parte dos argumentos de Jessé Souza e de sua rede de pesquisa, me parece infeliz, por ser por demais pejorativo, incapaz de forjar uma identidade positiva de classe. Uma divergência, na verdade mais estratégica, do que conceitual, afinal o compartilhamento de uma identidade positiva pode significar a possibilidade de construção de uma pauta de reinvindicações, como o próprio autor destaca;

"Como se imagina a luta de classes nas imagens de lutas entre operários e soldados pelo poder político, deixamos de ver a "luta de classes", cotidiana, mais invisível e menos barulhenta, mas não menos insidiosa, que se reproduz sem que ninguém se dê conta, tanto para os algozes quanto, muito especialmente, para suas vítimas...Esse livro é uma tentativa de conferir visibilidade ao que não queremos ver." SOUZA 2018 página30

Mas, é importante assinalar, que esse precariado não é o lumpen-proletariado do tempo de Marx, pois não chega a compor o exército de reserva de mão de obra do século XIX, onde a exigência de qualificação intelectual no estágio atual do capitalismo, os retira da competição. Na verdade, esse setor de nossa sociedade é puro músculo, trabalho braçal, e vem sendo excluído por não acessar o capital cultural de uma qualificação mínima, são analfabetos funcionais. E, apesar de atuarem em setores de recente emergência, como o da reciclagem de lixo, chegando mesmo a garantir para o Brasil um lugar de destaque nessa atividade*, permanecem como não citados na nossa pauta política, ou acadêmica. Desde o seu nascimento, a sociedade brasileira através do seu Estado ou do mercado produz e reproduz indivíduos desaparelhados para a competição social. Jessé Souza se coloca como fundador de outra visão sociológica do país, desfazendo até de alguns de nossos clássicos explicadores, não só nesse trabalho, mas também em outros trabalhos anteriores já comentados aqui no blog. Há uma intensificação da crítica ao economicismo, tanto da esquerda que é invariavelmente qualificada como marxista vulgar, quanto da direita neoliberal que se apega a ideologia da meritocracia.

"O pressuposto dessas pesquisas é o de que os indivíduos conhecem a si próprios e percebem seus motivos com clareza, sendo o mundo social, portanto, transparente para elas, sem que a fraude social que legitima a injustiça exerça qualquer distorção. Desse modo, é apenas consequente que os resultados dessas pesquisas reflitam apenas o senso comum compartilhado e construído midiaticamente pela indústria cultural. Percebi então que não basta criticar a teoria sobre o mundo social, mas, também o próprios métodos empíricos para que um acesso não ingênuo ao mundo social seja possível." SOUZA 2018 página19


Há um claro reforço da filiação de Jessé Souza nas suas premissas ideológica, ao Jürgen Habermas da Mudança Estrutural da esfera pública***, no que concerne ao uso público da razão kantiana, a Axel Honneth em sua apropriação do conhecimento recíproco de experiências diferenciadas, e principalmente a Pierre Bourdieu, com sua construção do capital simbólico herdado. Afinal, para SOUZA 2018 a distinção é construída não apenas pela capacidade financeira, mas muito mais pelas demonstrações de bom gosto;

"Sua distinção e superioridade inatas ficariam comprovadas pela fruição estética diferencial que o afasta, aos seus olhos e de seus pares, de todos aqueles seres animalizados que gostam de cachaça e cerveja barata." SOUZA 2018 página21

Nesse ponto destaca-se uma importante conjectura da construção de suas premissas, quando identifica na teoria geral da modernização, um certo euro-centrismo, ou racismo, que ele próprio afasta. O cerne da crítica de SOUZA 2018, a sociologia praticada no Brasil emerge da celebração da virtude do colono protestante americano, presente em Max Weber, que estava nas construções de; Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro e Roberto da Matta. Todos compartilhavam a ideia da presença no Brasil do patrimonialismo advindo do nascimento prematuro do Estado português, causado pelas guerras de expulsão dos árabes. E, ainda todos, segundo ele, introjetaram um certo complexo de vira lata com relação ao Norte Global, ou ao ascetismo individualista e protestante do mundo anglo saxão, ou ainda ao colono pioneiro norte americano. Em outro trabalho, o autor reforçou a ideia de que a construção de Weber envolvia uma constatação objetiva, afastada de celebração ou da condenação. Agora, o escape dessa encruzilhada, colocada pelo próprio autor é resolvida pela afirmação de que a tese weberiana se referia a gênese do capitalismo, e não a sua expansão planetária pelo mundo. Além disso, reafirma a dissolução da ética protestante no espaço de algumas gerações;

"A estrutura é mais ou menos essa: o avô asceta deixa uma herança poderosa ao filho que o neto tende a gastar com hedonismo e consumismo. Nesse caminho, a herança religiosa que pressupõe uma tensão ética com o mundo se desfaz em aceitação prática da dimensão mundana e seus prazeres." SOUZA 2018 página16

Interessante mencionar a presença nas citações de SOUZA 2018, do pensador político carioca Luiz Werneck Vianna****, que já esteve aqui no blog na valorização e radicalização das práticas democráticas, e que salvo meu engano não percebi em outros dos seus trabalhos. A questão da longa duração e da revolução passiva, trazidas por VIANNA 1997 trazem o problema da acomodação por cima, mas também a relevância da manutenção de uma forma de operar efetivamente democrática, que não me parece a prática brasileira. Além do patrimonialismo, o personalismo é negado como caracterização definidora da sociedade brasileira, pois segundo SOUZA 2018 a influência do capital social, inclusive das relações pessoais concorrem para o sucesso individual, em qualquer sociedade moderna. Há uma denúncia constante em todo o trabalho de uma construção presente em nossa sociologia clássica, de Gilberto Freyre, passando por Sérgio Buarque de Holanda e chegando a Roberto da Matta, de condenação do Estado e celebração do mercado. Não existe a predominância do mal ou da virtude impregnada nessas estruturas de forma apriorística, mas sem dúvida a fragilidade de nossa sociedade civil, que não deve ser confundida com o mercado, acaba projetando no Estado a solução de todas nossas mazelas.

A tese do esquecimento do Estado por séculos da província de São Paulo, que tanto alimentou as analogias entre o bandeirante empreendedor e o pioneiro protestante norte americano é qualificada para mim de forma correta, como conto de fadas. Aliás SOUZA 2018 coloca até Florestan Fernandes como compartilhador da tese, para mim de forma injusta, pois esse sempre apontou o conluio entre os empreendedores paulistas e o Estado no Brasil. Nessa parte é o único ponto em que SOUZA 2018, se utiliza de um clássico, Vianna Moog, para desbaratar a tese do paulista intrépido e independente das verbas públicas, a Massachussets tropical. SOUZA 2018, a partir dessas construções fantasiosas identifica na sociedade brasileira uma patologia acrítica, incapaz de identificar um setor economicamente moderno, mas politicamente conservador, como é a oligarquia paulista. Mais uma vez se discute a tese, que impulsiona todo o século XX, entre o Estado como instância propulsora do desenvolvimento, ou a livre iniciativa para alcançar os mesmos fins. Toda essa patologia acrítica ou alienação de nossa inteligência acabam por recalcar a terrível distribuição de renda do país, que segundo relatório do insuspeito Boston Consulting Group, publicado na Folha de São Paulo em 13 de janeiro de 2008, declarava que o Brasil tinha ganhado 60 mil novos milionários em 2007, totalizando um grupo de 160 mil pessoas com patrimônio de US$675 bilhões, ou cerca de metade do PIB brasileiro. O que corresponde a assustadora marca de 0,08% de nossa população movimenta a metade de nosso PIB!

Há ainda no livro, uma condenação ao politicamente correto, ou posicionamentos mais a esquerda como o de Luis Eduardo Soares, que tanto influenciou a política de segurança do RJ, como propositor da política de aproximação policial das UPPs, que segundo o autor desvinculava violência social da desigualdade social. Para SOUZA 2018, enquanto o liberal conservador culpa a vítima pelo seu fracasso, o politicamente correto trata de idealizar e romantizar o oprimido ou a pobreza. Como se bastasse a boa vontade cristã para reverter nosso quadro de dominação injusta, seria preciso;

"compreender os mecanismos sociais que produzem e reproduzem formas permanentes de miséria existencial, política e material." SOUZA 2018 página102.

A questão envolveria a passagem de uma ética da convicção, que seria religiosa e pré-moderna, para uma ética da responsabilidade, que significaria o desfrute pleno da cidadania, que para Weber seria a atenção em relação as consequências práticas de nossas ações. A proposição envolveria o não julgamento de nossas elites, tal como feito pelo outro livro (COMPARATO 2017), tais como a localização da culpa em nossas oligarquias, ou no Estado corrupto, ou ainda no mercado virtuoso, mas nos "consensos sociais inarticulados".  A argumentação fica mais clara, na conclusão quando é explicitada a filiação do autor as teses de Michel Foucault, do Vigiar e Punir, nas quais há uma distinção importante entre conteúdos manifestos e as interpretações escondidas, ou conteúdos manifestos e latentes ou "consensos sociais inarticulados". Foucault se pergunta nesse trabalho do fracasso da prisão nas sociedades modernas, que na verdade funcionariam não mais como casas de reeducação do comportamento social, mas como escola de criminosos. Daí a distinção entre justificativa manifesta - casa de reeducação social - , e função social nunca assumida - casa de aprimoramento do delinquente. Portanto, independente de qualquer culpa, a sociedade brasileira em seu conjunto considera normal e natural sua subdivisão em gente e subgente, como um consenso não explícito, mas implícito.

Enfim, o trabalho de SOUZA 2018 possui essa capacidade de nos retirar das zonas de conforto intelectual fáceis e automáticas, as explicações socialmente compartilhadas sem uma reflexão crítica efetiva. Além dessa parte mais teórica, aqui debatida, o livro apresenta um rico conjunto de estudos de casos concretos, que mapeiam com rigor a situação de nosso precariado feita por uma rede de pesquisadores no contexto do Distrito Federal. Nesse sentido, Brasília que continua em meio as aglomerações urbanas brasileiras com um crescimento explosivo é um retrato da parcialidade de nossa modernidade, que permanece presa a uma lógica de exclusão da sua população.

NOTAS:

* Num dos trabalhos empíricos do livro, no seu capítulo11, há a menção de que o Brasil é o número um na reciclagem de latas de alumínio (95% das latas de alumínio são recicladas no país, enquanto nos EUA, que é o segundo país nesse tipo de reciclagem, apenas 91% são). No âmbito mais geral, o país já recicla 40% de seu lixo. MACIEL, Fabrício e GRILLO, André - O trabalho que (in) dignifica o homem - em SOUZA2018 página286

** Os textos de Jessé Souza já comentados aqui no blog são; A elite do atraso da escravidão a lava-jato, A tolice da inteligência brasileira, e A radiografia do Golpe: entenda como e porque foi enganado. Os três textos do blog https://arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com.br/ , que fazem menção às reflexões de Jessé Souza são; O judiciário no Brasil e a questão central do acesso diferenciado à oportunidades nas sociedades contemporâneas (Dezembro de 2016), Fernando Haddad e uma avaliação muito além de São Paulo (Julho de 2017) e a Derrubada de Dilma Roussef (Fevereiro de 2017)

***Há um texto meu aqui no blog https://arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com.br/ que faz menção a esse texto de Habermas, que é Mudança estrutural na esfera pública e o campo do projeto.

****O texto de VIANNA, Luiz Werneck é Volver, não sairemos deste mato sem cachorro sem a política e o políticos que nos sobraram publicado no Estado de São Paulo em 04 de junho de 2017

BIBLIOGRAFIA:

COMPARATO, Fábio Konder - A oligarquia brasileira, visão histórica - editora Contracorrente São Paulo 2017

FOUCAULT, Michel - Vigiar e Punir, nascimento da prisão - editora Vozes Petrópolis 1987

NABUCO, Joaquim - Um estadista do Império - editora Nova Aguilar Rio de Janeiro 1975

SOUZA, Jessé (org.) - A ralé brasileira: quem é e como vive - editora Contracorrente 2018

VIANNA, Luiz Werneck - A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil - Revan, Rio de Janeiro 1997

VIANNA, Luiz Werneck - Weber e a interpretação do Brasil - in SOUZA, Jessé - O malandro e o protestante: a tese weberiana e a singularidade cultural brasileira - Editora da UnB, Brasília 1999

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