sábado, 28 de dezembro de 2019

Uma Banca de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), notável

Banca de arguição da aluna Priscila Rembischwski (em pé), com os 
professores Roberto Lucas Junior (co-orientador), Vera Hazan (orientadora) 
e Fernando Betim, sentados
Uma das vantagens de ser professor universitário no ensino de arquitetura no Brasil é poder desfrutar de uma visão crítica sobre o desenvolvimento da ocupação do espaço em nossa sociedade, e suas consequências para o meio ambiente, a economia, e a nossa sociabilidade. Um dos momentos aonde isso se materializa são nos Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC), nas escolas de arquitetura, quando alunos recortam um problema e constroem um plano ou projeto, que enfrentem suas dimensões de forma inteligente e sensível. Numa quarta feira, dia 11 de dezembro de 2019 fui convidado para participar da banca de TCC da aluna Priscila Rembischewski, no Curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio, juntos com os professores Vera Hazan (orientadora),  Fernando Betim, e Roberto Lucas Junior (co orientador). Em novembro participei da banca preliminar dessa aluna na PUC-Rio, e já havia percebido o enorme potencial didático e revolucionário da sua proposta.

O projeto se insere no campo do tratamento dos efluentes, ampliando sua visibilidade para a população, e articulando isso com a criação de um parque no centro da cidade de Itaboraí, um  município da periferia metropolitana do Rio de Janeiro. O título, PARQUE EM ITABORAÍ, UM NOVO OLHAR PARA O TRATAMENTO DE EFLUENTES, retrata com precisão a necessidade de mudança de práticas arraigadas em nossa sociedade ocidental. A potência do trabalho nasce exatamente do seus esforço para trazer visibilidade ao problema de nossos mananciais, rios e corpos hídricos de nossas cidades, que seguem sendo maltratados pelo esgoto gerado diariamente em nossas residências.

Maquete do trabalho, mostrando o Parque e o centro da cidade de Itaboraí
Num tempo, em que a questão ambiental ganha uma dimensão central como problema maior de nossa geração e das futuras, uma vez, que nosso planeta já começa a apresentar sinais de estresse na questão climática, a proposta de Priscila sintetiza a verdadeira dimensão crítica do projetar. O paradigma ambiental nos aponta para novas formas de convivência com os ritmos da natureza, entendendo nossas práticas do dia a dia como necessitadas de reeducação. A partir da presença do rio Vargem, que corre em direção a Baía de Guanabara, e passa junto ao antigo centro da cidade de Itaboraí, aonde estão localizados, o Teatro João Caetano e a Matriz de São João, edifícios emblemáticos do casco histórico da cidade. Num terreno, de uma antiga olaria desativada com 300 mil metros quadrados, o projeto de Priscila implanta "wetlands construídos", lagoas de despoluição, dando visibilidade ao processo de saneamento e gerando um imenso parque urbano didático. No sentido, que explicita para o conjunto da população processos de despoluição das águas a partir da fitorremediação, gerando ao mesmo tempo pontos de amenidades e lazer.

"A fitorremediação é o processo que utiliza as plantas como agentes de purificação de ambientes aquáticos ou terrestres, com a remoção dos poluentes por meio das raízes, que drenam os efluentes." REMBISCHEWSKI, Priscila página 11

Na verdade, o encanto do trabalho de Priscila Rembischewski está numa relação dialética entre paisagem e sociedade, que me parece notável, aonde ambos assumem um caráter processual de auto-ensinamento contínuo e mútuo. A proposta também dimensiona um gradualismo de implantação, ao longo do leito do Rio Vargem até sua foz na Baía de Guanabara, que também trabalha com a dimensão da sensibilização e mobilização do conjunto da população para o problema das águas urbanas. Enfim, um trabalho, que explicita toda a capacidade crítica presente no ato de projetar e pensar o vir-a-ser de nossas cidades e atitudes. Muito bem explicitada na primeira citação de seu caderno apresentado aos membros arguidores, na banca intermediária em novembro de 2019;

"Se a paisagem é registro da transformação da sociedade, será normal que se a sociedade mudar, mude com ela a paisagem." DOMINGUES 2009 página23

BIBLIOGRAFIA:

DOMINGUES, Álvaro - Paisagem e Identidade, a beira de um ataque de nervos - in COSTA, Pedro Campos (org.) Duas Linhas Lisboa 2009

REMBISCHEWSKI, Priscila - Parque em Itaboraí - Caderno da Banca Intermediária da Banca de TCC PUC-Rio 2019

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Arquitetura Moderna Brasileira, uma crise em desenvolvimento, um livro notável

Cartaz do lançamento do livro de Ana Paula Koury
No dia 03 de dezembro de 2019, uma terça feira chuvosa no Rio de Janeiro foi o lançamento do livro da Ana Paula Koury sobre Rodrigo Lefèbvre na sede do IAB-RJ, na rua do Pinheiro, 10 no bairro do Flamengo, ARQUITETURA MODERNA BRASILEIRA, UMA CRISE EM DESENVOLVIMENTO. Um livro notável, que se debruça sobre um período da arquitetura brasileira, que parece esquecido por nossa historiografia recente e pelas gerações mais novas de arquitetos e estudantes. Um período, que se sucedeu a construção de Brasília a nova capital do Brasil e o Golpe Civil-Militar de 1964, e envolveu figuras como Rodrigo Lefèvre, Flávio Império, Sérgio Ferro em São Paulo, e Carlos Nelson dos Santos e João Ricardo Serran ou Joca Serran no Rio de Janeiro. Figuras, que emergem e convivem com arquitetos personalistas e calcados no mecenato, como; Vilanova Artigas, Lucio Costa e Oscar Niemyer, dentre outros. Um período, e uma geração que iniciaram uma revisão crítica importante, que com a tendência brasileira de se desfazer e desprezar sua própria história nos indica, a perigosa possibilidade de repetição de erros.

Essa geração enfrentou, em meados dos anos sessenta a perda das liberdades democráticas e repetidos constrangimentos às suas expressões e posicionamentos, foram presos e exilados, mas apesar disso nos legaram uma reflexão importante no campo da teoria do projeto e da construção da nação. O país se defrontava com a massificação da contratação do plano e do projeto, instrumentos fundamentais na ampliação da participação societária na definição de seu futuro. O plano e o projeto ainda representavam documentos respeitáveis de antevisão das intervenções solicitadas, iniciando um processo de ampliação dos agentes indutores das suas definições. A profissão e o ofício do urbanismo e da arquitetura, como formuladora de planos e projetos era ainda considerada como uma elite intelectual, capaz de sintetizar e debater os grandes temas nacionais. A modernidade de Brasília expressa em seu traçado e em sua arquitetura contrastava com as formas arcaicas de contratação do precariado brasileiro, que povoava os canteiros de obras, e ficou relegado as periferias das cidades satélites. A convivência entre a face modernizadora superficial e o arcaísmo das relações entre topo e base da pirâmide social se explicitava de maneira emblemática nos canteiros de obra da nova capital, era uma modernização por cima, sem que o conjunto social o desfrutasse. A geração de Rodrigo Lefèvre, Sérgio Ferro, Carlos Nelson dos Santos e Joca Serran tomou consciência dessa realidade e a discutiu, a partir de suas pranchetas, com os instrumentos do nosso ofício.

De certa forma, a ausência de uma maior sinergia e interação entre a arquitetura paulista e a carioca já pode ser identificada nesse momento, pois ao final pelo que sei as citações mútuas entre esses autores são inexistentes, apesar da similaridade de abordagens e reflexões. Duas cidades afastadas por apenas 450 quilômetros simplesmente não se liam, e ainda não se leem mutuamente. A vertente paulista se mantém mais presa aos aspectos tecnológicos, produtivos e construtivos, enquanto a carioca se envereda mais por questões de composição, uso e uma sociologia aplicada. Apesar disso, ambas conseguem reconstruir um campo específico do urbanismo e da arquitetura, sempre centrados nas ações de plano e projeto. Basta para tal checarmos as páginas de A Cidade como jogo de cartas de Carlos Nelson dos Santos, ou O IAB e a política habitacional de Joca Serran, ou ainda os textos de Sérgio Ferro e de Rodrigo Lefèvre. Há nessa geração uma preocupação comum para entender a arquitetura e o urbanismo como uma linguagem construtiva disponível para todos e manipulável socialmente. A arquitetura das favelas e da auto construção, as formas de apropriação social do discurso erudito das escolas de arquitetura, a assimilação das técnicas do concreto armado, e a produção da cidade brasileira, enfim arquitetura como linguagem.

O relacionamento da velha geração e a nova, com o nacional-desenvolvimentismo e a formulação de uma nova postura de desenvolvimento nacional-popular, que permanece em nossa pauta contemporânea, me parece a contribuição maior do livro de Ana Paula Koury, que traz de novo a tona um debate fundamental da nossa arquitetura. Uma marca na transição entre, "a passagem de um projeto nacional-modernizador-autoritário para outro nacional-democrático-popular." Uma bela e necessária reflexão para a cidade e a arquitetura brasileira. 

Vale a leitura...

BIBLIOGRAFIA:

KOURY, Ana Paula, org. - Arquitetura Moderna Brasileira, uma crise em desenvolvimento, textos de Rodrigo Lefèvre (1963-1981) - Editora da Universidade de São Paulo Edusp 2019 São Paulo

SANTOS, Carlos Nelson dos - A cidade como jogo de cartas - editora Projeto Eduff 1987 Niterói

SERRAN, João Ricardo - O IAB e a política habitacional - editora 1983 Rio de Janeiro

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Um debate com os economistas do CORECON-RJ sobre a ocupação do território

Pedro da Luz (Presidente do IAB-RJ), Henrique Silveira (Casa
Fluminense), Mireli Malaguti (UFRJ) e Alexandre Jerônimo
(UFRRJ)
Na quarta feira dia 11 de dezembro de 2019 estive no Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro (CORECON-RJ) para apresentar o Congresso da UIA2020Rio e a Capital da Arquitetura Mundial no Rio de Janeiro, e aproveitar para destacar as complexas correlações entre ocupação espacial e economia. A mesa foi composta pelo mediador Henrique Silveira (Casa Fluminenese), pelos economistas Mireli Malaguti (UFRJ), Alexandre Jerônimo (UFRRJ), e por Pedro da Luz Moreira (Presidente do IAB-RJ). A primeira fala foi minha, Pedro da Luz (IAB-RJ), uma vez que fiquei com a incumbência, dada por Henrique da Silveira (Casa Fluminense), de articular desenvolvimento econômico, com território e espaço, na cidade metropolitana do Rio de Janeiro. Um assunto central para as sociedade contemporâneas, e que no Brasil, pelo menos por parte dos políticos oficiais não vem sendo debatido de forma integrada. A macro-política, seja do governo Federal, do Estadual, ou mesmo do Municipal não pensa o espaço e o território, como potencializador de ações de saúde, de educação,  de cultura, de finanças, e de outras, que invariavelmente compõem os programas de partidos de diferenciadas tendências ideológicas nas eleições. E, mais não pensam uma política de estruturação espacial das cidades brasileiras, que promova uma melhor divisão de renda, ou um projeto de inclusão de parcelas significativas da nossa população.

No mercado brasileiro de produção imobiliária, a própria reprodução da cidade brasileira, há um déficit continuado de inacessibilidade à moradia urbana de qualidade, isto é, uma célula familiar, casa ou apartamento, com qualidade ambiental e construída em locais onde ocorram; calçamento, arborização adequada, segurança, iluminação pública, coleta de esgotos, de lixo, distribuição de água e de energia, transporte público, equipamentos de educação, cultura, lazer e saúde, etc... Ao final uma urbanidade de qualidade, aonde as infra estruturas estão universalizadas para todos, permitindo o amplo acesso ao;  calçamento, arborização adequada, segurança, iluminação pública, coleta de esgotos, de lixo, distribuição de água e de energia, transporte público, equipamentos de educação, cultura, lazer e saúde, etc... Na verdade, as cidades brasileiras são marcadas pela presença de territórios, aonde há carência de grande parte desses serviços, seja nas periferias distantes, ou nas favelas. A ideia de formulação de um plano e projeto de país, que universalize o acesso a todas essas infra estruturas é quase uma obsessão do IAB, nacionalmente e nos seus departamentos desde a década de sessenta, quando da discussão das Reformas de Base no Governo João Goulart. Num encontro em 1963, no Hotel Quitandinha em Petrópolis, a rede nacional do IAB já defendia a urbanização de favelas, como parte da política habitacional do país. Os tempos, logo após a inauguração de Brasília marcam no campo da arquitetura e do urbanismo, uma reflexão importante para promoção de um desenvolvimento mais inclusivo, principalmente a partir dos canteiros de obra (1). Esses mesmos canteiros de obras, que marcavam, e ainda marcam, uma profunda divisão técnica e social no país, aonde um precariado desassistido e desinformado produzia nossa arquitetura moderna quase sem equipamentos, mostrando como nossa modernidade se amparava no arcaico.

Nesse mesmo momento, deixávamos uma face agrário-exportadora de produtos básicos para se transformar numa economia urbano-industrial, promovendo uma incrível transformação espacial; de país rural, para urbano. Uma transformação, que na verdade sempre se conciliou com os aspectos arcaicos anteriores, evitando o confronto, mantendo sempre uma elite oligárquica no comando de forma autoritária e autocrática, bloqueando a participação, e portanto a inclusão. Nosso desenvolvimento será sempre exclusivo e restrito a parcelas minoritárias, que sempre defenderam a ideia de; "primeiro temos de fazer o bolo crescer para depois distribuí-lo"(2). A oitava ou décima economia mundial, o Brasil, manteve sempre um arcaísmo explosivo nas formas de reprodução do nosso precariado, condenado a sobreviver em favelas ou loteamentos irregulares, auto produzindo sua própria moradia. O comando de nossas elites manteve sempre um dualismo exploratório(3) entre arcaísmo e modernidade, que lhe beneficiava junto com uma classe média cooptada pela sub remuneração do precariado, que também lhe garantia serviços inusitados, como em nenhum outro lugar do mundo. A manutenção de entradas de serviços, quartos de empregada e outras peripécias programáticas em nossas modernas edificações multi familiares demonstram a estrutura hierarquizada e segmentada da nossa sociedade. Um testemunho material e físico, contido em nossas cidades, moradias, bairros e vizinhanças da super exploração do nosso desenvolvimento, que permanece fomentando mais concentração de renda.

Por outro lado, nos mesmos anos JK, idealizador de Brasilia o país abraça um rodoviarismo imposto pela moderna indústria fordista das montadoras nacionais e multinacionais de ônibus e automóveis, que passam desde a segunda metade dos anos cinquenta a desestruturar nossa incipiente malha ferroviária. A própria nova capital, Brasília, possui um desenho rodoviarista celebrador da incipiente indústria automobilística,, sem previsão de qualquer estrutura de transportes públicos, imaginando que o automóvel e os ônibus se generalizariam para todos em nossa sociedade. Essa mesma indústria automobilística será impositiva e indutora na adoção da dispersão urbana interminável, gerando periferias precarizadas, sem infra estrutura, aonde a terra urbana barata e o loteamento irregular são as opções para a maioria das nossas faixas de renda. As periferias de São Paulo, do Rio de Janeiro, ou as cidades satélites de Brasília atestam para nós essa experiência, que empurram para longe a pobreza, mantendo os centros como exclusivos, mesmo que já esvaziados.  Esse mesmo rodoviarismo cobrará dos governos investimentos vultosos em avenidas, ruas e estradas, conformando um sistema público de transportes baseado no ônibus para as parcelas menos aquinhoadas e no automóvel particular para os remediados, transformando a cidade brasileira num grande engarrafamento sem igual. O interesse das grandes montadoras, dos monopólios de transporte coletivos em ônibus definiram os investimentos públicos da cidade, aprisionando os investimentos governamentais a sua pauta, muitas vezes contrários as expectativas da maioria.

Portanto é na estrutura física de nossas cidades, moradias, bairros, vizinhanças que a sub remuneração se materializa, condenando parcelas expressivas da nossa população a conviver com dificuldades de saneamento, precariedade de segurança e de transportes. Nesse sentido, as favelas aparecem como um enfrentamento também físico e material às condições inerciais de reprodução da sociedade brasileira. Pois elas, invariavelmente se localizam em centralidades, aonde há empregos e biscates, que pelo menos garantem a sobrevivência de sua população, que resiste aí contra o destino das periferias intermináveis. Também diga-se de passagem, favelizadas, mas sem possibilidade de ocupação próxima, condenando o nosso precariado a um movimento pendular de muitas horas, num transporte público ineficiente e caro. Enfim, o plano ou projeto da cidade brasileira é uma máquina de exclusão de uma parcela expressiva da sua população, que luta por se manter em localidade centrais (favelas) densas, sem infra estrutura e insalubres, ou nas periferias intermináveis (loteamentos irregulares) dispersas e também sem infra estruturas e insalubres. Importante salientar, que crianças de 0 a 2 anos, submetidas a essas condições de insalubridade podem apresentar difterias e diarreias continuadas nesse periodo, comprometendo o desenvolvimento de seus cérebros. Nesse sentido, a política urbana brasileira é semelhante a um genocídio, que cada vez mais incrementa os índices de violência urbana, que atingem mais fortemente nossa classe média. Em termos gerais, as cidades brasileiras são dispersas, ocupando uma área muito maior do que a necessária, induzindo uma deseconomia perversa, aonde pobres pagam mais, e ricos se beneficiam de forma continuada de sua localização nas cidades, sendo menos taxados.

Diante disso tudo, procurei enfatizar que  é necessário a formulação de um outro plano-projeto para a cidade brasileira, buscando pela ordenação espacial e territorial promover divisão de renda, revertendo sua lógica concentradora. Na verdade, grande parte das lutas da redemocratização lutaram pela construção de um acordo jurídico, que permitisse o aprisionamento do lucro imobiliário pelos governos municipais, gerando fundos que permitissem a formulação de uma cidade com mais equidade. Os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade de 2001 procuravam explicitar o lucro imobiliário, taxando um direito intocável no nosso capitalismo; o Direito de Propriedade da terra urbana. A função social da Propriedade Privada, que tanta luta gerou nos anos constituintes, e que teve sua tese regulamentada em lei no Estatuto da Cidade, apenas em 2001, treze anos após a sua vigência demonstram para nós a resistência da cultura patrimonialista a sua efetividade. Até hoje muito poucas cidades brasileiras conseguiram operar os modernos mecanismos do Estatuto da Cidade para aprisionar o lucro imobiliário, gerando uma cidade mais inclusiva. 

A partir dessas colocações lancei a ideia de que é necessário a formulação de um projeto contra-hegemônico, que mudasse a forma inercial de reprodução da cidade brasileira, combatendo quatro pontos, que induzem a exclusão de parcelas significativas da nossa população:

1. Cidade dispersa e esgarçada.
2. Cidade fragmentada entre diversos extratos sociais e usos compartimentados.
3. Cidade com mobilidade ineficiente, e baixo investimento nos modais de alta capacidade.
4. Cidade predadora do meio ambiente.

Para isso a cidade brasileira deveria reverter sua forma de reprodução continuada, devendo formular ações que buscassem um novo arranjo espacial, capaz de promover a inclusão e a coesão social a partir de um plano-projeto claro e debatido com todos:
 
1. Cidade compacta e densa, que inicie o combate a sua dispersão interminável, enfatizando o papel aglutinador dos antigos centros de nossas cidades, que devem passar a abrigar usos diferenciados.
2. Cidade baseada na convivência da diversidade de classes e usos, que combata a tendência de gerar guetos de pobreza e de riqueza da cidade brasileira.
3. Cidade de mobilidade ampliada, que combata a exclusão determinada a partir da ausência ou tarifação cara do transporte público, com investimento em modais de alta capacidade.
4. Cidade que amplie a visibilidade e a aproximação dos seus biomas particulares com seus cidadãos ampliando seu uso e apropriação.

Depois dessas colocações, os economistas Mireli Malaguti (UFRJ), Alexandre Jerônimo (UFRRJ) teceram considerações sobre as especificidades do desenvolvimento brasileiro, que permanece sem considerar a totalidade de sua população, pretendendo-se exclusivo.

NOTAS:

(1) Figuras como Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro em São Paulo, ou Carlos Nelson dos Santos e Joca Serran no Rio de Janeiro, pautam sua atuação profissional por um afastamento do mecenato dos clientes e para entender a produção popular e disseminada das nossas cidades e abrigos.da Economia.
(2) Formulação explícita do Ministro Delfim Neto no governo do General Castelo Branco, o primeiro da Ditadura Civil-Militar.
(3) O sociólogo Chico Oliveira defendeu que a Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL) deixou-se aprisionar por uma lógica dualista, aonde a modernidade desenvolvimentista conseguiria a superação do arcaísmo, defendendo que as duas posições conviviam de forma simbiótica na América Latina e no Caribe.

BIBLIOGRAFIA:

KOURY, Ana Paula - Arquitetura Moderna Brasileira, Uma Crise em Desenvolvimento - Edusp São Paulo 2019

OLIVEIRA, Francisco - A economia brasileira, crítica a razão dualista / O ornitorrinco - Editora Boitempo São Paulo 2007


sábado, 30 de novembro de 2019

20 de novembro Dia da Consciência Negra no Brasil

No dia 20 de novembro se comemora o Dia da Consciência Negra no Brasil é a data da morte de Zumbi liderança negra do Brasil Colônia, ocorrida em 1695 numa área entre os Estados de Alagoas e Pernambuco, no Quilombo de Palmares um território de resistência à escravidão. A data foi escolhida pelo Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial em São Paulo em 1978, em clara oposição a data de 13 de maio de 1888, quando foi promulgada a Lei Aurea pela Princesa Isabel, que era a data oficial no Brasil, até então. Era um período de declínio da Ditadura Militar de 1964, que se auto declarava, num processo de "abertura lenta, gradual e segura", revogando o Estado de exceção, que imperava no país. Há aqui uma clara disputa ideológica, ou de narrativas, sobre a nossa história no tema da escravidão, diante de uma das instituições mais terríveis formadoras do Brasil, e que representa um pesado legado para o  nosso cotidiano. Uma das questões centrais no problema de nossa matriz negra e africana no Brasil é a sua rejeição sistemática por parcelas expressivas de nossa classe dominante, que negam sua presença a partir de um posicionamento de baixa autoestima, que o dramaturgo Nelson Rodrigues nomeou brilhantemente de "complexo de vira latas". É como se operasse uma determinação de auto exílio no próprio país, dessa classe dominante, que se recusa a identificar uma herança tão presente e formadora como um recalque, ou um complexo, para usar uma linguagem psicanalítica. A concepção de mundo das classes dominantes é sempre uma presença poderosa, por que se naturaliza entre todos de forma inconsciente na linguagem, no cotidiano e nas atitudes diárias. GRAMSCI, um crítico bastante preciso da cultura enfatizava a ligação orgânica entre classe dominante e Estado, identificando aí a grande dificuldade na ruptura da subalternidade.

"A unidade histórica das classes dirigentes ocorre no Estado e a sua história é essencialmente a história dos Estados e dos grupos de Estados... a unidade histórica fundamental, pela sua concretude, é o resultado das relações orgânicas entre Estado ou sociedade política e "sociedade civil". As classes subalternas, por definição,  não são unificadas e não podem  unificar-se até que não possam vir a ser Estado..." GRAMSCI Q25

O domínio do Estado pela classe dominante determina que uma ideologia que suprime ou invisibiliza a presença do preconceito racial em nosso cotidiano, transmitindo a falsa ideia de coesão, aonde na verdade opera a fragmentação de interesses e objetivos. A nossa recorrente volta a uma certa idolatria pelo autoritarismo, como solução para calar a divergência e a diversidade conflituosa em nossa sociedade parte dessa presença do escravagismo, como cultura do dia a dia. E, chega ao repúdio dedicado a Lula pela casta dos juízes letrados, que não compreendem sua capacidade intuitiva e iletrada de gerir interesses conflituosos e gerar coesão social. O reformismo conservador de Lula é empurrado numa interpretação raivosa, como se fosse um posicionamento de extrema esquerda, quando na verdade está no centro. A emancipação da subalternidade geral brasileira só se fará quando o nosso projeto de país tiver como objetivo principal incluir parcelas expressivas da sua população num desenvolvimento comum. Mas se olharmos para nossa história, invariavelmente percebemos a presença de um plano e projeto exclusivo, que atende apenas a uma minoria, deixando de fora grande parte de nossa população. A própria libertação dos escravos, assinada pela Princesa Isabel é um exemplo de planejamento excludente, que na verdade queria mudar a face brasileira para um embranquecimento euro fílico. Pois, concomitante com a supressão da escravidão emerge uma política do Estado de atração de imigrantes europeus e japoneses, que claramente deprime a capacidade da economia de inclusão da sua população negra. A ausência em nossa história de uma política de Estado de indenização compensatória, ou de uma reforma agrária, ou ainda de um esforço de acolhimento da população negra determinou a presença de uma pesada população precarizada, que de forma recorrente é excluída dos booms de desenvolvimento. Mais uma vez, GRAMSCI nos orienta de forma precisa;

"... o assim chamado "transformismo" não é mais que a expressão parlamentar do fato de que o Partido de Ação foi incorporado molecularmente pelos moderados e as massas populares foram decapitadas, não absorvidas no âmbito do novo Estado." GRAMSCI Q19 página 2042

A oitava ou sétima economia do mundo se desenvolveu de forma impressionante durante todo o século XX, excluindo uma parcela expressiva de sua população, aonde a demonstração mais clara dessa seletividade do nosso desenvolvimento está em nossa espacialidade, e no arranjo de nossas cidades. O arranjo espacial urbano do país repete de forma recorrente essa exclusão expressiva, na inacessibilidade de parcelas expressivas do seu território à totalidade das comodidades e infraestruturas urbanas. Basta uma visita superficial a conformação da cidade genérica brasileira para constatar a exclusão de suas periferias, a recorrente presença da auto construção de suas favelas, a inacessibilidade de parcelas expressivas ao seu mercado imobiliário elitizado, a ausência de saneamento básico em amplos setores, etc... A lição ensinada por nossa história, a partir da questão racial negra no Brasil é que essa dinâmica espacial precisa ser transformada, oferecendo as comodidades urbanas para todos. Coleta de esgotos, de lixo, distribuição de água, calçamento, iluminação, segurança, transporte de qualidade com preços acessíveis, educação, saúde, lazer equanimemente distribuídos no território sinalizaria para nossa população um legítimo esforço de coesão social. Uma mudança de paradigma no nosso desenvolvimento, que passaria a sinalizar para todos de forma clara, que ninguém deve ser excluído. Negros, subalternos e precarizados devem ser o foco das políticas do Estado, uma maneira de contemplá-los é enfrentando a questão urbana do Brasil.

BIBLIOGRAFIA:

DEL ROIO, Marco - Gramsci e a emancipação do subalterno - Editora Unesp São Paulo 2018

FIORI, Guiseppe - A vida de Antonio Gramsci - Editora Paz e Terra Rio de Janeiro 1979

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Um arquiteto desenhando o Plano Diretor da cidade do Rio de Janeiro

Mesa do Encontro da PGM sobre o Plano Diretor do RJ; Monica Bahia 
Schlee (SMU), Fernanda Louzada (PGM), Ângela Moulin Penalva 
Santos (UERJ), Pedro da Luz (IAB-RJ) e Luiz César 
Ribeiro (IPUR)
Na segunda feira dia 04 de novembro de 2019, foi realizado um encontro no auditório da Procuradoria Geral do Município do Rio de Janeiro (PGM-RJ) sobre a revisão do Plano Diretor da cidade, que deve ser apresentado a Câmara em 2020. Esse é um debate fundamental para a cidade do Rio de Janeiro, nessa ocasião participei de uma mesa sobre essa revisão e instado pela Procuradora Dra Arícia Correa apresentei a reflexão; "Um arquiteto desenhando o Plano Diretor da cidade do Rio de Janeiro". Abaixo transcrevo minha palestra. 

Gostaria de iniciar agradecendo a oportunidade dada ao Departamento do Rio de Janeiro do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RJ) estar aqui, na Procuradoria Geral do Município (PGM-RJ), presente nessa discussão fundamental do Plano de Diretor de 2020 para a cidade do Rio de Janeiro. Quero agradecer nominalmente a Dra Arícia Fernandes Procuradora Geral do Município, que vem se destacando nesse debate, buscando aproximar a área jurídica do campo da arquitetura e do urbanismo. Todo esforço feito no sentido da ampliação da cultura do plano e do projeto é sempre bem vista pelo IAB-RJ, não apenas na defesa corporativa da categoria dos arquitetos, mas no sentido de se alcançar uma melhor qualidade de vida para nossas cidades e para o conjunto de sua população. As ações de plano e projeto são também fundamentais para o aprofundamento da participação democrática de amplos setores de nossa população, uma vez que antes de fazer é preciso pensar. E, pensar muitas vezes significa abraçar a ideia de mudar a inércia do desenvolvimento da cidade brasileira, que historicamente foi sempre um mecanismo de exclusão de amplas parcelas da nossa população, procurando novas formas de inclusão e coesão social, pelo plano. Nesse sentido, cabe também destacar a luta incansável da arquiteta Monica Bahia Schlee, na Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU),  para estruturar e aprofundar o novo Plano Diretor do município do RJ. Como presidente do IAB-RJ, devo também destacar o papel fundamental dessa instituição na busca do interesse público e geral, na definição das obras urbanas e arquitetônicas, como responsabilidade de toda a sociedade. Nesse sentido a dimensão concreta da cidade, sua efetiva espacialidade é a régua mais concreta da nossa realidade, com uma imensa concentração de renda e exclusão continuada de parcelas expressivas da nossa população, todas expressas muito claramente no seu território.

Nesse sentido, e na casa da Procuradoria Geral do Município me arrisco a afirmar que numa hierarquia entre as profissões, entre o direito e os estudiosos do espaço (arquitetos, urbanistas, engenheiros, geógrafos), a supremacia está com os primeiros. Nosso atual Plano Diretor se apresenta com muito poucas menções a espacialidade concreta da cidade, possuindo apenas um mapa das macro zonas da cidade, o que comprova a hegemonia do direito na área. Tal atitude torna os Planos Diretores no Brasil, documentos de leitura árdua, aonde a primazia é dada a uma estrutura de capítulos, artigos e parágrafos de difícil compreensão pelo senso comum. No contexto da revisão do Plano Diretor da cidade do Rio de Janeiro é fundamental reverter essa tendência e defender a estruturação de um texto mais desenhado e mapeado, de forma a atingir uma compreensão mais ampliada pelo conjunto de nossa sociedade. A busca de uma maior legibilidade social para nosso Plano Diretor é fundamental para transformá-lo numa ferramenta viva na transformação da cidade do Rio de Janeiro. Por outro lado, na medida em que qualquer documento referente ao planejamento se torne mais legível para o conjunto da nossa sociedade, tal atitude possibilita e amplia o controle molecular e pulverizado do vir-a-ser, fazendo com que os objetivos a serem alcançados possam ser monitorados e perseguidos, pela sociedade civil e pelo poder público. Essa atitude transparente e democratizante deverá ser acrescida da formulação de indices de acompanhamento, que monitorem diferentes condições espaciais, tais como; mobilidade, saneamento, déficit habitacional, urbanidade, etc..., criando condições de monitoramento dos objetivos do PD por toda sua população. A proposição pretende criar as condições de monitoramento socialmente amplo e compartilhado, de forma a fazer com que seja compreensível e manipulável por todos.

Ainda, nesse mesmo sentido, de ampliação da legibilidade do sistema de planejamento municipal, é importante salientar a hierarquia entre os diversos planos de responsabilidade do governo municipal, como; Plano Diretor, Plano Estratégico, Plano Plurianual, Plano Multi Setorial, Plano de Mobilidade, Plano Habitacional, etc..., conferindo ao primeiro a supremacia no que se refere ao ordenamento territorial da cidade. Essa sinalização da importância hierárquica do Plano Diretor já está afirmada em nossa constituição federal, mas sofreu nos últimos anos uma séria deterioração, com o advento principalmente dos Planos Estratégicos e outros, que se diferenciaram como projeções de Governo, negociadas com a sociedade civil organizada, mas que não são Planos de Estado. Restituir essa hierarquia é também fundamental para que a sociedade entenda os propósitos de mais longo prazo do Plano Diretor, reforçando também sua legibilidade.  Dessa questão também emerge a questão das políticas setoriais (Educação, Saúde, Cultura, Transporte, Saneamento, Meio Ambiente, etc...) no Plano Diretor, que na cidade do Rio de Janeiro já é uma tradição. Mas, que a meu ver deveriam estar no Plano Diretor exclusivamente no que concerne a sua ordenação espacial e territorial, uma vez que esse deve ser o foco central desse documento. Portanto, as políticas setoriais podem constar do Plano Diretor, mas devem ser contempladas no que concerne a sua distribuição territorial, assinalando suas deficiências e potencialidade a partir do espaço constituído da cidade efetiva.

Tendo em vista essas premissas, me arrisquei na minha fala a constituir como sugestão e provocação um índice geral para nosso futuro Plano Diretor, tendo como princípio norteador a mesma vontade de ampla legibilidade por todos os agentes sociais. Assim iniciaria com um primeiro capítulo que abordaria a questão do Espraiamento Urbano, que me parece ser o problema fundamental da cidade contemporânea, que ao mesmo tempo que se espalha por uma área muito maior que a necessária, também inviabiliza a universalização dos serviços de infra estrutura urbana, que constituem a urbanidade plena. Tal situação vem determinando periferias cada vez mais precarizadas e sub infra estruturadas, que concentram a pobreza e a falta de oportunidades para amplas parcelas de nossa população, contraposto a centralidades esvaziadas contraditoriamente super infra estruturadas. A presença do tema no primeiro capítulo sinalizaria de forma clara o combate a esse tipo de desenvolvimento da cidade brasileira.

No segundo capítulo, abordaria a questão colocada por nossa Constituição Federal e pelo Estatuto da Cidade, de como promover A Apropriação Social dos Ganhos da Produção da Cidade. A tão proclamada Função Social do exercício do Direito de Propriedade Privada, que está em nossa constituição no Artigo 182 desde 1988. E, que precisamos reconhecer; não vem operando de forma efetiva nas cidades brasileiras, por conta de uma cultura patrimonialista arraigada, que não admite qualquer limite ao Direito de Propriedade. Mas que é o próprio fundamento do sistema de funcionamento da cidade contemporânea, capitalista e neo liberal, aonde a regulação pública cede e se entrega a celebração do investidor privado. Tal conjuntura, acabou por se demonstrar desastrosa mesmo em cidades do Primeiro Mundo, como; Nova York, Londres e Berlim, aonde a entrega aos investidores privados acabou determinando uma enorme incapacidade de administrar os preços dos imóveis, principalmente nos centros, determinando um grande esvaziamento das vizinhanças nessas áreas, mesmo em cidades do Primeiro Mundo. Nesse capítulo, o Plano Diretor deve deixar claro os instrumentos de captação dos recursos privados aferidos em função dos investimentos públicos em infra estrutura, definindo inclusive os fundos aonde devem ser alocados e sua destinação no combate ao espraiamento urbano, e a provisão de Habitação de Interesse Social nas centralidades.

No terceiro capítulo, abordaria a questão da promoção da Moradia Digna para todos os extratos sociais defendendo a ideia de que a cidade segura é aquela aonde se promove a convivência de distintos segmentos. A lei do direito de acesso à Assistência Técnica  para Habitação de Interesse Social (ATHIS) é uma lei promulgada no nível federal pelo Deputado pela Bahia e Arquiteto, Zezéu Ribeiro, que ainda não se generalizou pelas cidades brasileiras. A vereadora Marielle Franco apresentou projeto de lei regulamentando-a no âmbito do município do Rio de Janeiro, e após a sua morte, a lei foi aprovada e promulgada, determinando que aquelas residências produzidas por auto construção, que não representam risco possam ser qualificadas pela assessoria de arquitetos e engenheiros, apontando um esforço do Plano Diretor de inclusão de todos. O Plano Diretor deveria fixar metas a serem cumpridas durante seus dez anos de existência para promoção de Moradia Digna de forma universal para todos os habitantes da cidade, garantindo padrões de salubridade. Essa micro escala deveria contemplar as Áreas de Especial Interesse Social (AEIS), as favelas, buscando na escala da vida privada um esforço de integração social amplo.

No quarto capítulo deveria ser abordado a Dimensão Metropolitana no território da cidade do Rio de Janeiro, enfatizando as expectativas ao longo dos próximos dez anos, com relação a estruturas impactadas pela continuidade dos municípios do entorno. Tais como; a Baía de Guanabara, a Avenida Brasil, a Linha Vermelha, a Linha Amarela, a Rede de Trens da Central do Brasil e seus ramais, os problemas de macro drenagem e de Meio Ambiente, que estão fortemente imbricados em nossa cidade. O protagonismo do município do Rio de Janeiro, cidade polo metropolitano deve ser assumido de forma integral, prevendo padrões de desenvolvimento para essas estruturas mencionadas de forma concreta e assertiva, no prazo de dez anos de vigência do Plano Diretor. Temas como a Avenida Brasil, a Baía de Guanabara, a Linha Vermelha, a Mobilidade Metropolitana e outras devem ser abordados nesse capítulo.

No quinto capítulo deve ser abordado a Qualificação da Vida Urbana nos Bairros, que enfatizaria as partes da cidade e sua identidade particular, reforçando a ideia de que essas particularidades devem ser reforçadas, pois uma grande cidade é composta pela personalidade específica de suas partes. A tradição do planejamento no Rio de Janeiro, remete a presença dos Projetos de Estruturação Urbana (PEUs), que exatamente dão coesão a essas partes. O novo Plano Diretor deverá estabelecer de forma clara sua coordenação e referência ao conjunto desses documentos já aprovados, ou encaminhados à Câmara cobrando um prazo para sua aprovação.

No sexto capítulo deve ser abordado a Agenda Ambiental, que na cidade do Rio de Janeiro é particularmente complexa e presente. Os contínuos ambientais, tais como; a Floresta da Tijuca, a Floresta do Maciço da Pedra Branca, a Floresta do Tinguí, a Baía de Guanabara, a Baía de Sepetiba, as diversas lagoas, a frente marítima, os rios e suas baciais hidrográficas. Cada um desses contínuos devem ser avaliados, utilizando categorias como; limites, degradação, flora e fauna presente, continuidades, interações com a mancha urbana, controle e desafios.

No sétimo capítulo deve ser abordado o Patrimônio Construído e o Imaterial, que no município do Rio de Janeiro possui um valor inestimável, por ter sido a cidade, capital da Colônia, do Império e da República, possuindo exemplares e conjuntos notáveis. Alguns desses exemplares permanecem invisíveis e não valorados de forma devida pela sociedade, como o bairro de Marechal Hermes, a Ilha de Paquetá, ou a Ilha de Brocoió, e outros. Reconhecer seu valor e traçar políticas que estruturem sua sustentabilidade é fundamental para o estímulo ao desenvolvimento da auto estima dos diferentes bairros e partes da cidade. É também fundamental compreender a dimensão desse patrimônio construído como um Bem Comum, pertencente a todos, permitindo que seu desfrute seja franqueado de forma ampla e geral pela população, entendendo essa disponibilização em seu valor didático.

Por último, no oitavo capítulo deve ser abordada a questão da Governança e da Participação Continuada, procurando fazer do Plano Diretor um documento de referência para o desenvolvimento territorial da cidade nos seus dez anos de validade. Nessa seção, devem ser explicitados os indices de monitoramento e acompanhamento das propostas e objetivos do Plano Diretor, tornando possível a visualização do desenvolvimento da cidade. É fundamental nessa seção, a presença da governança dos Fundos que estão propostos no segundo capítulo no tema da A Apropriação Social dos Ganhos da Produção da Cidade, para se obter transparência nessa manipulação.

A partir dessa estrutura geral, sugerida aqui penso que a mensagem do Plano Diretor, como peça mais importante do planejamento territorial da cidade seria compreendida pelo conjunto da sociedade, dando lhe organicidade na sua efetividade. Obrigado.


terça-feira, 29 de outubro de 2019

Mais um debate do 21 Congresso Brasileiro de Arquitetos (21o CBA) sobre o ensino de projeto

No dia 10 de outubro de 2019, no âmbito do 21o CBA ministrei palestra sobre o ensino de projeto na Escola de Arquitetura e Urbanismo da UFF, junto com dois outros colegas, Carlos Eduardo Plens da Universidade do Contestado e William Moog do Programa de Pós Graduação da UFRGS. A minha palestra tinha o título de Apontamentos sobre as aulas de Projeto Executivo no âmbito da EAU-UFF, a do colega Carlos Eduardo Plens; Antártida como abstração de projeto e a de William Moog; Entre Vilas o percurso no ensino de projeto urbano. A diversidade de posicionamentos enriqueceu o debate, conformando um quadro rico e variado das experiências de ensino de projeto numa diversidade de contextos. Em termos sintéticos, minha palestra apresentava os desafios do ensino de projeto executivo, frente a recorrente prática das escolas de arquitetura de se limitar as entregas a fase de anteprojeto. Enquanto, a palestra de Carlos Eduardo Plens abordava o desafio de se projetar na Antártida, a Estação Almirante Ferraz, um ambiente inóspido que forçava aos alunos a pensar fora da zona de conforto. E a palestra de William Moog abordava o tema de vivenciar os espaços a serem projetados, na disciplina de Urbano, para se atingir uma maior compreensão da espacialidade real.

O ensino de projeto é de difícil abordagem teórica, por ser uma atividade intrinsecamente operativa e empírica, necessitando da experiência para ser apreendido pelo estudante, aonde a vivência do fenômeno conta mais que sua sistematização teórica. A prática é que traz mais segurança ao aluno, que consegue identificar seu caminho a partir de um experimentalismo recorrente, seja no campo do urbano, seja no arquitetônico. A academias francesas, que são a origem de nossas escolas de arquitetura, encaravam o projeto como um âmbito autônomo dos alunos, que na verdade selecionavam e elegiam o professor que os exercitava na cadeira de Composição de Projetos. Essa autonomia, e liberdade de escolha nos ateliers de projeto não deve ser reprimida, pois o ato de projetar se aproxima da concepção artística, sendo uma ato sempre autobiográfico. Abaixo publico a íntegra do meu texto, que apresentei nessa seção do 21 Congresso Brasileiro de Arquitetos.



APONTAMENTOS SOBRE AS AULAS DE PROJETO EXECUTIVO NO ÂMBITO DA EAU-UFF


A EXPERIÊNCIA DO PROJETO EXECUTIVO NAS ESCOLAS DE ARQUITETURA E URBANISMO, UMA REFLEXÃO

EIXO TEMÁTICO: FORMAÇÃO E O FAZER PROFISSIONAL


NOME DO AUTOR
– Pedro da Luz Moreira (EAU-UFF) - e-mail: daluzmoreira.pedro@gmail.com


Resumo: O presente trabalho apresenta a experiência atualmente desenvolvida no âmbito da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense(EAU-UFF), em Niterói, decorrente das aulas de Projeto 5, que abordam o projeto executivo. A matéria de Projeto 5 na grade do currículo da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU-UFF) acontece no esquema geral do curso no 6º período, antes da matéria de Projeto de Arquitetura de Restauração (7º período) e Projeto de Arquitetura de Habitação Social (8º período), sendo portanto a ante penúltima disciplina antes do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), que ocupa os dois últimos períodos. As escolas de arquitetura no Brasil tem se restringido a cobrar de seus alunos nas disciplinas de projeto, trabalhos no nível de Estudo Preliminar, ou no máximo de Anteprojeto. A experiência é fundamental na aproximação dos esforços didáticos da EAU-UFF com a prática profissional e com o processo de amadurecimento do aluno no enfrentamento do projeto.. Existe aqui um notável esforço da instituição de superar a vivência do projeto, apenas como criação e concepção inusitada, mas de conquista de um discurso mais técnico, descritivo de uma construção efetiva e materializada de forma concreta.

Palavras-chave: Projeto Executivo; Tectonia; Arquitetura; Cidade; Habitar; Edifício Multifamiliar.





1. Premissas Teóricas Gerais:

A matéria de Projeto 5 na grade do currículo da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU-UFF) acontece no esquema geral do curso no 6º período, antes da matéria de Projeto de Arquitetura de Restauração (7º período) e Projeto de Arquitetura de Habitação Social (8º período), sendo portanto a ante penúltima disciplina antes do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), que ocupa os dois últimos periodos. A matéria pretende fornecer aos alunos a dimensão real do projeto de arquitetura, em sua integridade desde a concepção a seu detalhamento, enquanto representação de uma obra, que ele antecipa. A EAU-UFF sempre se caracterizou desde a sua fundação por ser um curso com preocupações sociais, buscando formar um profissional capaz de dar respostas às graves condições de precariedade habitacional, que afligem a população brasileira. Os temas como urbanização de favelas, produção de habitação de interesse social, projeto participativo são constantes nas bancas de TCC na EAU-UFF. Existe aqui um notável esforço da instituição de superar a vivência do projeto, apenas como criação e concepção inusitada, mas de conquista de um discurso mais técnico, decritivo de uma construção efetiva e materializada de forma concreta. Em sua ementa a disciplina de Projeto 5 define de forma categórica, que seu tema é o projeto executivo, buscando fazer com que o aluno vivencie os problemas de detalhamento e maior precisão na descrição do objeto. 
Figura 1: Croqui fornecido aos alunos da unidade 
simplex com núcleo de circulçao vertical







Na verdade, desde a década de setenta a EAU-UFF oferece um curso de arquitetura, que se destaca no panorama da cidade metropolitana do Rio de Janeiro por seu perfil vinculado ao debate dos problemas sociais das cidades e da arquitetura brasileira. Essa preocupação nunca foi tida como em contradição com a sofisticação do desenho e o aprimoramento técnico do projeto, como aliás está destacado por SANTOS 1988, na interação entre análises e sínteses que ocorre na proposição arquitetônica e urbanística;

O dilema se arma entre dois extremos. De um lado, estão ANÁLISES que não querem ou não conseguem interferir nas práticas urbanas cotidianas. Do outro, estão SÍNTESES impostas como corpos estranhos á vida real das cidades que não alcançam decompor em seus elementos e mecanismos fundamentais. SANTOS 1988 página44

E, mais não podemos nos refugiar no conforto das análises, mas se arriscar nas proposições e desenhos, que materializam o desejo, não só do projetista mas também e principalmente dos usuários. O arquiteto Carlos Nelson Ferreira dos Santos possui uma trajetória dentro da arquitetura brasileira bastante singular, ele foi o principal ideólogo da fundação da EAU-UFF e um polemista notável. Incomodado com o messianismo da produção arquitetônica brasileira pós-Brasília, formado em 1966 ainda pela Universidade do Brasil, logo após o Golpe Civil-Militar, fez seu mestrado no Massachuseffs Institut of Technology (MIT) nos EUA em 1971. Em sua trajetória, ele também se deixará contaminar pela antropologia social do Museu Nacional da UFRJ em seu doutorado defendido em 1979. Na verdade, desde 1964 militava na assessoria à Federação e Associação de Favelas da Guanabara (FAFEG), e num órgão deste mesmo Estado denominado Companhia de Desenvolvimento de Comunidades (CODESCO), afirmando de forma categórica seu desejo de inflexão da prática do ofício. Sempre esteve ligado a academia, primeiro como professor do Instituto de Economia Industrial da UFRJ, e depois como professor e ideólogo da EAU-UFF. O seu livro A Cidade como um jogo de cartas permanece um testemunho notável de uma época, mas também uma experiência que ainda está para ser vivida pela prática profissional brasileira. A explicitação do conflito, presente na nossa sociedade, e portanto, nos desejos aflorados no processo de projeto, não impedia o alcance do consenso, que jamais deveria suprimir o embate.

As cartas representam as várias formas de oposição ou conjugação. Cada naipe é uma classe: copas o clero, espadas a nobreza, ouros a burguesia e paus os camponeses. É fácil deduzir que, até a burguesia pudesse se impor e fazer sua revolução, o naipe superior era espadas. O predomínio de ouros é recente. A troca de precedências dá um suporte óbvio ao argumento. SANTOS 1988 página 12

As procedências nos apontavam as supremacias e dominações presentes nos desejos da cidade e da habitação que buscamos, mais do que um juízo de valores era bom que intenções fossem explicitadas para se compreender a amplitude do projeto. Havia uma crença na processualidade do plano e do projeto, que ao materializar formas e conceitos socialmente compartilhados estabelecia um jogo de longa duração, que era a cidade, numa transformação constante. A base deveria partilhar uma mesma estrutura ancestral e compreensível, por todos, um retorno à história da cidade e aos seus elementos primários; a rua, o lote e a quadra, um limite mais preciso entre esfera pública e privada. Mais também, do que um limite preciso havia uma proposta de retorno a uma certa proporcionalidade entre o público e privado, como entidades interdependentes que se auto regulavam. Mas longe da comodidade das análises comportadas Carlos Nelson dos Santos sempre fustigava na direção da síntese e da formulação concreta do projeto;

“O erro, porém, não está em materializar o desejo de intervir no espaço através de estudos preliminares que viram anteprojetos e projetos, se corrigindo sucessivamente. Não é pela renúncia a responsabilidade de dar formas aos lugares, caindo nas neutralidades cômodas dos diagnósticos e dos planejamentos que só cuidam de generalidades, que iremos construir saídas.“ SANTOS 1988 página 17

Havia aqui a clara interpretação do projeto como intervenção, síntese e prognóstico, muito além das neutralidades objetivas das análises e diagnósticos, uma atividade ou forma de conhecer o mundo intervindo. Muito além da mera dedução, o que se cobra dos alunos nos ateliers de projeto é um compromisso com a indução, transformação e imaginação com o vir-a-ser da cidade, e da sociedade. A atividade didática de projeto é em sua essência empírica e experimental, não podendo ser transmitida a partir de conteúdos teóricos, em suma; aprende-se fazendo e exercitando. A experiência confere musculatura e confiança ao aluno na sua capacidade de articular demandas, contexto, técnicas construtivas, orçamento e valores simbólicos conformando uma representação do objeto. A atividade é crítica, no sentido de que não se restringe a reproduzir uma experiência espacial já constituída, mas ao mesmo tempo é operativa, no sentido de uma síntese das experiências construtivas em andamento no conjunto da sociedade. Foi Manfredo Tafuri (1935-1994), um crítico de arquitetura italiano, que destacou um grupo específico de teóricos como promotores da “crítica operativa do real”[1]1[i].

Segundo TAFURI 1979, essa corrente aproximava a crítica da arquitetura do campo da projetação, uma vez que se interessava pela definição de um sentido para as construções humanas, capacitadora de uma ampliação da civilidade. Os pensadores dessa corrente procuravam intuir a partir da história ou da obra de determinados arquitetos, a construção de um sentido de civilidade, tanto da arquitetura, quanto da cidade. O campo do plano e do projeto de urbanismo ou de arquitetura sempre tiveram uma forte tendência pela operatividade, pois pretendem a materialização da transformação. Mas, também operam no campo da crítica, uma vez que apontam para transformações concretas nos hábitos e costumes humanos materializados na espacialidade proposta. Há no campo do plano e do projeto uma salutar tensão entre desejos de materialização e o alcance de premissas utópicas, transformadoras de práticas arraigadas na sociedade. A projetualidade é um conceito que envolve as complexas relações de custo e benefício, cultura e inovação, representando a capacidade de operar no sentido de um impulso de uma mudança, mas também de exercer uma crítica ao desenvolvimento social instaurado. O projeto é enfim, uma forma de se abordar o real é também uma forma de conhecimento, aonde o protagonismo está colocado no futuro, no vir-a-ser da sociedade.

A pretensão aqui é fazer o aluno encarar o caráter da arquitetura e do urbanismo como arte, entendida como força presente e sintética que coo habita com suas premissas; funcionais, ideológicas e construtivas. Neste sentido, a palavra arquitetura é esclarecedora quando dissecada, estando seu significado ligado a uma dualidade enriquecedora e potencializadora;

“Assim precedendo ao termo tektonicos (carpinteiro, fabricante, ação de construir, construção) acrescentou-se o radical arche (origem, começo, princípio)...A arche é o centro da esfera social daquele Mundo, e deverá ser traduzida nos edifícios, apresentando os deuses, a história e o espírito ético do povo grego.” BRANDÃO 1991 página22

O conceito de arche, princípio equilibrado do universo, ponto de equilíbrio entre o homem e o kosmos, como um signo síntese da ordenação do mundo pelo homem é a chave que abre para nós a compreensão das várias sensibilidades, que irão construir a idéia do homem moderno. A arche é um conceito que está além da materialidade do edifício, mas que só é possível ser desvendado pela sua própria materialidade. Como um mundo que a transformação humana da natureza torna visível quando é desempenhada com preocupação estética, portanto distinto da simples construção. Encontra-se neste conceito uma tríade explicadora; primeiro uma volta a origem, segundo uma unidade ordenadora e por último, uma expressividade que dá visibilidade ao mundo específico que a ele está vinculado.
2.  Premissas Teóricas Específicas da Disciplina:

A partir dessas premissas gerais, a disciplina de Projeto 5 estabelece com os alunos uma diferenciação conceitual fundamental para a compreensão do processo de projeto em sua totalidade; a partir do anteprojeto, consolidada uma solução, o projeto executivo irá se dedicar a descrever de forma precisa a construção do objeto arquitetônico. De certa forma, abandonando uma linguagem acessível a todos (leigos e especialistas) para se comunicar com profissionais que militam na obra, que portanto, compreendem plantas e cortes. A diferenciação, nessas duas formas de se comunicar do projeto é banal e corriqueira, mas de grande importância para sua expressão e linguagem. Afinal, o público que se debruçará sobre o projeto muda seu perfil com a aprovação do anteprojeto, passando os documentos a ter um caráter mais técnico e preciso.

Na verdade, um dos desafios da matéria Projeto 5 é no espaço exíguo de um semestre, quatro meses de aula ou 32 aulas de três horas desenvolver e aprofundar um projeto executivo, que além disso, não contará com o aporte das disciplinas complementares, tais como; estrutura, instalações elétricas, instalações hidráulicas e sanitárias, impermeabilização, etc... Aporte que se constitui num elemento fundamental do desenvolvimento do executivo, uma vez que a interação com as disciplinas complementares se constitui num efetivo aprofundamento das decisões de projeto, na prática concreta. A pretensão é fazer os alunos vivenciarem a fenomenologia empírica do projeto executivo, entendido como um conjunto de documentos coerente entre si, que descrevem uma construção de forma precisa e detalhada, além do estudo preliminar e anteprojeto. Essas duas etapas preliminares no desenvolvimento do projeto acabam sendo os produtos mais corriqueiros dos alunos nas escolas de arquitetura, pela exiguidade do tempo, pela impossibilidade da interação com as outras disciplinas complementares, e por uma certa comodidade geral. Tal situação, acaba gerando um profissional que sobrevaloriza o desenho, não o entendendo como representação de um ato construtivo. Aquilo que MARTINEZ 2000 aponta como a representação analógica do construído, uma descrição do objeto urbano ou arquitetônico, que se busca controlar e dimensionar de forma adequada. O desenho é meio, e não fim em si mesmo, no entanto ele possui um claro poder indutor e revelador, pois de certa forma aquilo que não é visto por ele, não será contemplado.

Para fazer frente a esses condicionantes, uma das hipóteses para alcançar esse aprofundamento era o desenvolvimento de projetos  pré desenvolvidos em matérias anteriores, escolhidos pelos próprios alunos. Outra hipótese, seria o oferecimento de um anteprojeto consolidado, que permitisse aos alunos o desenvolvimento do projeto executivo desde as primeiras aulas do semestre. Essas hipóteses não se revelaram aplicáveis, pois muitos dos alunos não reconheciam em suas experiências anteriores, experiências bem sucedidas, e por outro lado, um anteprojeto oferecido não produziria aquilo que todo militante no projeto, e em seu ensino reconhece como um; envolvimento emotivo efetivo[2] na matéria de Projeto 5. Ítem fundamental na obtenção de um engajamento efetivo na disciplina e no alcance de seus objetivos, uma vez que projeto é também expressão artística, aonde a expressão pessoal conta muito. Na verdade, a atividade de projeto se aproxima do ato artístico em sua essência, afinal ela envolve a ordenação espacial, a eleição de um sistema de proporções, uma particular relação orgânica e unitária entre parte e todo, uma definição de uma materialidade adequada, enfim um processo obsessivo de controle do objeto construído, que se aprofunda a medida que se desenvolve. As considerações técnicas e estruturais desse processo não estão em contradição com a criação e a concepção auto-biográfica, ou da expressão pessoal, mas fazem parte da obtenção de uma certa potência, que deve ser vivenciada pelo aluno a partir da experiência empírica, do aprender fazendo.

 







Figura 2: Croqui fornecido aos alunos das unidades duplex com núcleo de circulçao vertical, que pretendem a diversidade de extratos sociais na estrutura condominial








A saída encontrada pela matéria foi oferecer aos alunos uma série de croquis genéricos, de duas unidades habitacionais de sala e dois quartos, articuladas por um núcleo de circulação vertical, que deverá ser usado pelos alunos de forma livre em sua reprodução, a partir de terrenos concretos escolhidos por eles mesmos. Além dessa planta padrão é definido, que o térreo da edificação deve oferecer um contínuo comercial à cidade, a presença de módulos de loja, de forma a conformar uma edificação multifuncional. As especificidades de funcionamento desse espaço comercial não são definidas, devendo esse espaço ter flexibilidade para poder abrigar; um bar, ou um restaurante, ou um cabelereiro, ou uma padaria, ou qualquer outro comércio. Junto com a planta padrão e a loja genérica no térreo, é também apresentada uma unidade com a mesma projeção horizontal, mas que se desenvolve em dois pavimentos, uma unidade duplex. O argumento para inserção dessa outra tipologia, o duplex, pretende fazer crítica a uma forma inercial de desenvolvimento das cidades brasileiras, que estratificam de forma muito violenta, classes sociais distintas. Portanto, a ordenação condominial pretende se como multifuncional e com diversidade de extratos sociais, que são aproximados pelo núcleo de circulação vertical. A partir da estruturação de uma unidade condominial concreta, inserida num contexto urbano específico, o aluno conforma um edifício multifamiliar, com comércio no térreo e com unidades de metragens diferenciadas, com o claro objetivo de criticar a inércia do desenvolvimento da cidade brasileira contemporânea. Isto é, identifica-se na cidade brasileira características nefastas, que são a rigidez monofuncional, áreas habitação ou dormitórios separadas das áreas de trabalho ou serviços, e com a tendência de aglutinar extratos sociais diferenciados, guetos de pobres e ricos,e com a presença de rodoviarismo exacerbado..























 Figura 3 e 4: Croquis dos alunos explicitando os arranjos condominiais propostos a partir da utilização das unidades habitacionais de simplex e duplex

 



3. Crítica a cidade brasileira e a hegemonia modernista corbusieana:

Além dessa crítica a forma de reprodução da cidade brasileira, os terrenos devem ser procurados pelos alunos em áreas estruturadas e centrais, aonde já exista oferta de comércio e serviços abundante, inserindo o uso habitacional. A proposta claramente pretende fomentar o habitar no centro, aonde além da ampla oferta de comércio e serviços, também se faz presente as comodidades da ampla mobilidade urbana, que possibilitam rápido acesso a todas as partes do território metropolitano, sem a celebração do automóvel particular. Esse preenchimento habitacional nas áreas centrais de nossas cidades é uma efetiva ação de revitalização, pois o uso habitacional acaba por demandar o próprio comércio, impulsionando seu uso mesmo nos fins de semana e feriados, otimizando o uso de nossas infraestruturas, já instaladas. Portanto, a estruturação condominial não obriga a oferta de vagas de automóveis, buscando incentivar o uso dos diversos modais de mobilidade também presentes nessas áreas. A partir disso, há uma relativização da legislação urbanística imposta nessas áreas, liberando os alunos da configuração de pavimentos garagem, numa clara vertente crítica ao rodoviarismo imperante.

Na verdade, o que se busca é a diversidade e inclusão, numa clara crítica às premissas de reprodução da cidade brasileira, que segue com um território estratificado entre ricos e pobres. A inclusão é o maior desafio das cidades brasileiras, que possuem um passivo na sua história de contínua exclusão de pessoas e áreas, que permanecem como guetos da pobreza, desassistidos das infraestruturas mais básicas. Afinal, uma das características mais marcantes de nossa sociedade é a marcante concentração de renda. De uma maneira geral, nossos políticos e nossas políticas ainda não despertaram para o fato de que a distribuição territorial da população pode ser um fator capaz de distribuir oportunidades, e portanto renda de forma mais equânime. O simples acesso a uma centralidade mais fortemente constituída, pode significar a frequência em equipamentos culturais e ou educacionais de boa performance, mudando de forma substancial a perspectiva de populações vulneráveis. A simples implantação de saneamento básico em certas localidades afasta de maneira significativa a ocorrência de doenças como desarranjo e difteria, que podem nos primeiros anos de vida significar comprometimentos definitivos na capacidade cognitiva de indivíduos.



A diversidade é didática, atesta tal fato a estratégia adotada pelas universidades norte americanas, que há anos fazem um esforço sistemático para reunir na mesma sala de aula alunos de diferentes procedências e nacionalidades, na expectativa de que suas vivências compartilhadas formem uma massa crítica. A excelência da universidade norte americana possui um dos seus pilares nessa pré determinação, que possibilita uma vivência de compartilhamento de experiências, que acaba produzindo um aprendizado, onde a passividade dá lugar ao ativismo. A própria experiência da nação norte americana3[ii], que baseou seu desenvolvimento na atração de diferentes nacionalidades, e durante a passagem do século XIX para o XX representou uma promessa para a imigração de todos os povos. De certa forma, o Novo Mundo, da América em sua totalidade também representou esse local de forma emblemática, um local onde as oportunidades estavam abertas para pessoas do oriente e do ocidente. As operações urbanas precisam encampar esse objetivo, incentivando o intercâmbio entre diversidades.



A pedagogia de Paulo Freire, também aponta no mesmo sentido, a diversidade é didática, capacitada de nos fazer relativizar nossos valores, e portanto produz um impulso didático de relativização dos nossos valores. A teoria dialógica de FREIRE 1970 aponta a premissa básica do diálogo entre experiências de qualquer procedência como operação didática, contraposta a concepção binária da educação, que não gerava autonomia do pensar, mas dominação e colonização. Há aqui um nivelamento importante entre as culturas do colonizador e colonizado, do centro e da periferia, numa nova proposição de relação entre professor, aluno e sociedade. Trazer esses valores para a ordenação do espaço físico das cidades, dos bairros e vizinhanças imediatas é restaurar o sentido inicial das aglomerações humanas, onde a diversidade é didática.



Há também aqui uma clara indução de implantação, negando a cultura do modernismo corbusieano, que naturalizou a presença dos pilotis nos térreos, destruindo a limitação historicamente bem compreendida entre esfera pública e privada. Há uma clara pontuação por parte do professor, de que o tema habitacional em nossas cidades contemporâneas é bem resolvido a partir de uma graduação socialmente compreendida e compartilhada entre esfera pública e privada, nas suas diversas nuances. Importante salientar, que essas nuances e sua gradação na percepção dos usuários, que do espaço público genérico de amplo acesso, passa-se ao espaço condominial controlado, e desse para a intimidade da família e do lar. A limitação clara e objetiva desses espaços reforça a vitalidade das nossas cidades, uma vez que a interação social é ampla e diversificada, não se restringindo aos habitantes do condomínio, mas também envolvendo; visitantes, entregadores, enfim, estrangeiros a estrutura condominial. O que se enfatiza junto aos alunos é a obtenção de uma estrutura legível e clara dessas graduações, que seja socialmente compartilhada. Por outro lado, se identifica na postura do urbanismo corbusieano um certo hiper dimensionamento do espaço público, que acabou invariavelmente incentivando uma ocupação por perversões.








Figura 5 e 6: projeto de Bruno Taut  para o bairro de Karl Liegen Stadt, em Berlim. Um modernismo de continuidade com a cidade pré existente novecentista, apresentado aos alunos como alternativa ao modernismo corbusieano hegemônico no Brasil.






Na verdade, a crítica ao modernismo corbusieano busca ampliar o vocabulário dos alunos, mostrando que a sensibilidade moderna abriga uma grande diferenciação de posturas ideológicas e de leituras da cidade, que não só a de Le Corbusier. De acordo com FRAMPTON 2008, tomando-se os Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAMs) percebe-se uma clara hegemonia dos alemães até 1930, que após essa data terão a supremacia corbusieana, e da sua visão urbana. As experiências de construções massivas habitacionais da Alemanha da República de Weimar e da Europa Central são apresentadas aos alunos, mostrando um modernismo de maior continuidade com a cidade novecentista. As intervenções de Bruno Taut em Berlim e de Karl Ehn em Viena, no período pré Hitler são apresentadas como ordenações que trabalham com a mencionada graduação entre espaço público e familiar ou íntimo, permitindo uma legibilidade da cidade socialmente compartilhada.








Figura 7: projeto de Karl Ehn em Viena  para o bairro de Karl Marx Hof. Um modernismo de continuidade com a cidade pré existente novecentista, apresentado aos alunos como alternativa ao modernismo corbusieano hegemônico no Brasil



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 4.    Pré definições modulares e estruturais:

Por último, é sugerido aos alunos a adoção do método construtivo da alvenaria armada, técnica que é apontada pelo Sindicato da Cosntrução Civil (SINDUSCON), como a mais barata por metro quadrado para os empreendimentos habitacionais. E, capaz de realização de edificações de até oito andares, impondo verticalmente a coordenação modular entre pavimentos. Tal adoção pretende induzir os alunos ao raciocínio da modulação dimensional, como um elemento fundamental para o controle técnico da construção. As possibilidades e limitações desse método construtivo pretende impulsionar nos alunos um maior compromisso com o raciocínio tectônico, aonde os desenhos se afastam do esquemático, adotando seu real caráter descritivo e de representação analógica do construído. É enfatizado o caráter dialógico e interdisciplinar do projeto, aonde as contribuições e insites aperfeiçoadores podem ser obtidos a partir da interação com as disciplinas complementares, tais como hidraulica, esgoto sanitário, iluminação, estrutura, impermeabilização, etc. O projeto de arquitetura é encarado como disciplina coordenadora e indutora das demais disciplnas de projeto, não se eximindo no entanto de interagir e se aprimorar com as informações técnicas. A dimensão dialógica da arquitetura é reforçada. A arquitetura como disciplina coordenadora das disciplinas complementares é definida como diretora das demais disciplinas, sem no entanto se recusar a ser induzida por elas. A analogia constantemente utilizada no Atelier é a da direção do filme, que não só determina, mas se deixa também induzir pelo iluminador, pelo cenógrafo, pelo figurinista, e outros. A estrutura, as instalações, as impermeabilizações são encaradas como um aprimoramento técnico, que efetiva a componente estética do projeto, não havendo contradição entre tectonia e beleza. A beleza está no construído e não no desenhado.









Figura 8: Croquis de explicitação construtiva do sistema de alvenaria armada.





O apoio dos computadores é bem recebido no atelier de desenho do projeto executivo, no entanto suas limitações e distorções são assinaladas no sentido de sensibilizar os alunos de que as complexas relações entre todo e parte são prejudicadas por essa forma de desenhar. E, que o projeto em sua complexidade, desde de suas fases preliminares de concepção envolve uma adequação e compatibilização extrema entre parte e todo, que se mantém importante no executivo. O desenho é encarado como um campo de consciência, aonde aquilo que não é desenhado não pode ser pensado e decidido, a representação do problema e do contexto precisa ser alinhavado para ser enfrentado. O processo de projeto é encarado como o cotejamento de hipóteses de desenho aonde só é possível ter uma escolha consciente na medida em que comparamos as opções. O fenômeno do raciocínio projetual é uma reflexão sobre uma série de escolhas que se demonstram coerentes entre si desde o início. Daí a importância de reforço sobre a dimensão autoral do projeto, que ao se identificar com uma expressão auto biográfica, se aproxima da arte e ao mesmo tempo da objetividade construtiva. São constantemente reforçados, no âmbito do atelier a importância do desenvolvimento do olhar, para soluções de detalhe consagradas pelo uso, enfatizando a dimensão de patrimônio de bem comum construído a partir das condições das intempéries no contexto da cidade do Rio de Janeiro, e das experiências pretéritas. A coleta e classificação das soluções de detalhe, a partir do olhar e da pesquisa dos alunos é uma dimensão constante, aonde a capacidade da edificação de resistir ao tempo é enfatizada e reforçada.


5.    Conclusões preliminares:

A partir desses apontamentos iniciais sobre o ensino do Projeto Executivo é possível inferir algumas questões para o impulsionamento e aprofundamento da formação no ofício de arquitetura e urbanismo.

·         A compreensão do projeto como uma forma propositiva de abordagem do real, recoloca a dimensão crítica desse instrumento para a sociedade, que na verdade pode utilizá-lo para pré figurar outras condições da forma inercial de reprodução histórica da cidade brasileira

·         A atual condição de reprodução da cidade brasileira nos confronta com um horizonte de exclusão continuada de amplas parcelas da população brasileira, incitar os alunos a refletir sobre essa condição transforma o atelier de projeto, dando-lhe uma dimensão crítica, que intensifica o envolvimento dos alunos.

·         A eleição dos terrenos por parte dos alunos, a partir de premissas locacionais inseridas em contextos centrais, traz uma dinâmica de macro crítica a cidade brasileira, que também aumenta o envolvimento dos alunos.

·         O fornecimento das plantas padrão abrevia o processo de concepção do objeto, dando-lhe um caráter de reunião e composição de elementos pré concebidos, permitindo uma definição rápida do objeto a ser construído, e não retirando dos alunos seu desejo de expressão auto biográfica.

·         O entendimento do desenho a partir de computadores como uma ferramenta de otimização das reproduções e repetições do projeto pretende afastar uma certa fetichização desse instrumental, que hoje povoa o senso comum das escolas de arquitetura.

·         O exercício quer reforçar o compromisso com o objeto efetivo e construído, entendendo o desenho como instrumento indutor e participante, mas como representação do mundo real, que deve ser sua referência.

·         Uma certa autonomização dos desenhos através das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) com relação ao canteiro de obras é um fato no mundo contemporâneo, que seduziu fortemente as novas gerações. A crítica a essa condição é fundamento do atelier de projeto também.





1 TAFURI 1979 página ... Há uma clara analogia nesse autor entre a projetação e a crítica, entendida essa última como consciência da direção tomada pela história, a partir das iniciativas humanas. A definição do projeto como teoria crítica e operativa está nesse livro.

2[i] A categoria de envolvimento emotivo efetivo no projeto, desenvolvida por ROSSI ... no livro Auto biografia científica desenvolve a ideia de objetividade científica e expressão pessoal na fenomenologia do projeto, ítem considerado essencial para o envolvimento entusiasmado do arquiteto ou aluno com a disciplina e o conteúdo.

3[i] A referência para essa história americana é dada por TOTA, Antonio Pedro – Os americanos – Editora Contexto São Paulo 2009

 6. Referências:

BRANDÃO, Carlos Antonio Leite Brandão – A formação do homem moderno vista através da arquitetura – editora Ap Cultural 1991 Belo Horizonte.
FRAMPTON, Keneth – História Crítica da Arquitetura Moderna – Editora Martins Fontes São Paulo 2008
FREIRE, Paulo – A pedagogia do oprimido – Editora Paz e Terra Rio de Janeiro 1970
MARTINEZ, Alfonso Corona – Ensaio sobre o Projeto – Editora da UNB Brasília 2000, 200 páginas
MOREIRA, Pedro da Luz – Projeto, Ideologia e Hegemonia, em busca de uma conceituação operativa para as cidades brasileira – Tese de Doutorado apresentada no PROURB em 2007
ROLNIK, Raquel – Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças – Boitempo São Paulo 2015
ROSSI, Aldo – A arquitetura da cidade – Editora Martins Fontes São Paulo 1995
ROSSI, Aldo – Para uma arquitetctura de tendência, escritos 1956-1972 – Editorial Gustavo Gilli Barcelona 1977
ROSSI, Aldo – Autobiografia científica – Editorial Gustavo Gilli Barcelona 1984
SANTOS, Carlos Nelson Ferreira – A cidade como um jogo de cartas – EDUFF Niterói 1988
TAFURI, Manfredo - Teorias e História da Arquitetura - editorial Presença Lisboa 1979
TAFURI, Manfredo – The Sphere and the Labyrinth, avant-gardes and architecture from Piranesi to the 1970,s – MIT Press Bosto 1987
TOTA, Antonio Pedro – Os Americanos – Editora Contexto São Paulo 2009