quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

A divisão social do trabalho na antiguidade pré-clássica

O crescente fértil, dádiva dos cursos dos 
rios Tigre, Eufrates e Nilo

Dentro do contexto da disciplina da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU-UFF) de História e Teoria da Arquitetura 1 houve um profícuo debate a respeito da instituição da divisão social do trabalho nas sociedades da antiguidade pré clássica. A região que assistirá a emergência das primeiras sociedades humanas complexas e diversificadas está localizada numa região denominada o "Crescente Fértil", limitada pelos fluxos de três importantes rios; o Tigre, o Eufrates e o Nilo, importantes planícies fluviais com grande incidência solar. O Tigre e o Eufrates naquilo que hoje é o Irã, e que, na antiguidade se constituiu enquanto as civilizações Suméria e Mesopotâmia. Enquanto, o Nilo, naquilo que hoje é o Egito contemporâneo, e na época se constitui como o Antigo Império do Egito, uma das civilizações mais sofisticadas da antiguidade pré clássica. A observação do tempo, a repetição de um certo padrão cíclíco num ano, articulado com as vazões desses rios determinaram tecnologias de seleção de sementes, tempo do plantio, tempo da colheita, desenvolvimento das criações, num ambiente generosamente fornecido pelo nosso planeta. O "Crescente Fértil" permitiu às sociedades humanas agrícolas acumularem imensos contingentes de super produção de alimentos, desembocando em sociedades sofisticadas, aonde a divisão social do trabalho gera o aparecimento de profissionais tais como: escribas, sacerdotes, arquitetos, agricultores, pastores, imperadores, faraós, etc... O aparecimento da nova classe de artesãos: resolvidas as questões mais elementares do cotidiano (produção de alimentos), uma parcela da população se torna apta a se dedicar ao artesanato e a atividades contemplativas e críticas. A invenção da escrita é fundamental no controle das safras e na documentação das tecnologias, na sua difusão, seu registro para as futuras gerações se tornam mais sistemáticos e o seu questionamento se aprimora continuamente. A cidade, uma concentração de indivíduos de diferentes procedências, crenças, tecnologias, localizações e costumes determina a intensificação do intercâmbio humano, garantindo à espécie avanços significativos. A cidade é um acontecimento que arranca a espécie humana de suas tradições familiares e do clã possibilitando a observação de diferentes tradições e culturas que se aproximam e intercambiam.

“...é muito provável que os homens viveram, no início, isolados e ao ver que, mais tarde, tinha vantagens ao contar com a ajuda de outros homens para obter aquelas coisas que poderiam fazê-lo feliz (se é que se pode falar de alguma felicidade aqui em baixo), ele (o homem) chegou de modo natural a desejar e amar a companhia de outros homens. E assim, os grupos de casas se converteram em aldeias e os grupos de aldeias em cidades” PALADIO, 1965

O processo de ampliação e radicalização da divisão social do trabalho se intensifica, a partir da perspectiva da garantia da preservação da espécie e otimização da existência dos grupo humanos, que ampliam suas próprias condições de existência. Ela se iniciou pela diferenciação entre idosos e jovens, homens e mulheres, famílias, frátrias (cúrias) e cidades ainda nos tempos da pré história, e ganhou em complexidade. Nos tempos antigos, quando os grupos humanos permaneciam ainda nômades, havia o costume do enterro dos entes queridos em locais específicos para que pudessem ser revisitados e lembrados. A humanidade chocava-se com a violação desses locais por animais e feras, como lobos e chacais, imagina-se que para combater esses procedimentos os grupos humanos, primeiro cercaram, e depois protegeram esses lugares, acabando por determinar com que os anciãos, os membros mais velhos, ficassem guardando os túmulos. Exatamente, os membros que representavam o maior fardo nas jornadas itinerantes da humanidade, àqueles que guardavam as memórias e feitos mais notáveis do clã, seus ritos e mitos compartilhados. A vigília dos túmulos e restos mortais dos entes queridos, certamente deve ter impulsionado a geração de relatos, ritos e mitos, que caracterizavam e identificavam aquele grupo, enquanto identidade singular. Nesse sentido, é que vários antropólogos mencionam que a cidade dos mortos precede a dos vivos, e determina a  divisão etária do trabalho, que acaba por sua vez, por fazer emergir a figura do sacerdote, ou guardião das tradições daquele grupo ou clã. O mistério da morte deveria fascinar nossos antepassados, fazendo-os imaginar entes, entidades e fenômenos mágicos e sobrenaturais, que eram consolidados nos relatos desses guardiães de túmulos.

“As mais antigas gerações, muito antes ainda de existirem filósofos, acreditavam já em um segunda existência passada para além desta nossa vida terrena. Encaravam a morte, não como decomposição do ser, mas como simples mudança de vida.” COULANGES, 1987 página 15. 

Outra divisão social do trabalho envolveu as mulheres e os homens, aquilo que pode ser caracterizado como a divisão sexual do trabalho nas sociedades humanas, afinal, toda vida animal possui como fim a sua própria preservação. Mas a espécie humana, em suas características básicas envolve e abarca um processo de humanização, que é sempre um processo de longa duração, no qual, a própria repetição mecânica dos ciclos da vida é sempre problematizada e pensada. A observação da germinação da vida, primeiro em seu corpo e depois na terra articula o controle das sementes ao feminino, enquanto a caça, e a domesticação de animais ao masculino; um confecciona utensílios para a germinação da vida, o outro, para a destruição da vida, as armas. A reflexão sobre os gestos, atos e operações da reprodução da vida devem ter mobilizado as energias humanas muito cedo, levando mulheres e homens a encarar um acontecimento biológico como algo a ser problematizado e pensado. A analogia entre esses processos e a geminação de sementes na terra deve ter mobilizado a curiosidade explorativa de nossos ancestrais, que a partir da interação iniciam processos de controle, manipulação e seleção, que desembocarão na agricultura e no pastoreio de espécies domesticadas. Na verdade, esse primeiro conhecimento corporal e intuitivo é problematizado pelo acúmulo histórico, na troca de relatos e experiências, particularmente na doutrinação das novas gerações. Pode se imaginar, que mulheres começaram a identificar comportamentos e práticas contraceptivos, capazes de impulsionar ou retroceder os seus próprios ciclos básicos. Desenvolveram e compartilharam conhecimentos sobre seus próprios corpos, seus fluxos e ciclos, intuíram e se anteciparam a ocorrência cíclica dos fenômenos preparatórios da reprodução, entendendo e registrando suas etapas.

“Buscar uma concepção materialista de mulheres, homens e sua história significa buscar sua natureza humana. A natureza humana, no entanto, não é um dado meramente biológico, mas o resultado da história da interação das pessoas com a natureza e entre si. Porque as pessoas não vivem simplesmente (diferente dos animais), as pessoas produzem suas vidas. “ MIES, 1988. 

Outro polo de produção de divisão social do trabalho foram; a Família, a Fratria (ou Cúria), e a Grande Cidade da antiguidade, estruturas que impulsionaram a separação de funções e atividades intra humanas. Neste sentido, o papel do fogo, e das tecnologias para sua geração foram fundamentais, pois nas sociedades antigas era comum que as famílias ou clãs mantivessem em suas casas altares com fogo permanente acesso em celebração de divindades específicas. Cada família ou agrupamento de famílias, Frátria, e até mesmo a grande cidade possuíam suas divindades específicas, que eram celebradas a partir da manutenção continuada de um altar de fogo, que assinalava e acolhia o ente mágico. A produção de utensílios que possibilitavam essa promoção da veneração de divindades, tais como; artefatos mantenedores de chama como velas e lamparinas deviam ser produzidos e vendidos nos mercados e feiras das cidades da antiguidade. A independência com relação a produção de alimentos e artigos derivados da agricultura e pecuária permitiu aos humanos a interação e aprofundamento em tarefas específicas, que também geravam conforto e bem estar para todos. A ideia de uma produção solidária e colaborativa, a partir da divisão social do trabalho, fizeram a fortuna das sociedades dos sumérios, da mesopotâmia e do antigo Egito transmitindo aos estrangeiros a impressão da boa vida. É claro, também que determinadas categorias sociais passam a desfrutar de sobre privilégios, explorando os efetivos produtores do trabalho.

“Muitas famílias formaram a fratria, muitas fratrias a tribo, e muitas tribos a cidade. Família, Fratria, Tribo, Cidade são, portanto, sociedades perfeitamente análogas e nascidas uma das outras por uma série de federações.” COULANGES, 1987 página 132.

A arquitetura e a grande cidade mostram a emergência dessa divisão social do trabalho; as muralhas, os grandes templos, as habitações mais abastadas e mais simples, os canais de saneamento e de fertilização mostram nos o compartilhamento de tecnologias construtivas, que conformam personalidades e expressões específicas 

BIBLIOGRAFIA:

COULANGES, Fustel – A cidade antiga - Martins Fontes, Lisboa 1987

MIES, Maria - Origens sociais da divisão sexual do trabalho. A busca pelas origens sob uma perspectiva feminista -  1988.

PALADIO, Andrea – The four books of Architecture - Dover Publicatons Nova York 1965