quinta-feira, 7 de março de 2024

Antropoceno ou Capitaloceno, conceitos em disputa, ampliação ou redução das racionalidades


Afinal, vivemos uma nova era geológica denominada Antropoceno, na qual os impactos da atividade humana generalizada sobre o planeta atingem a dimensão de uma Era Geológica, fazendo-nos superar o Holosceno, decretando uma crise ecológica nunca vista. Ou, estamos diante do Capitaloceno, uma era na qual a produtividade capitalista, o extrativismo desenfreado, a expansão do imperialismo, a ampliação da mercantilização da vida atinge várias áreas do planeta, enfim uma ordenação social específica, que determina uma crise ecológica sem precedentes. As duas versões vem sendo debatidas, e trazem cada uma, um alinhamento ideológico, um critério de juízo sobre a Crise Ambiental que vivenciamos; o Antropoceno aparece como uma construção das ciências naturais, enquanto o Capitaloceno emerge de uma visão das ciências sociais. As duas conceituações não são excludentes, mas reforçam posicionamentos e alinhamentos ideológicos; o Antropoceno responsabiliza a humanidade como um todo pelo que alcançamos, enquanto o Capitaloceno responsabiliza os beneficiários de um sistema econômico, social e político, que emerge num determinado tempo histórico. As mudanças climáticas, a extinção de espécies animais, o advento de biomas naturais modificados e desequilibrados são frutos de um longo processo de autonomização da espécie humana em relação a natureza? Ou são produzidas por um desenvolvimento predatório, com excesso de desperdícios e não absorção de dejetos e subprodutos de um processo produtivo exponencial, cujo os beneficiários se restringem a uma minoria da humanidade? Há aqueles que se voltam contra a razão ocidental, eurocêntrica que a partir do século XV, se lançou a conquista do mundo, impondo uma lógica linear redutora, instrumental, incapaz de perceber a complexidade da vida. A modernidade, que frutificou no Renascimento, reconstruindo a ontologia da cultura greco romana que impulsiona uma racionalidade que se restringe a alcançar fins redutores e limitados. Que racionalidade é essa? A racionalidade é a mesma para toda a humanidade? Para Max Weber existiam dois tipos de racionalidades; uma mais completa ou integral era a ação racional valorativa, e outra mais limitada e restrita era a ação racional instrumental, o autor vinculava essa segunda racionalidade instrumental à modernidade. Há também em Jürgen Habermas, uma distinção importante entre razão instrumental e razão intersubjetiva; a primeira é dominada pela restrição individual ou interesses de grupos restritos e sua objetivação é ditada pela manipulação de meios adequados a fins. Enquanto, a segunda racionalidade contempla ou negocia com o coletivo e objetiva-se por valorizações morais e éticas, onde a gestão dos recursos disponíveis é problematizada e os benefícios são ampliados socialmente. Habermas ao contrário de Weber, se mantinha como defensor da racionalidade renascentista e iluminista da modernidade, partindo da ideia de Kant do universalismo da razão(1), além das identidades, e impulsionada pelo auto esclarecimento.

"Não podemos excluir de antemão que o neoconservadorismo ou o anarquismo de inspiração estética está apenas tentando mais uma vez, em nome de uma despedida da modernidade, rebelar-se contra ela. Pode ser que estejam simplesmente encobrindo com o pós esclarecimento sua cumplicidade com uma venerável tradição do contra-esclarecimento." HABERMAS, 2002, pág.8

Mas além, do Capitaloceno como expressão questionadora do Antropoceno, também surgiram outras expressões que além do Capitalismo localizam o problema em outras ordenações sociais como; o Faloceno (machismo), o Racismoceno (racismo), o Plantatioceno (colonialismo), ou ainda Necroceno (necrofilia). Enfim, o valor de todos esses termos emerge do mérito de identificar no conjunto da humanidade, os principais responsáveis ou beneficiários de uma racionalidade redutora instrumental de meios-fins, procurando distinguir em consequência, os principais prejudicados, a sub humanidade deixada ao largo pelo mesmo sistema produtivo. É claro as correspondências entre os impactos da crise climática e as atividades antrópicas principalmente as que decorrem da concentração de Gases do Efeito Estufa (GEE) na atmosfera, majoritariamente provenientes da queima de combustíveis fósseis, incrementados pelos processos históricos de industrialização decorrem ao final da distribuição desequilibrada de oportunidades fomentada pelo capitalismo, pelo machismo patriarcal, pelo racismo, pelo colonialismo, pelo imperialismo. No entanto, é necessário manter um certo cosmopolitismo da consciência humana geral, identificando que a maioria dos seres humanos são despossuídos e foram colocados à margem como uma sub espécie, que não desfrutou e segue sem desfrutar dos benefícios de uma ordenação sócio-cultural excludente, o capitalismo. É importante nesse contexto, a identificação do neoliberalismo hegemonizado pela globalização capitalista como promotor e responsável central dos riscos ambientais que corremos, de forma absolutamente diferenciada, pois são as populações do Sul Global que mais serão atingidas. O sistema de operação do neoliberalismo naturalizou, que um número pequeno de interesses particulares controle a maior parte da produção e reprodução da vida social no planeta, apurando benefícios individuais particulares, de maneira mais explícita a partir dos governos de Thatcher (1979) e Reagan (1981). Tudo isso fica atestado de forma clara pelo enorme crescimento da pobreza, da desigualdade social e econômica nas sociedades e entre nações, fruto da expansão capitalista, do imperialismo e da hegemonia financeira-produtivista. Enfim, é necessário reconhecer que as políticas de afirmação identitária não tem conseguido fazer frente, oposição consistente, ou construir alternativas ao módus operandi do neoliberalismo. A partir da perspectiva crítica da história é preciso começar a reconhecer que o mundo do trabalho - sindicatos, associativismo de categorias, partidos trabalhistas e ligas camponesas - eram mais eficientes na contenção dos interesses predatórios dessa minoria endinheirada, do que as políticas identitárias atuais. Será preciso combinar, com grande sensibilidade, uma convergência geral de revalorização do mundo do trabalho e das formas variadas de reprodução da vida, questionadoras do acúmulo desregrado de renda de uma minoria, e ao mesmo tempo, frutificar as lutas identitárias específicas dos subalternos do mundo. Uma busca aparentemente paradoxal, entre a homogenização dos despossuídos do mundo e a heterogenização das identidades variadas do mundo.

"0 neoliberalismo é o paradigma econômico e político que define o nosso tempo. Ele consiste em um conjunto de políticas e processos que permitem um número relativamente pequeno de interesses particulares controlar a maior parte possível da vida social com o objetivo de maximizar seus beneficios individuais. Inicialmente associado a Reagan e Thatcher, o neoliberalismo é a principal tendência da politica e da economia globais nas últimas duas décadas, seguida, além, da direita, por partidos politicos de centro e por boa parte da esquerda tradicional [...]. As consequências econômicas dessas políticas têm sido as mesmas em todos os lugares e são exatamente as que se poderia esperar: um enorme crescimento da desigualdade econômica e social, um aumento marcante da pobreza absoluta entre as nações e povos mais atrasados do mundo, um meio ambiente global catastrófico, uma economia global  instável e uma bonança sem precedente para os ricos. Diante desses fatos, os defensores da ordem neoliberal nos garantem que a prosperidade chegará inevitavelmente até as camadas mais amplas da população - desde que ninguém se interponha a política neoliberal que exacerba todos esses problemas!" CHOMSKY, 2002, p. 3.

A crença de que o modelo do neoliberalismo promoveria a distribuição de riqueza e um desenvolvimento mais equilibrado entre as nações, típica das décadas de 80 e 90, já se desfez pela recorrente emergência de crises financeiras, aumento da pobreza e da inequidade ao longo desse tempo. Mas, ainda nos confrontamos com agentes defensores dos paradigmas neoliberais, particularmente na grande imprensa, tais como; valorização da competição geradora de eficiência, a desregulamentação estatal do mercado, o fomento a iniciativa privada desvencilhada das externalidades, supervalorização do Mercado como reino da virtude, e subvalorização do Estado como reino da corrupção e da ineficiência. O sistema desconsidera de forma recorrente a manutenção das condições de vida, em nome de uma eficiência da competitividade, com a primazia da razão técnica, que não leva em conta as externalidades humanas ou ambientais. Será preciso superar o identitarismo branco e europeu, questionando a modernidade carregada de uma racionalidade redutora de meios e fins, rompendo com o colonialismo que dita verdades sem pensar e sentir os meios de produção e reprodução da vida. A própria compreensão da história da humanidade precisa ser ampliada, para envolver a todos da espécie, reconsiderando as relações entre centro e periferia. A clássica subdivisão entre História da Antiguidade Pré Clássica, Clássica, Idade Média e Modernidade, que carregam o eurocentrismo deve ser questionada. Apenas, no espaço do ocidente deve-se revalorizar as contribuições; Árabe para as ciências modernas e a própria preservação do Aristotelismo, a Epistemologia dos povos originários da América, com sua lógica cíclica centrada na reprodução da vida, e a Africana que rejeita o pathos da demolição e de não aceitação do outro e do diverso (2). A consideração reproduzida em compêndios de História da arte, arquitetura e urbanismo, que se apresenta como universal, mas que recalca o imenso período de 5 século e meio, que vai da Queda do Império Romano do Ocidente (476d. C.) até o século X (1.000d.C.) na Europa é um testemunho cabal da desconsideração com a expansão árabe no norte da África e na Península Ibérica, ocorrida nesse momento. Manifestações como a Alhambra em Granada, ou o Califado e a Mesquita de Córdoba são desconsiderados, por não pertencerem ao esquematismo colonizador da Europa hegemônica.

"O domínio epistemológico tem na razão instrumental sua fundamentação. A razão nessa perspectiva soberana, totalitária, tornou-se, no Ocidente, a racionalidade científica que, como modelo totalitário, nega o caráter racional de todas as outras formas de conhecimento que não tiverem como critério os princípios epistemológicos e regras metodológicas da epistemologia dominante. Funciona como um acontecimento apropriador, como diria Heidegger. Isso nos leva a crer que os processos de 
descolonização que se iniciaram, historicamente, como um processo de libertação das colônias formação de Estados-nacões independentes, hoje devem continuar com a libertação de uma colonização epistêmica que, se efetivada, abriria espaço para a concepção de outra razão, de outra racionalidade ou ainda de outras formas de operação humanas para produzir conhecimento científico e filosófico. A descolonização colocaria fim a um processo histórico de implantação de poder, ou ao menos o enfraqueceria." PIZA e LIMA 2023 pág.113

A modernidade carregada de colonialismo precisa ser superada, por uma modernidade sem colonialidades brancas, uma questão complexa, que não deve descambar para uma simplificação redutora, da mera desqualificação como um todo, da contribuição da Europa. A divisão pseudo científica da história "humana" em Idade Antiga (antecedente greco-romano), a Idade Média (preparatória ou crítica) e Idade Moderna (Renascimento Europeu) é uma ordenação ideológica redutora, que não corresponde a sua pretensão de ser "humana" ou universal. Uma parte dessa ordenação serve a reprodução da razão instrumental, com claras finalidades de reprodução do acúmulo do capital, do imperialismo e da concentração de renda. Há uma cruel lógica capitaneada pelo avanço tecnológico, que como assinalou Franz Hinkelammer opera como um bicicleta ergométrica, que independente da velocidade não sai do lugar. O ambiente no capitalismo globalizado e neoliberal transmite a impressão de mudança constante e inevitável, sem nada mudar, mantendo sempre a mesma catástrofe de exclusão e concentração de renda. O marco histórico das bombas de Hiroshima e Nagasaki em 1945, assinalam aquilo que alguns autores consideram como a ampliação da "natureza barata"(3) humana ou natural, quando se processa uma imensa expansão do capitalismo pelo mundo e da razão instrumental de meios e fins. A implantação de um raciocínio de guerra, afinal quanto custa a destruição da Amazônia? Segundo a racionalidade instrumental de meios e fins, apenas os custos da mão de obra, das serras elétricas, do transporte da madeira, e nada mais, pois a venda da madeira que consegue superar esses custos, se apresenta e mensura o lucro. Apenas, a partir daí, no segundo pós guerra (4), é que emerge a consciência dos limites dos recursos do planeta, da finitude da Terra, que apesar de já operar desde a exploração da prata em Potosí na Bolívia, ou do ouro em Minas Gerais no Brasil, nos séculos XVI e XVII, só alcançará nesse ponto a materialidade do estrago planetário, ou sua consciência. As consequências para o campo da arquitetura e do urbanismo são notórias e incontornáveis, pois fica claro a relação entre realidade e projeção, entre contexto e formulação do devir, entre terreno e projeto, entre cidade e plano, agora condicionada pelo "automatismo do mercado". Já não se fala mais em corrigir o mercado, em respeito a satisfação das necessidades humanas, na lógica neoliberal deve-se agora adaptar a "realidade" às imposições do mercado, como algo automático, insuperável e repetido ao infinito. Com isso, parece que estamos indo rapidamente em direção a um suicídio coletivo, dado por essas condições de operação pouco sustentáveis ambiental e socialmente. Afinal, o que será das próximas gerações? O esloveno Slavoj Zizek tem uma irônica e trágica colocação assinalando nossa corrente atitude suicida; 

"a nós nos parece muito mais fácil imaginar o fim do mundo do que uma pequena mudança do sistema político. A vida na terra possivelmente vai acabar, mas o capitalismo de algum modo continuará." DUAYER 2023 pág.89

NOTAS:

(1) Imanuel Kant escreveu em 1784 um opúsculo denominado "Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolta", no qual se contrapõe a ideia de "sujeitos singulares" e o "conjunto da espécie" para a determinação de uma "liberdade da vontade", que acaba por conformar as disposições naturais para o uso da razão na humanidade.

(2) As epistemologias decoloniais do Sul Global, fomentadas por autores como; Enrique Dussel, Juan José Bautista, Franz Hinkelammert, Henry Mora Jiménez e Achille Mbembe.

(3) Jason Moore se refere a "Cheap Natures" para se referir a forma de apropriação do colonialismo, que explora naturezas humanas e naturais na periferia do mundo de baixo custo, numa atitude predatória de segregação.

(4) O primeiro autor a se referir ao Antropoceno no início dos anos 2000 foi o prêmio Nobel de Química, Paul Crutzen, segundo MOREIRA e GARRIDO, 2024 pág140. Os mesmos autores fazem referência  a "Grande Aceleração", ocorrida após a década de 50, após as bombas atômicas como uma época de aceleração da industrialização e urbanização.

BIBLIOGRAFIA:

BAUTISTA, Juan José - Hacia la descolonización de la Ciencia Social Latinoamericana - La Paz, Rincón Ediciones, 2012

CHOMSKY, Noam - Como parar o relógio do Juízo Final? - São Paulo, Instituto do Conhecimento Liberta (ICL), 2023

DUAYER, Mario - Teoria Social, Verdade e Transformação: ensaios de crítica ontológica - Editora Boitempo, São Paulo 2023

__________, Noam - O lucro ou as pessoas - Rio de Janeiro, Bertrand Russel, 2002

DUSSEL, Enrique - 1492; el encobrimiento del otro - La Paz, Plural 1994

________, Enrique - Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão - Petrópolis, Editora Vozes, 2000

HINKELAMMERT, Franz e JIMÉNEZ, Henry Mora - Hacia una economia política para la vida - Costa Rica, San José, UNA Economía y Sociedad n.21 2005

MBEMBE, Achiles - Necropolítica: biopoder, soberania, Estado de exceção, política da morte - São Paulo,  N-1 Edições, 2016

MOREIRA, Danielle de Andrade e GARRIDO, Carolina de Figueiredo - Uma nova época: Antropoceno ou Capitaloceno? Contexto histórico e desafios contemporâneos da crise climática - São Paulo, ICL, 2023

PIZA, Suze e LIMA, Bruno Reikdal de - Racionalidade e economia no fim dos tempos - São Paulo, Instituto do Conhecimento Liberta, 2023

HABERMAS, Jürgen - O discurso filosófico da modernidade - São Paulo Martins Fontes 2002

sexta-feira, 1 de março de 2024

As origens da arquitetura, um livro notável

Figura 1: Cronologia da Pré História, com a distinção entre
o Paleolítico (200.000 a.C. até 18.000a.C.),  o Neolítico
(18.000a.C. até 5.000a.C.) com a Revolução Agrícola e a
Idade dos Metais (5.000a.C. até 4.000a.C.) com a Metalurgia
e a Rev. Urbana

O texto a seguir é fruto da leitura do livro de Leonardo Benevolo e Benno Albrecht, que tem como título; "As Origens da Arquitetura", uma obra notável impulsionadora de questões fundamentais para operação da projetação contemporaneamente. Já, há alguns anos sou responsável pela cadeira de Teoria e História da Arquitetura 1 (THArq1) na Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU-UFF), que abarca um período longo, entre o advento da espécie humana, ou das primeiras manifestações de expressão pictórica nas cavernas ou de marcação territorial no Paleolítico (2,5 milhões de anos antes de Cristo), até o Renascimento Italianos nos séculos XIV, XV e XVI na era cristã. Um período extremamente extenso e complexo, no qual a humanidade constrói, transmite, apaga, recupera e retoma técnicas construtivas diversificadas, que interagem com várias formas de organizações sociais, constituindo o patrimônio da humanidade. Essa noção de Patrimônio Construído Comum, que perpassa esse longo período carrega a ideia de que a experiência humana em sua auto construção, ou na ampliação de sua humanização é um processo contínuo compartilhado, onde as tecnologias são apropriadas pela ideia kantiana de História Comum da Humanidade. Essa disciplina THArq1 era ministrada pelo Professor Juarez Duayer, que gentilmente forneceu me todo seu material didático e de trabalho, e a quem, sou extremamente grato por seus apontamentos, bibliografia e conceituação. Aqui nesse texto, pretende-se abordar o grande período da Pré História, que se refere ao tempo anterior a Idade Antiga, quando ainda não há escrita. Já houve aqui no blog, uma abordagem desse período no texto de 13 de outubro de 2021; "O filme a Guerra do Fogo e a disciplina de  Teoria e História da Arquitetura 1 (THArq1)", que aborda o citado filme do diretor Jean Jacques Annaud de 1981. Esse imenso período, conforme mostra a cronologia de 200.000a.C até 4.000a.C., que está subdividido em três partes. O primeiro período, o Paleolítico quando a espécie humana é caracterizada pelo nomadismo e por atividades extrativistas como a caça e a pesca e pelo aparecimento dos primeiros utensílios de pedra. O segundo trecho é o período do neolítico, quando ocorre a revolução agrícola, quando se desenvolve o início da fixação dos grupos humanos em sítios específicos em assentamentos classificados como aldeias. O terceiro período nomeado como Idade dos Metais, quando aparecem os primeiros utensílios de ferro e cobre, a metalurgia, e a Revolução Urbana, que determina uma aceleração incrível da apropriação de tecnologias pela humanidade, até alcançar o advento da escrita, que determina o final da pré história e o início da História. Esse período, apesar de distante é de suma importância para a arquitetura, o urbanismo e o paisagismo, por representar o advento da modificação do meio natural e o desenvolvimento da construção do abrigo, da casa, da cidade e da paisagem humana. É o período de artificialização ou da desnaturalização do humano, tanto pela confecção de utensílios, como pela formulação do abrigo, como um lugar que se constrói. Inicia-se aí a humanização do homem, que se manifesta na sua autonomização com relação ao meio natural, uma diferenciação que não mais reconhecerá na natureza a capacidade de abrigar e acolher a sua espécie. Começa um processo de acumulação contínua de tecnologias, saberes e pensamentos, que produz uma capacidade crescente de compreensão do mundo natural que passa a ser manipulado para seu próprio proveito e conforto. Emerge a arquitetura, o urbanismo, o paisagismo e a manipulação territorial em benefício do grupo humano, que pelas Revoluções Agrícola e Urbana materializam uma fenomenologia humana, parcialmente destacada da animalidade. Nesse sentido, em 1881, o arquiteto William Morris nos forneceu uma das mais precisas definições do que é a arquitetura, o urbanismo e o paisagismo, numa palestra intitulada, "The Prospects of Architecture in Civilization".

"Arquitetura é uma concepção ampla, pois abarca todo o ambiente da vida humana. Não podemos subtrair-nos a ela enquanto fizermos parte da sociedade civil, porque a arquitetura é o conjunto das modificações e alterações introduzidas na superfície terrestre como vistas as necessidades humana, com a única exceção do deserto puro [...]  citação de William Morris em BENÉVOLO e ALBRECHT 2002 pág.7

A ideia de constituição de uma sociedade colaborativa humana, que desemboca numa sociedade civil regrada e pautada por princípios de convivência, que garantem, e ao mesmo tempo promovem a autonomização do homem frente ao natural, identificando aí uma força diferenciadora. E, que concentram nessa atitude, nesse ambiente construído, modificado e adequado a sua existência, a seu comportamento diferenciado com relação ao natural, o próprio fator de uma reprodução da espécie autonomizada. E, prosseguem Leonardo Benévolo e Benno Albrecht, destacando o afastamento da tradição de certas definições culturais arraigadas da arquitetura, que destacaram a diferenciação entre necessidade e contemplação estética, como fenômenos distintos. E, mais ao fato de que as transformações humanas do meio natural estão carregadas de um espírito empreendedor impossibilitado de distinguir necessidade e arte no fazer humano.

"[...]A uma ideia restrita de arquitetura, historicamente qualificada, continua ser fiel, como se sabe, um grupo ínfimo de arquitetos contemporâneos, por um intuito programático preciso" BENÉVOLO e ALBRECHT 2002 pág.7

Essa definição materialista da arquitetura, de William Morris, que é compartilhada por alguns profissionais e pensadores do século XIX, e que questiona claramente a postura idealista, que encara o ofício como uma manifestação cultural compartilhada pela humanidade como um todo. E, que se distancia do posicionamento mais corriqueiro, idealista, que considera arquitetura e as transformações "introduzidas na superfície terrestre", apenas aquelas, que possuem intencionalidade estética, longe do império da necessidade. Nessa visão, necessidade e intencionalidade estética se misturam, mantendo-se a utilidade operacional e contemplativa dos objetos num interação dialética. Instrumentação e contemplação se somam a partir da capacidade de pré imaginar ou pré figurar - planejar e projetar - antes de realizar, como uma forma de problematizar as escolhas e assim refletir sobre o sentido. Liberdade e necessidade interagem de forma contínua e progressiva, gerando a auto problematização de sua própria existência, das tecnologias já inventadas e as que ainda devem ser inventadas para seu benefício próprio e do seu grupo. Há aqui, um embrião do desenvolvimento futuro da cultura arquitetônica, que se materializará na exposição do Museum of Modern Art (MOMA) de 1964, com curadoria de Bernard Rudovski, denominada "Architecture without Architects", que demonstra o vínculo intrínseco entre construção e cultura pulverizada e compartilhada. Um dos méritos dessa exposição do MOMA foi a apresentação de conjuntos construídos, como determinados vilarejos nas Ilhas Gregas ou em vilarejos africanos, que demonstravam uma profunda interação entre meio ambiente natural e humano, onde a parte e todo conformavam uma expresividade integral. Essa posição, me parece derivar da atitude romântica que nasce da crítica a razão universalista do Iluminismo francês, que resistia a reavaliação do gótico, da Idade Média ou do particular, como uma expressão única de um gênio espontâneo, muito além dos cânones. 

"O estudo da arquitetura passada serviu sempre para estimular a criatividade contemporânea. Basta recordar, no passado próximo, a redescoberta do gótico pelas vanguardas inglesas - John Ruskin, William Morris - da segunda metade do século XIX a releitura do classicismo nas universidade americanas - Rudolph Wittkower, James S. Ackermann, Joseph Rykwert - e por Loui I. Khan e seus discípulos; a reavaliação das vanguardas no início do século XX pelos movimentos revisionistas europeus; a curiosidade omnívora de James Stirling por qualquer achado do passado." BENÉVOLO e ALBRECHT 2002 pág.9

São atitudes que comprovam a permanência do romântico de forma trans temporal, como um posicionamento humano, que muito além de estar localizada num determinado espaço, a Europa Central, o mundo Germânico, ou num determinado tempo, o último terço do século XVIII até a primeira quadra do século XIX perpassa ou corresponde a um estado de espírito da humanidade. O espírito romântico seria a negação da possibilidade de um pensamento absoluto, simétrico, bem arranjado e comportado, que criasse uma ordem racional universalmente inteligível. Esse seria por excelência o mundo do longo período do Paleolítico, quando os padrões estão por ser estabelecidos e a humanidade não tem consciência de si própria. Quando olhamos para nossa cronologia, na Figura 1, percebe-se que os acontecimentos figurativos que chegaram até nós estão concentrados nos períodos; Finais do Paleolítico, a partir de 40.000a.C., Neolítico e na Idade dos Metais, quando a atividade humana ganha capacidade de representar o mundo exterior. Pinturas rupestres nas cavernas, em Lascaux na França, na serra da Capivara no Piauí, Ordenações de Menires em Carnac, Dólmens variados pelo mundo, Stonehenge na Inglaterra, dentre outros, testemunham uma vontade de marcar o território, de domínio sobre a caça, ou de controle do tempo. Nessa observação, há uma clara aceleração da História Comum da Humanidade, chegando até a passagem entre a aldeia e a cidade, da Revolução agrícola à Revolução urbana, como entidades conceitualmente muito diferentes quantitativa, mas principalmente qualitativamente. Na cidade, que difere da aldeia por sua ruptura com o provincianismo das famílias próximas, nasce um cosmopolitismo de convivência entre a diversidade de humanos, propiciando um incrível desenvolvimento tecnológico, pela aceleração do compartilhamento entre diferentes. Emerge uma didática da cidade, que impõe a convivência com a diversidade, a ampliação do respeito a uma certa privacidade única e particular, obtida a partir do anonimato da grande cidade. Um aprendizado com a presença da diversidade entre seres humanos; de crenças, costumes e tecnologias, que é gerador de curiosidades e portanto de um intenso desenvolvimento científico, artístico, poético e político para a humanidade. Mas sigamos com calma;

"Os artefatos físicos arquitetados pelo homem e ainda visíveis compreendem aquilo que não desapareceu no naufrágio das esperanças passadas, consumidas pelo tempo e pelo acaso. Permitem-nos a nós, descendentes afastados, um contato direto, face a face, com os nossos antepassados, transpondo o abismo do tempo. A partir de uma certa época, os artefatos são acompanhados de monografias, que, do ponto de vista histórico geral, estabelecem a diferença entre pré história e história. Mas os objetos construídos tem uma eloquência direta própria, que impressiona de igual modo os olhos de todas as gerações, e que pode passar por cima de qualquer diferenças de culturas e tradições." BENÉVOLO e ALBRECHT 2002 pág.9

A presença silenciosa, sem uma base textual explicativa das Pinturas Rupestres nas cavernas, em Lascaux na França, na serra da Capivara no Piauí, Ordenações de Menires em Carnac, Dólmens em partes variadas do mundo, Stonehenge na Inglaterra, dentre outros, aparecem como enigmas, que nos desvendam a nós mesmos como humanos. Elas parecem ser possíveis através de um longo desenvolvimento, que se processa no Paleolítico e nos marca a morfologia corporal, a configuração atual da mão humana, a postura ereta e a adaptação das cordas vocais marcam o longo processo da transformação e do alcance da condição humana. Emergem três limiares importantes da condição humana. O primeiro, a capacidade de se colocar a si próprio e os objetos exteriores num espaço unitário, compreendido pelos limites da visão humana e por sua possibilidade de ser descrito e apropriado, seria a consciência de si e sua localização espacial. O segundo, a capacidade de denotar simbolicamente os objetos, as coisas e a vida de uma maneira geral, indicando e nomeando aos outros próximos a localização e o tipo. E, o terceiro a capacidade de colocar sobre um suporte qualquer - grutas, pedras, areias, e outros - a representação imagética de qualquer objeto visível, como sustentação e comprovação de seus relatos particulares. Esses limiares são compartilhados e trocados entre os grupos humanos, iniciando um processo infindável de acumulação de experiências e vivências particulares, que vão se desenvolvendo em técnicas, poéticas e abstrações, que explicam o mundo. Essas experiências transcendem o indivíduo, ganham o grupo e passam a ser compartilhadas por gerações, que se sucedem e compartilham técnicas e relatos que sempre são aprimorados ou eleitos; objetos cortantes, objetos que apiloam, objetos que armazenam, vestimentas, etc... O desenvolvimento de trabalhos coletivos, onde as capacidades, as características etárias, sexuais e morfológicas de cada um são medidas e avaliadas, iniciando o processo de divisão social do trabalho. A comunidade ganha em coesão e interação, a medida que alcança objetivos e fins compartilhados de forma comum, realizados a partir do esforço conjunto, muitas vezes realizados em torno de ritmos e cantos, a partir de uma divisão social do trabalho embrionária, medindo e avaliando os potenciais particulares de cada um.

"Ao longo deste caminho entrevê-se uma história relativamente recente, diferente de qualquer outra, que se liga ao presente imprime a todo o percurso intermédio um carácter unitário: o aparecimento da espécie atual, o Homo sapiens sapiens, que substituiu em toda a parte as espécies anteriores. Este resultado parece apontar para a dependência de um acontecimento único e não repetível, e para esta conclusão convergem, até agora, tanto as provas arqueológicas como os estudos feitos ao DNA dos grupos humanos vivos (foi demonstrado que os grupos não africanos têm uma historia que não ultrapassa os 100.000 anos). A espécie atual, nascida provavelmente em África, propagou-se durante o
último período glaciar em todas as terras que emergiram nos dois hemisférios, muitas vezes ligadas entre si pelo abaixamento do nível dos mares, substituindo ou absorvendo os grupos humanos precedentes. Nenhuma particularidade anatômica relevante distingue os nossos antepassados de então dos seis bilhões de descendentes que hoje povoam a Terra. No que respeita aos equipa-
mentos técnicos e culturais tudo mudou, mas não a marca comum, reconhecível nos desempenhos fundamentais. Esta observação é particularmente importante no campo que estamos a tratar, A história geral da arquitetura não se apresenta como um feixe de experiências separadas, mas sim como uma
árvore de experiências conexas e comensuráveis." BENÉVOLO e ALBRECHT 2002 pág.24

É a esse patrimônio comum, que a partir dos 40.000 anos do Paleolítico aparecem para nós hoje em dia, como uma capacidade de abstração e representação, nos mais diferentes substratos como uma arte, tal qual a nossa. Como bem enfatizaram vários críticos, como Giulio Carlo Argan, Ernst Fischer, Bruno Zevi dentre outros, esse fenômeno - a Arte - não nasce primitivo, como esperando evoluir, onde não há possibilidade de qualquer juízo evolucionista. Ela nasce nos maravilhando, como que carregando uma euforia identitária, que invade todos os campos da experiência humana afirmando para todos o advento de algo específico do humano. As interpretações funcionalistas reduzem a sofisticação das representações, a uma necessidade do ganho de coragem para enfrentar feras e manadas que precisam ser caçadas. Ou a entonação de ritmos e cantos, a música primitiva, que suavizavam as tarefas a serem realizadas para se alcançar um maior conforto, mas que já nascem com essa capacidade de gerar empatia dos trabalhos comuns. Certamente, ela também está presente, mas também não se restringem a esse ganho de coragem, ou de entorpecimento há nessas manifestações um compartilhamento de uma capacidade já consciente dos mistérios da vida, da morte, da luz, das trevas, do medo, da coragem, do amor, do ódio. Enfim, uma síntese descritiva feliz dos dramas humanos diante do mundo, no qual o olhar aparece como sentido privilegiado, que nos indica ou permite conhecer melhor, nunca inteiramente mas sempre com um reconfortante sentido de progresso. Nessas representações planares começa a emergir um controle embrionário do espaço e a compreensão de sua capacidade de nos transmitir um sentido. Elementos como uma montanha, um riacho, uma árvore e uma vegetação começam a criar conjuntos, que nos conferem uma compreensão do caminho, uma legibilidade, a identidade de um lugar, que passam a ser valorados. A movimentação passa através desse patrimônio descritivo que identifica particularidades e valores a ser feita com maior segurança, mapeia-se a água, as manadas, os frutos, as ervas, os perigos e os confortos. Logo, já no neolítico emerge a vontade de interferir nesse território formulando a construção de cenários humanizados, marcas na paisagem que assinalam o cemitério das saudades dos antepassados queridos e venerados, pois a morte sempre nos relembra de nossa origem animal, cíclica e misteriosa.

"A modificação do terreno, sobre o qual o homem tem caminhado há centenas de milhar de anos é, por sua vez, rica em implicações intelectuais e emocionais. A imutabilidade da paisagem é um atributo divino, cuja lembrança sobrevive frequentemente nas tradições religiosas subsequentes. Perturbá-la não pode ser um ato desencantado, mas tem um duplo valor: de transgressão de uma ordem existente e de imposição de uma nova ordem. Assim como a referência constituinte dos objetos construídos, é a linha vertical, a referência constituinte do que está agarrado à terra é o plano horizontal. Todos os projetos devem transformar a complexidade tridimensional da superfície de apoio na simplicidade de uma série de planos horizontais, separados por paredes verticais no escarpadas inclinadas. A dialética entre planos horizontais colocados a alturas diferentes põe em evidência um principio importante para toda a história da arquitetura que se segue: as medidas em elevação - as alturas -tem um peso diferente das medidas horizontais - comprimentos e larguras - e atraem uma vez mais a força da gravidade, que dificulta os movimentos em subida e facilita os movimentos em descida. Uma pequena distância entre SO níveis em elevação origina um efeito grandioso, em comparação com as distâncias existentes no terreno plano. A arquitetura das movimentações de terras adquire assim um papel central nos novos cenários inventados pelo homem, e, sobretudo, regula a colocação das construções de todos os tipos em relação ao suporte territorial. Para qualquer construção, pode escolher-se entre três situações, mantê-la ao nível do terreno circundante, elevá-la a um nivel superior ou encaixá-la um nível inferior; para realizá-las é preciso recorrer a três operações diferentes: aplanar o terreno, juntar material para obter uma elevação, ou retirar material para obter uma escavação. Se for possível, essas três operações tornam-se complementares, de modo a compensar entre si as movimentações de terras." BENÉVOLO e ALBRECHT 2002 pág.24

Essas operações correspondem a grande maioria dos sítios arqueológicos encontrados e pesquisados hoje em dia, nas mais variadas culturas e quadrantes do planeta no neolítico, cumprindo segundo teorias recentes; formas de contar o tempo para ordenar a colheita, tais como o nascer do sol, ou o por do sol, ou o solstício de inverno, ou solstício de verão. Arranjos articulados construtivos, paisagísticos em pedras, que muitas vezes envolvem territórios extensos e variados, tais como os túmulos sepulcrais na Dinamarca, ou os menires de Carnac na França, ou Stonehenge na Inglaterra, ou o sítio arqueológico em Caçuenes no estado do Amapá no Brasil. Enfim, antes de produzir sua própria habitação o homem do neolítico desenvolve implantações paisagísticas notáveis que permanecem para nós como enigmas, que são reduzidas por nossa razão instrumental; a formas de contar o tempo.

BIBLIOGRAFIA:

BENEVOLO, Leonardo e ALBRECHT, Benno - As Origens da Arquitetura - Edições 70 Lisboa, 2002

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Duas Revoluções: Rússia e China, um livro com importantes reflexões para o nosso tempo

Manifestação na Praça da Paz Celestial, em Pequim em 1989

O livro Duas Revoluções: Rússia e China é um interessante esforço de reflexão sobre dois acontecimentos, que marcaram o nosso tempo contemporâneo de forma relevante; a Revolução Comunista de Outubro de 1917 na Rússia, e a também Comunista, Revolução Chinesa de 1949, quando o Exército Popular Chinês assume o poder. O livro tangencia a questão do espaço da cidade e da organização territorial dos países, que vem mobilizando esse blog, no entanto envolve uma questão fulcral do poder, sua representação e sua legitimidade, que possue claros impactos sob a arquitetura, o urbanismo e a gestão do território. O livro se desenvolve em quatro partes; um prefácio do economista brasileiro da Universidade de Campinas, Luiz Gonzaga Belluzo (1942-), que já se debruçou sobre o tema no seu artigo "Um conto Chinês", publicado no jornal Valor Econômico em 1/08/2017. Segue-se a ele, o texto propriamente de Perry Anderson (1938-), o marxista inglês, editor da New Left Review, que carrega o título; "Two Revolutions", publicado originalmente no número de Janeiro e Fevereiro de 2010, na mesma revista. O texto da líder chinesa nas manifestações da praça da Paz Celestial em 1989 em Pequim, Wang Chaohua (1952-), "The Party and its Sucess Story. A response to "Two Revolutions"", que é doutora em literatura chinesa pela Universidade da Califórnia de Los Angeles, membra do Institut d´Études Avancées de Nantes, e organizadora da coletânea de ensaios; "One China, many Paths" publicado pela Verso 2005. E, por último o posfácio da brasileira, Rossana Pinheiro-Machado, que é cientista social e antropóloga, professora visitante na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e é autora de "Counterfeit Itinararies in Global South" Routledge 2017. Os dois textos de Anderson e Chaohua foram publicados pela primeira na New Left Review, número 61 jan-fev.2020 ("Two Revolutions") e número 91 jan-fev.2015 ("The party and its Sucess Story"). E, a tradução de "Duas Revoluções" já foi publicada na Revista Serrote número 5 em julho de 2015. Apesar do declarado esforço de aparente comparação, entre Rússia e China, há um claro foco maior na questão chinesa, como uma economia declarada pelo menos pelo Partido Comunista Chinês como "socialista com características próprias". E, conforme afirma Wang Chaohua questionando as afirmações algo celebratórias de Perry Anderson que se declara com uma tentação da esquerda em se manter no nível do "benefício da dúvida";

"Se há tão poucas pessoas no Ocidente ainda dispostas a aceitar a afirmação como verdadeira, permanece uma tentação à esquerda de dar a ela uma espécie de benefício da dúvida, "Rumo a que horizontes está se deslocando o gigantesco junco da RPC, isso é algo que resiste ao cálculo, ao menos quando se utilizam os astrolábios ora conhecidos." - no julgamento suspenso de sua sentença final, devemos entender que Anderson compartilhe isso? Ele diz, em certo momento que a pretensão do PCC ao socialismo funciona como uma profilaxia necessária contra os ainda fortes sentimentos revolucionários de injustiça e reivindicações por igualdade entre os cidadãos chineses, que o partido não pode jgnorar completamente sob pena de perder sua legitimidade Isso, porém, não é mais que o empenho em sentido negativo. Negligencia-sc. ai. a funçáo positiva desse discurso político para a elite dominante do pais. Na Era da Reforma, a sociedade chinesa passou por um processo abrangente de mercantilização e comercialização - em todos os aspectos: da atividade econômica aos serviços sociais c à vida cultural - de que o capital financeiro, estatal ou estrangeiro, tem sido a força condutora. Agricultores operários e até pequenos emprcendedores tèm muito pouco poder para proteger seus próprios interesses diante deles. E mesmo que tentem fazè-lo, são mais frequentemente confrontados por rcpresentantes do Estado - funcionários do governo, quadros partidários, patrulhas locais (chengguan), policiais e, em casos mais sérios, as Forças Armadas - que por representantes imediatos do capital, " CHAOHUA 2018, pág.110

1. O TEXTO DO PREFÁCIO DE LUIZ GONZAGA BELLUZZO:

Enfim, os textos parecem ter um efeito promissor para confrontar um certo pensamento único da nossa sociedade, que insiste em caracterizar a República Popular da China como uma mera economia capitalista, sem especificidades próprias, sem uma visão crítica das suas diferenciações. O prefácio de Belluzo faz menção logo em seu início a interpretação de Gramsci, que mapeava a expansão espacial do capitalismo pelo mundo, a partir de um centro definido pela Inglaterra, França e Estados Unidos e destacava as particularidades nacionais, daquilo que ele denominava como a primeira borda periférica, a própria Itália e a Alemanha. Esses dois países e outros haviam por suas especificidades históricas alcançado de forma atrasada ao sistema capitalista central, determinando uma certa minoridade de suas burguesias, que se manifestava numa certa incapacidade de autonomia no seu pensar. O texto aborda em primeiro lugar a experiência soviética entendendo a Revolução de 1917 na URSS a partir da primeira guerra mundial, uma guerra entre impérios emergentes (Alemanha e EUA) e declinantes (Inglaterra e França). Belluzo, na verdade pontua a emergência dos EUA e da Alemanha no início do século XX, como potências emergentes da 2a revolução tecnológica do capitalismo, que então manifestavam sinais de grande expansão econômica. A compilação inicial de Belluzo envolve a menção, além de Gramsci, à pensadores como; Lenin, Hobson, Hilferding, Keynes, Hobsbawn, Toni Judt e Francesco Mazzucheli que destacam a crescente tendência especulativa do capitalismo liberal, que acaba por desaguar  no Crack da Bolsa de Nova York de 1929. A Rússia em 1917, elo mais fraco do ponto de vista econômico-financeiro e militar, é derrotada pelo exército alemão e obrigada a assinar o tratado de paz Brest-Litovsky, ingressando num processo revolucionário mais contundente. Belluzzo também destaca a primazia dada a indústria em detrimento da agricultura pontuando a contradição, a partir de citação de Hobsbawn, que a URSS em 1913 possuía 82% de sua população engajada em trabalhos no meio rural, enquanto apenas 7,5% estavam empregados em atividades urbanas.  Essa origens, na 1a Guerra Mundial, num perfil rural, mas também no seu desenvolvimento a ocorrência da 2a Guerra Mundial, na qual a Rússia é mais uma vez fustigada pela Alemanha, e será a grande vitoriosa do conflito derrotando o nazismo de Hitler cobra um preço, conformando o modelo soviético. Tudo isso determinou a militarização da vida soviética, elegendo o investimento de forma desproporcional na indústria pesada alimentando um complexo industrial-militar autonomizado, sem atingir uma diferenciação produtiva, que atendesse a demanda de sua população. 

"A economia soviética estava fundada na quantidade... A capacidade de produção era enorme, o problema é que não se ofereciam os produtos certos... O sistema soviético produzia cada vez mais para satisfazer cada vez menos às demandas dos consumidores. Coexistiam o excesso e a escassez." Luiz Gonzaga Belluzzo em ANDERSON 2018 pág.11 e 12

 A perestroika de Gorbachev teria de enfrentar estes problemas, apesar da grande expansão da economia soviética nos anos 1950, 1960 e 1970, nos anos 1980 inicia a estagnação e as limitações da indústria de bens de consumo, o déficit  crônico de moradias e a precariedade das condições de vida tornam-se mais aparentes. A revisão dos crimes de Stálin por Kruchev claramente apontavam a necessidade de renovação no Partido Comunista da União Soviética (PCUS), que não foi enfrentada por ele ou por Brejniev. Belluzzo aponta um confronto de duas ortodoxias dogmáticas, que determinaram o fracasso do modelo soviético, de um lado, um parque industrial-militar-espacial pesado ligado a interesses burocráticos e dogmáticos, e de outro, a também dogmática pregação do livre mercado sem amarras, dos anos 1980. No momento do fracasso da perestroika, a China experimentava as reformas de Deng Xiaoping, após as trágicas consequências sociais e econômicas do Grande Salto para a Frente e da Revolução Cultural, capitaneados por Mao Tsé Tung. Assim como a União Soviética, a República Popular da China (RPC), e também sobre os países com modelos de capitalismo de proteção social do imediato pós-guerra, para a reestruturação produtiva do neo-liberalismo. Com o primeiro choque do Petróleo, a estagflação e o endividadmento da periferia global se estabelecem como padrão, e o ideário neo-liberal irá surgir, criando as condições para ampliação da hegemonia estadounidense. Para Belluzzo, o controle das finanças identificado com a administração da taxa de câmbio e do financiamento subsidiado mostram que a China não se dobrou totalmente ao receituário neo-liberal, mostrando uma simbiose específica entre Mercado e Estado. A remuneração dos títulos públicos é discreta e controlada canalizando a voraz sede de acumulação do capital para a produção, distanciando-a das práticas rentistas. As "instituições centrais da economia competitiva moderna", como o sistema de crédito, a taxa de câmbio e o comércio exterior são canalizados para o investimento produtivo e em infraestrutura. Como afirmou Xi Jinping, num discurso em 15 de julho de 2017, confrontando o raciocínio binário do saber ocidental sempre preso ao confronto Mercado e Estado;

"A finança pertence ao coração da competitividade do país, a segurança financeira está no centro da segurança nacional e deve se constituir no fundamento do desenvolvimento econômico e social." Xi Jinping em Prefácio de Luiz Carlos Belluzzo em ANDERSON 2018, pág. 18

Ao concluir, seu prefácio Luiz Gonzaga Belluzzo faz ainda menção as economias dos países emergentes, Brasil incluso, levando nos a pensar, que passados 30 anos do Consenso de Washington e a aplicação de seu receituário neo-liberal, constituído por; desregulamentação do sistema financeiro, liberalização da taxa de juros, disciplina fiscal rígida, reforma do Estado, venda de empresas estatais representaram uma forte perda da capacidade de crescimento dessas economias. Após uma citação de Joseph Stiglitz, vice-Presidente Sênior para Políticas de Desenvolvimento do Banco Mundial, que claramente desaconselha a adoção das recomendações do Consenso de Washington, tanto pela teoria econômica, mas também pela empiria histórica da economia chinesa.

2. TEXTO DE PERRY ANDERSON: Duas revoluções: Rússia e China

O texto de Perry Anderson está dividido em 5 subtítulos; Anotações, Matrizes, Mutações, Pontos de Ruptura, e por último, O novum, que abordam as transformações nos dois países, a partir da decretação da revolução passando pelo final década de setenta, e chegando a nossa contemporaneidade. Anotações inicia-se com a afirmação de que a trajetória do século XX foi determinada pela Revolução Russa de 1917, e que provavelmente, o século XXI será conformado pela Revolução Chinesa. Logo no início do texto, Anderson questiona a ideia de "colapso do comunismo", como uma típica atitude intelectual eurocêntrica, que parece querer apagar do mundo, o imenso território da Ásia, e, que segundo ele; "o comunismo não apenas sobreviveu como se tornou a narrativa de sucesso dos tempos atuaís." ANDRESON 2018, pág.24. Na seção Matrizes, a primeira distinção construída por Anderson se refere a Guerra Civil, que assolou os dois países de forma diferenciada. Enquanto na Rússia, a revolução soviética de 1917 encontrou extensas partes de seu território sob o domínio alemão, que foi derrotada apenas em 1918, e na sequência teve de se confrontar com o Exército Branco, que era apoiado por forças expedicionárias de 10 países; estadunidense, britânica, canadense, sérvia, finlandesa, romena, turca, grega, francesa e japonesa, que se prolongou até 1920. A China, que teve seu Partido Comunista Chinês (PCC) fundado em 1921 enfrentou uma Guerra Civil de 25 anos antes da tomada do poder, envolvendo uma série de acontecimentos; em 1926 a Expedição do Norte, em 1927 o massacre dos comunistas por Chiang Kai-shek em Xangai, em 1931 o estabelecimento  do soviete de Jiangxi, de 1934-1935 a Grande Marcha do Exército Vermelho rumo a Yan'an, com a criação de regiões no nordeste governados pelo PCC, de 1937 a 1945 a frente Unida com o Kuomintang para enfrentar o invasor japonês. E, por fim a Guerra Civil de 1946 a 1949, em que o Exército Popular Chinês arrebata o país e chega ao poder em Pequim. Nessa distinção, Anderson também destaca a presença de uma vertente internacionalista na Revolução Soviética, sem qualquer menção ao orgulho patriótico da Rússia. Lenin e Trotski sempre declaravam a importância da ocorrência de revoluções em outras partes da Europa, para seu fortalecimento. Enquanto, na China o apoio recebido pelo Kuomintang de japoneses e alemães, e depois de 1945 dos britânicos e estadunidenses forjou um claro nacionalismo beneficiando o Exército Vermelho de Mao Tsé Tung.

"Após ter tomado o poder num país (a Rússia) tão vasto quanto atrasado, de economia predominantemente agrária e população em grande parte analfabeta, os bolcheviques esperavam que revoluções nas regiões europeias mais desenvolvidas e industrializadas pudessem resgatá-los da difícil posição em que se achavam, a de um comprometimento radical com o socialismo numa sociedade que não apresentava nenhum dos pressupostos de um capitalismo orgânico." ANDERSON 2018, pág.26

A partir da conceituação construída por Max Weber, de que o Estado pode ser definido como o exercício do monopólio da violência legítima sobre determinado território, Anderson distingue três tipos de revolução. A primeira seria determinada por uma paralisia do aparato de repressão, que simplesmente entrega e abandona o poder - a Revolução Iraniana. A segunda, seria o confronto entre uma insurreição violenta e o aparelho de violência do Estado, que é subjugado mediante um golpe rápido e decisivo - a Revolução Soviética de 1917. E, por último, uma progressiva conquista de territórios, quebrando em parcelas o monopólio da violência sobre algumas partes até atingir o país como um todo - as Revoluções Chinesa, Iugoslávia e Cubana, seguiram esse modelo. Por último, Anderson menciona a legitimidade das oligarquias que reinavam sobre a Rússia e a China, apontando que o declínio do czarismo se manifesta apenas no início século XX, enquanto a dinastia Qing já era odiada em emados do século XIX, por sua sujeição e corrupção às potências ocidentais. Esses fatores determinaram uma muito maior penetração do PCC, na ampla maioria da população campesina da China, condição que o PCUS nunca desfrutou. A maior legitimidade do PCUS foi alcançada sob Stálin, no período da 2a Guerra Mundial, quando a Rússia é invadida pelos nazistas, e o regime mobiliza a opinião pública em torno do patriotismo, apesar da continuada repressão dos gulags, denunciada por Kruschev. No entanto, segundo Anderson havia semelhanças e uma certa subordinação do pensamento do PCC ao PCUS; 

"O Partido chinês herdou o modelo soviético tal como ele se configurou sob Stálin, incorporando em larga medida a mesma disciplina monolítica, a mesma estrutura e os mesmos hábitos de comando autoritários. Em termos organizacionais e ideológicos, o Estado criado por ele no início da década de 1950 assemelhava-se bastante ao soviético. Mais que isso: no desenrolar do processo, o governo comunista infligiria à China duas convulsões sociais equivalentes as soviéticas. Uma vez que as raizes do Partido estavam no campo, onde, de modo geral, os trabalhadores rurais mantiveram sua confiança nos líderes, o PCC foi capaz de promover a coletivização rápida e integral das fazendas poucos anos
após as primeiras redistribuições de terras, sem incorrer na calamidade sucedida na Rússia. Em 1958, porém, decidido a acelerar o ritmo do desenvolvimento, o Partido lançou o Grande Salto para a Frente, criando comunas populares que deveriam tanto instalar indústrias de fundo de quintal quanto prover cotas muito mais elevadas de grãos, O desvio da mão de obra para fornos siderúrgicos caseiros e o baixo rendimento da safra, provocado pelo mau tempo, resultaram no pior surto de fome do século, o qual causou a morte de pelo menos 15 milhões de pessoas - talvez 30 milhões. Oito anos depois, a Revolução Cultural ceifou as fileiras do próprio Partido, dizimando seus quadros em uma série de expurgos que, como na Rússia, se exacerbaram rapidamente. Ao que tudo indicava, como se
se arrebatada por uma inexorável dinâmica comum, a RPC tinha reproduzido os dois piores cataclismos da história da URSS. Todavia, por mais estranhas que pareçam as similitudes, a matriz diversa da Revolução Chinesa acabou prevalecendo. Se o número de vitimas no campo em relação à população total foi provavelmente comparável, os mecanismos do processo e suas consequências diferiram." ANDERSON 2018, pág.32

Na seção Mutações, Anderson relembra o espaço de tempo entre a Revolução Soviética de 1917 e a Chinesa de 1949, um intervalo de trinta anos, que de certa forma garantiu ao PCC uma antevisão contra alguns aspectos da implantação do novo regime. É mencionado, que uma das principais motivações da Revolução Cultural de Mao era se precaver contra a casta de burocratas congelados da burocracia, que levavam a "URSS pós-stalinista para uma sociedade de classes indistinguivel da capitalista." ANDERSON 2018, pág.33. Na década de 60, Khruschov foi deposto sem cogitar qualquer mudança no sistema econômico, apesar das denúncias contra Stálin e o desmantelamento da máquina do terror, a URSS mantinha seu crescimento e o status de segunda potência na Guerra Fria. A burocracia soviética se acomodou nos vinte anos de Brejniev, com um estoque crescente de armamentos e os impulsos a indústria pesada, com a população sem acesso a bens variados. A pressão determinada pela Guerra Fria determinava na URSS o desvio de uma vultosa quantia do PIB para gastos militares e espaciais, "a glásnost e a perestroika", termos usados de modo fortuito por Lenin voltam a baila. Gorbachov (1931-2022) apenas entra em cena em 1985, enquanto Deng Xiaoping (1904-1997) assume a direção da China em 1978 permanecendo no poder até 1992 iniciando por rearrumar o país após a Revolução Cultural. A China, portanto, sete anos antes inicia as reformas econômicas, com um PIB per capita 14 vezes menor que o da URSS, e com uma população de 70% empregada na agricultura, contra apenas 14% na União Soviética. Anderson destaca que o sistema chinês de poder apresentava-se muito mais descentralizado que o soviético, apesar que a diferença entre qualidade de vida no campo e na cidade na China era muito pior do que na URSS. A China apresentava algumas vantagens negativas, que possibilitavam maiores mudanças, como; o ônus mais leve de sua indústria pesada e obsoleta, um campesinato precarizado sedento por mudanças, que havia durante o Grande Salto para Frente de Mao fora impedido de migrar para as cidades, a presença de Taiwan e da diáspora chinesa, que nos anos 70 e 80 apresentara grande desenvolvimento, assim como o Japão. Deng, que possuía uma trajetória de perseguição por parte do grupo de Mao, era um dos membros heroicos da Grande Marcha de 1937 a 1945, mas que fora chamado de volta, articulando no interior do PCC, o intocável grupo dos "Oito Imortais", e irá desde o início mostrar uma compreensão aguda de seu tempo;

"Hoje, o mundo assiste a um progresso galopante, uma milha a cada minuto, principalmente em ciência e tecnologia. mal conseguimos acompanhar o ritmo... não seria possível nenhum desenvolvimento econômico, nenhum aumento de padrão de vida, nenhum fortalecimento do país." Deng Xiaoping citado em ANDERSON, 2018 pág.47

Anderson ainda destaca os dois contextos, a Europa e o Oriente, eram bem diversos, no que se refere ao desenvolvimento econômico e tecnológico. A Comunidade Econômica Europeia durante os anos 1970 e 1980 atravessava um longo período de declínio, enquanto no Extremo Oriente, o Japão quebrava todos os recordes de crescimento desde a década de 1950. A Coreia do Sul assistia a um vertiginoso crescimento industrial, e ainda pior para o gigante continental da China, Taiwan, nas suas bordas e carregando parcela da diáspora chinesa, não ficava atrás. Culturalmente a Rússia tinha uma estranha tradição messiânica, que variava entre um ocidentalismo com complexo de subalternidade ou uma visão do país como uma nova Roma, redentora dos eslavos e liberta do materialismo ocidental. Lenin, Trotsky e algumas lideranças da Revolução Soviética propunham a superação do atraso mais tradicional do país, superando a mera imitação do desenvolvimento capitalista ocidental, por uma crítica radical, internacionalista e humanista. Sob Stálin, com a 2a Guerra Mundial diante da invasão do exército nazista há um retorno a um nacionalismo retrógrado, evocando a "Grande Rússia". Com Khruschov retoma-se um alento internacionalista, que logo é esquecido no período Brejniev por uma desesperança fria e burocrática. Na perestroika, retoma-se a veneração pelo ocidente com um certo complexo de rebaixamento, diante da consciência imutável da imensidão e atraso da Rússia. Na China, o cenário é bem diferente, o antigo Império do Meio havia sido uma das nações mais poderosas do Extremo Oriente, onde a filosofia de Confúcio fundava uma celebração mista da tradição e da autoridade de uma cultura milenar. Sua vocação imperialista era um fato histórico atestado pela constante ampliação dos domínios até o século XVIII, chegando até a Ásia Central. Conforme Anderson; "A China era o centro da civilização e seu apogeu natural." ANDERSON 2018, pág.40. Ainda no século XIX, com a ruína da dinastia Qing houve o alerta dos literatos que eram a mola mestra da administração imperial, pois tornava-se cada vez mais claro a cooptação das oligarquias pelos interesses do Império Britânico. O movimento do Quatro de Maio em 1919, que se aglutinou em torno dos protestos estudantis, se rebelou contra as exigências do Japão e do Tratado de Versalhes. Os intelectuais se rebelaram contra o cânone confuciano, que regera a ordem sócio política da China desde da dinastia Han (206 a.C. a 220 d. C.), a insatisfação com a tradição e a autoridade como geradoras de um comportamento subserviente e autocrático. Anderson contrasta as diferentes atitudes diante das mutações impulsionadas pela perestroika na URSS, e pelo realinhamento da China;

"O grau de convicção intima inicialmente com que o senado de anciãos revolucionários (Oito Imortais) atacou os problemas em seu caminho manifestou-se inicialmente na mesma maneira como lidaram com o passado e o futuro do Partido. Na Rússia, a desestalinizacão tinha sido a espetacular porém sub-reptícia façanha de um único líder, Khruschov, que surpreendeu o XX Congresso de seu partido com um discurso - sobre o qual não consultara ninguém - denunciando os crimes de Stálin. Emocional e anedótica sem maiores explicações de como as repressões relatadas seletivamente tinham sido possíveis que não o vazio eufemismo burocrático "culto da personalidade", a divagadora arenga de Khruschov nunca foi publicada oficialmente nem complementada por documentos e análises mais substanciais por parte da liderança daquela época ou das seguintes, até os tempos da perestroika. 

Deng e seus colegas procederam de modo muito diferente. Convocaram cerca 4 mil funcionários e historiadores do Partido para elaborar um retrospecto da Revolucão Cultural, e, com base nas discussões então mantidas, um grupo de vinte a quarenta redatores produziu, sob a supervisão de Deng, um documento-síntese de 35 mil palavras que foi formalmente adotado como resolução pelo Comite Central do PCC em junho de 1981. Embora certamente não fosse um relato pormenorizado da \Revolução Cultural - qualificava a responsabilidade de Mao como "ampla pela escala e prolongada pela duração", mas restringia as vítimas das repressões ao Partido, omitindo-se quanto à população - o documento oferecia uma explicação coerente dos acontecimentos, além dos desmandos de poder de um único homem: as tradições peculiares de um partido cujo caminho para o poder o tornara afeito à luta de classes irredutível, como se esta fosse uma tarefa permanente; os efeitos de distorção do conflito com a URSS alimentando temores de revisionismo; e por último, mas não menos importante, "a perniciosa influência ideológica e política de séculos de autocracia feudal." Ao contrário do libelo acusatório de Khruschov, a resolução admitia a responsabilidade conjunta do Comitê Central nas gestões do moderno autocrata e não procurava de modo algum diminuir sua contribuição para a Revolução Chinesa como um todo." ANDERSON, 2018 pág. 51 e 52

Por último, ainda na seção Mutações, Anderson destaca o papel de duas estruturas econômicas concebidas pela Revolução Chinesa para as reformas; a Township and Villages Enterprise (TVEs), algo como Empresas de Povoados e Aldeias, que eram organismos com estatutos híbridos, empresas estatais, coletivas e privadas, que se beneficiavam de impostos baixos e financiamento subsidiado estruturadas a partir das antigas cooperativas campesinas. No final da década de 1980 tinham grande capilaridade no território da China, a relação mão de obra/capital fixo nas TVEs era nove vezes maior do que as empresas estatais. O outro mecanismo foram as Zonas Econômicas Especiais (ZEEs), que iniciaram em 1979-1980, e desenvolviam suas atividades na zona costeira do sul, interessadas em atrair investidores da diáspora chinesa dos expatriados de Hong Kong, Taiwan e do Sudeste Asiático. Eram uma política de ocupação e gestão do território, garantindo Portas Abertas para empresários estrangeiros, inicialmente expatriados e depois generalizados entre todos os países, que se beneficiavam da mão de obra barata e de incentivos fiscais. As ZEEs se especializaram em eletrônica e eletrodomésticos, e assim com as TVEs mostravam a nova face descentralizada da República popular da China.

"Isso significou que o império do planejamento a remodelar seria muito menor, sem uma rígida parafernália de cotas e diretrizes, contava com uma rede de centros autônomos de atividade econômica nas províncias. Quando estas se libertaram ainda mais da intervenção de Pequim, seus governos entraram com força total, oferecendo todo tipo de incentivos para aumentar os investimentos acelerar o
em suas jurisdições. A certa altura, isso acabou provocando uma série de distorções e irracionalidades: duplicação de indústrias, gigantismo na consecução de obras públicas, alastramento do protecionismo informal, para não falar do enfraquecimento da capacidade de fiscalização do governo central, uma vez que as autoridades locais passaram a competir entre si por melhores resultados. Contudo, apesar de todas suas aberrações, a concorrência interprovincial na China, tal como a rivalidade entre as cidades italianas no passado, foi e continua a ser uma fonte de vitalidade econômica. A Rússia é hoje nominalmente uma federação; no entanto, suas vastas e uniformes planícies nunca favoreceram a criação de fortes identidades regionais e seu governo continua centralizado como nunca. O contraste com a China é notável. A República Popular da atualidade é não em matéria de direito constitucional, mas de realidade comercial, um exemplo rematado de federalismo dinâmico, tanto quanto os Estados Unidos." ANDERSON 2018, pág.55 

As duas últimas seções do texto de Anderson, Pontos de Ruptura e O Novum lançam hipóteses a respeito do futuro da República Popular da China como potência emergente, na qual as relações entre Estado, Partido, Sociedade e Iniciativas Empresariais são problematizadas muito além de uma dicotomia simplificadora. Na seção, Pontos de Ruptura, Anderson destaca uma argumentação de Deng, que distensionava a dualidade dos termos capitalismo e socialismo, sugerindo a retirada das letras maiúsculas das duas palavras. Ao mesmo tempo, em maio de 1989, Deng declarava;

"Há, é claro, aqueles que pensam que 'reforma' significa um movimento em direção ao liberalismo ou ao capitalismo. O capitalismo é a essência da reforma para eles, mas não para nós. Aquilo que nós entendemos por reforma é algo diverso, que ainda está sendo debatido." ANDERSON 2018, pág.62

Na seção O Novum, que fecha seu texto, Anderson após reforçar os fatores da presença de uma civilização avançada ligada ao imenso desenvolvimento atual da China, lança três hipótese de pensamento, que imaginam seu futuro a partir de diversificados pressupostos . A primeira, que seria a mais em voga entre historiadores, que atribui o acelerado crescimento econômico da RPC essencialmente aos legados milenares do passado imperial, que abrigavam a economia maior e mais sofisticada do mundo. A segunda, mais influente entre economistas aponta que a proteção e o isolamento continuado da China da economia global de meados dos anos 50 até os 80 gerou um imenso território aberto e disponível para a integração tardia ao sistema capitalista global, com grande ferocidade. E, uma terceira corrente encontrada mais recorrentemente entre sociólogos identifica a chave para o crescimento chinês na própria característica da Revolução Chinesa, que produziu um Estado soberano, forte e cioso de suas responsabilidades, livre da sujeição colonial. Provavelmente a razão não está em nenhuma dessas hipóteses de forma isolada, mas no seu conjunto de forças e determinações, que fizeram da RPC um fenômeno notável em nossa contemporaneidade. Andreson oferece inclusive uma bibliografia de autores, que se alinham entre as três correntes; na primeira, POMERANZ, Kenneth - The Great Divergence: Europe, China and the Making of the Modern World Economy - Princepton Press New Heaven 2000, ARRIGHI, Giovanni (org.), particularmente KAORU, Sugihara - The East Asian path of Economic Development: A Long Term Perspective e ARRIGHI, Giovanni - The Resurgence os East Asia: 500, 150 and 50 Year Perspectives - Routlege, Londres 2003. Para uma ilustração da segunda corrente; ROWHER, Jim - When China Wakes - Relatório especial de The Economist, 28 nov. 1992. E, por último para a terceira tese; BRAMALL, Cris - Sources of Chinese Economic Growth 1978-1996 - Oxford University Press, Oxford 2000 e CHUN, Li - The Transformation of Chinese Socialism - NC Duke University Press, Durham 2006

3. TEXTO DE WANG CHAOHUA: The Party and its Sucess Story. A Response to 'Two Revolutions'

Segundo Chaohua, o texto de Anderson usa o caso da URSS como espelho para o caso da China, fazendo uma série de assimetrias determinadas pelo fracasso da experiência da Rússia e o sucesso da República Popular da China. O tom do texto de Wang Chaohua é bem menos celebratório do que o de Perry Anderson, afinal trata-se de uma exilada da China, radicada em Los Angeles na Califórnia desde 1990, por ter participado das manifestações da Praça da Paz Celestial, com outros estudantes de abril a junho de 1989, movimento que foi duramente reprimido. Chaohua permaneceu quase um ano como clandestina na China, como uma das líderes mais procurada do movimento, seu texto foi publicado 5 anos após o texto de Anderson, na New Left Review, número 91, Jan.-Fev. 2015. O centro de sua crítica ao texto de Anderson se baseia em sua desconsideração do papel desempenhado pelo PCC na Era das Reformas, "e até mesmo sua completa supressão, mais notoriamente no massacre da Praça da Paz Celestial, que moldaram o caminho específico da ascensão da China na economia mundial." Wang Chaohua em ANDERSON, 2018, ´pag.75 O texto de Wang Chaohua está subdivido em cinco subtítulos; o primeiro; ""Duas Revoluções" - Wang Chaohua", no qual há essas considerações a respeito das limitações do texto de Anderson, por desconsiderar o PCC e o massacre da paz Celestial. O segundo é "Anatomia da revolução", o terceiro é "Caminhos para a reforma", o quarto; "Praça da Paz Celestial: antes e depois", e o quinto: "O Milagre econômico". 

A seção; "Anatomia da revolução" inaugura chamando a atenção para a desconsideração de qualquer menção por parte de Anderson as duas derrubadas dos regimes imperiais; na Rússia, a Revolução de Fevereiro de 1917, que destituiu o tzarismo, e na China a Revolução Republicana de 1911, que destituiu a Dinastia Qing. Há a demonstração de um certo desdém pela apropriação do marxismo leninismo por parte das lideranças chinesas, na menção ao representante do Kuomitang Sun Yat-sen. A ausência de menção no texto de Anderson do intelectual e filósofo chinês Kang Yowei, na questão da "Grande Harmonia", que teria papel importante na superação do pensamento de Confucio soa condenatória. Esse posicionamento desemboca numa interpretação de que o pensamento e as posições de Mao Tsé Tung não eram tão sofisticadas quanto as do bolchevismo, apontando que tanto O Grande Salto para a Frente, decretado 10 anos após a conquista do poder, quanto a Revolução Cultural, que a sucedeu representavam uma "tentativa ilusória de emular o desenvolvimento industrial do Reino Unido e dos Estados Unidos, ..." Essa atitude desemboca na identificação de uma certa auto suficiência da China, que não se interessava nem pela mobilização social, bem como pela construção da igualdade e da abundância econômica, que pode ser derivada das reflexões a respeito do "Socialismo de Guerra".

"A guerra de guerrilhas de base camponesa contra os governos coloniais ou os tiranos domésticos se tornaria a marca registrada das rebeliões maoistas em todo o mundo, rompendo os límites teóricos estabelecidos do movimento comunista internacional. A abordagem teve, porém, suas desvantagens. Uma vez estabelecida a RPC, a primeira geração de lideres e quadros do PCC esteve sempre atenta à sociedade rural, embora isso não signifique que eles a protegessem socialmente, A zona rural foi sistematicamente explorada para o desenvolvimento industrial, e deu-se pouca atenção efetiva aos desafios de transformar a vasta população camponesa da China em uma classe trabalhadora urbana. Nem a análise econômica do capitalismo moderno e suas contradições internas, nem o inescapavelmente longo e sinuoso caminho da mobilização social imediata para um futuro definitivo de
igualdade e abundância figuraram entre as principais preocupações de Mao depois que o PCC assumiu o poder. Ao fim da primeira década da RPC, ele lançou pais no Grande Salto para a Frente uma tentativa ilusória de emular o desenvolvimento industrial. do Reino Unido e dos Estados Unidos, buscando as cegas conduzir a China diretamente ao comunismo por meio apenas de seus próprios esforços. Nos últimos anos de sua vida, ele levou ao extremo o culto à autossuficiência, na Revolução Cultural, organizando a sociedade chinesa em unidades protomilitares e concebendo a igualdade social em um espirito mais próximo de um nivelamento primitivo, pré-capitalista, que de um comunismo avançado, pós-industrial. Foi como se fracasso do Grande Salto para Frente tivesse desiludido Mao da ideia de alcançar seus objetivos por meio do desenvolvimento econômico. Com a. Revolução Cultural, ele desviou sua imaginação utópica do materialismo histórico, em uma direção que era o completo oposto de tudo o que é moderno. Suas visões do futuro, se comparadas ao legado dos debates bolcheviques, eram inferiores em termos de qualidade intelectual, e os experimentos aos quais elas levaram foram desastrosos em sua conclusão." Wang Chaohua em ANDERSON 2018, pág.79

De forma algo contraditória com essa passagem acima, Wang Chaohua menciona a ocorrência de um certo hegemonismo soviético, não mencionado por Anderson, muito claro na redução dos satélites soviéticos depois da 2a Guerra Mundial, nas sucessivas intervenções na Hungria e na Tchecoslováquia, onde a repressão ficou clara. A menção aos casos de tentativa de tutela, tanto da Iugoslávia por Stálin, quanto da própria China na época de Kruschov, que desembocarão na cisão sino-soviética da década de 1960 e se manifestariam nas tendências auto declaradas de maoismo de alguns movimentos de esquerda no ocidente. Realmente, a teoria da guerra de guerrilhas fez a cabeça de amplas parcelas da esquerda ocidental e oriental, em Cuba e no Vietnam, e também nos movimentos de libertação da África Portuguesa. Apesar desse posicionamento, Wang Chaohua afirma que a RPC evitou empunhar abertamente essa bandeira maoista nos seus movimentos internacionais, demonstrando para ela a estratificação entre Estado e Partido, que está no cerne de seu questionamento. Ainda nessa questão há uma menção interessante à redemocratização "bem sucedida" dos anos 1980, no Brasil e na Coreia do Sul, que segundo Chaohua se basearam em ondas de greve de grande escala Wang Chaohua em ANDERSON, 2018, pág.82. Na entrevista de Wang Chaohua no jornal O Globo de 03/06/2019 há uma menção clara e celebratória do movimento sindical da Polônia, o Solidariedade, que foi cogitado como hipótese para nomear o movimento dos estudantes na Praça da Paz Celestial em 1989.

"Quando formamos a primeira organização estudantil não oficial, no campus da Universidade de Pequim, sugeriram que poderíamos nos chamar Solidariedade Chinesa. Logo pensamos que isso poderia ser provocativo demais, e decidimos nos chamar só União Autônoma." Wang Chaohua em entrevista ao jornal O Globo de 03/06/2019, acesso em 12/01/2024 https://oglobo.globo.com/

Na seção "Caminhos para a reforma", Chaohua inicia com a crítica a Anderson pela ausência de qualquer crítica a Revolução Cultural de Mao, que é comparada aos expurgos e perseguições de Stálin, para ela havia uma "utopia primitivista em Mao" ANDERSON 2018, pág.86. Wang também menciona manifestações estudantis precursoras, ainda em 1976, na mesma Praça da Paz Celestial, que se colocavam frontalmente contra o grupo de Mao, o Bando dos Quatro, e lamentavam a morte de Zhou Enlai (1898-1976) e expressavam apoio a Deng Xiaoping, que havia sido posto no ostracismo pela Revolução Cultural. A figura de Zhou Enlai, as vezes grafado como Xu Enlai é bastante interessante, pois foi ministro das Relações Exteriores de Mao, e muitas vezes se colocou contra os excessos da Revolução Cultural. Zhou Enlai será o articulador da visita de Richard Nixon em 1972 à China, e por seu aberto confronto dentro do PCC ao Bando dos Quatro, seu funeral será o mobilizador das manifestações precursoras de 1976. O fato é que em 1976, Deng Xiaoping toma o poder destituindo o Bando dos Quatro inicia o período das reformas, e intensifica a repressão isolando o Muro da Democracia e prendendo Wei Jingsberg, formulador de um manifesto em nome dos Direitos Humanos, que será continuamente perseguido pelo regime. Há uma menção elucidativa a um discurso de Deng, cujo o título "Libertar o pensamento, buscar a verdade, unir e olhar à frente" é um claro sintoma desses tempos. No fechamento da seção, Wang Chaohua volta ao paralelo entre Stálin e Mao Tsé Tung, denunciando que a visão de Anderson, na sua comparação entre Khruschov e Deng como os revisores dos crimes de ambos, mostrando que o dirigente soviético teve um posicionamento isolado, enquanto Deng submeteu suas denúncias ao conjunto do PCC deve ser relativizada. Pois, as conclusões com relação ao Mao permanecerão vagas e arbitrárias, "de que Mao era 70% grande revolucionário e 30% déspota errático." ANDERSON, 2018, pág.90. Na última parte, há uma menção a invenção de um perigo por parte de Deng Xiaoping vindo do Vietnam em 1979, numa manobra típica de poderes autocráticos para forjar o "unir-se e olhar para frente". Além disso, o movimento marca também a ascensão de uma lógica típica das grandes potências, por parte da China, que não admitem ingerências de outras potências em suas áreas de influência, afinal o Vietnam tinha apoio da URSS, de certa forma enfraquecendo o apelo da China aos movimentos de libertação periféricos.

"Em alguma medida, principalmente fora das grandes cidades, o governo foi bem-sucedido em controlar a memória dos eventos na praça e da repressão que impôs. Mas o próprio governo esteve sob pressão, em todos estes anos, para esconder os episódios, porque havia, até mesmo no partido, a impressão de que era errado usar as Forças Armadas para reprimir revoltas internas. O governo, a princípio, chamou os eventos de "rebelião contrarrevolucionária". Depois mudaram apenas para "rebelião". Em seguida passaram a chamar de "lamentáveis infortúnios". Há outras questões. See aqueles episódios continuam a ser vistos como uma vitória do partido sobre seus inimigos, não deveriam ser comemorados? Alguns membros do Exército morreram, então deveriam homenageá-los todos os anos. Mas sempre temeram fazer isso. Também tiveram muito medo de que o aniversário servisse como lembrança para os atuais estudantes. Por conta disso, começaram a reprimir estudantes ativistas. Desde o ano passado, movimentos e grupos de estudantes marxistas que apoiam trabalhadores foram reprimidos." Wang Chaohua em entrevista ao jornal O Globo de 03/06/2019, acesso em 12/01/2024 https://oglobo.globo.com/

Na seção com título, "Praça da Paz Celestial: antes e depois" Wang Chaohua lança dúvidas sobre as verdadeiras habilidades dos Oito Anciãos, que são celebrados no texto de Anderson, apresentando uma série de argumentos que mostram uma luta franca pelo poder no seio do PCC. A habilidade do grupo de Deng foi no sentido de se obter legitimidade para o PCC a qualquer custo, e contrariar frontalmente as manifestações e interesses do povo chinês. Há uma interessante distinção entre democracia socialista e democracia popular, onde se menciona a variedade de formas de propriedade, o usufruto de meios de produção e o direito a administração do próprio Estado, sem qualquer menção a questão da igualdade. A incapacidade do grupo dos Oito Anciãos é apontada principalmente no caso da sucessão de Mao Tsé Tung, que desde a morte do grande timoneiro até 1989 viu a remoção de três grandes líderes; Hua Guofeng (1976-1981), Hu Yaobang (1981-1987) e Zhao Ziyang (1987-1989). A partir dessa instabilidade o poder se concentra na China, passando o chefe do PCC a ser simultaneamente chefe de Estado e comandante supremo das Forças Armadas, que será feito com; Jiang Zemin (1989-2002), Hu Jintao (2002-2012) e Xi Jiping (desde de 2012). Outra questão apontada por Wang Chaohua é a troca imposta desde o tempo de Deng Xiaoping, de que o desenvolvimento econômico não era contemplado se houvesse questionamento político. As reformas conservadoras se ampliaram; a família e não mais a Comuna passou a ser a unidade básica de produção agrícola e a propriedade rural foi lançada em grande indefinição. Para Wang Chaohua, o Massacre da praça da Paz Celestial abriu o caminho da integração da China a economia global capitalista, a partir do discurso de que a turbulência social dificultava esse desenvolvimento. O editorial do jornal Diário do Povo de 26 de abril de 1989 é usado como comprovação, cujo o título foi; "Devemos nos opor resolutamente à turbulência.", que usava inclusive argumentos contrários aos dias da Revolução Cultural de Mao.

"Anderson, no entanto, está errado em pensar que, depois de 1989, o crescimento se tornou a única ideologia justificadora do PCC. O crescimento econômico deu conta de apenas metade da legitimidade necessária ao Partido. A outra metade veio de uma extensão do que se tornara uma palavra de ordem para Deng desde o evento da praça da Paz Celestial. O PCC explicaria incessantemente que pré-requisito do desenvolvimento econômico era a "estabilidade" política contra uma suposta "turbulência" ao estilo da Revolução Cultural, expressa no protesto da praça. O sufocamento de manifestações políticas era o preço necessário ao governo caso se quisesse que ele promovesse crescimento econômico. "O ponto-chave é a estabilidade" tornou-se o refrão oficial - "manter a estabilidade a todo custo" e eliminar os elementos de instabilidade no estágio embrionário" tornaram-se diretivas permanentes. No novo século, esse imperativo foi institucionalizado com a consolidação de "órgãos para manutenção da estabilidade" por meio do aparato estatal, com orçamentos e equipes amplamente aumentados, agora acompanhados por programas "antiterroristas" que visavam às regiões étnicas não Han." Wang Chaohua em ANDERSON 2018, pág.102

Ao final, na última seção do texto de Wang Chaohua, "O Milagre Econômico" é lembrado de que a União Soviética deixou de existir a partir de 1991, e que a Rússia pós soviética pode ter algo para ensinar a China, de que a perestroika se centrava em reformas políticas em detrimento da economia. A autora destaca casos recorrentes de corrupção, que para ela se tornaram endêmicas, e são decorrentes da financeirização do patrimônio público, que envolveram; o desvio de fundos de pensão para empreendimentos imobiliários em 2006 por parte de Chen Liangyu, chefe do PCC em Xangai. E, a prisão do ministro das ferrovias, Liu Zhijun, em 2011 por uma gigantesca fraude na fiscalização do sistema de trens de alta velocidade. Mesmo o destaque dado as Towns, Villages Enterprise (TVEs), dado no texto de Anderson são questionadas, apontando seu abandono no final da década de 1990 pela influência da ideologia neo liberal na China. Wang Chaohua aponta que não são apenas empresas particulares que são privilegiadas, mas os aparatos estatais, como empresas estatais e burocratas do Partido. Ela ainda destaca numa citação de pé de página, um outro texto de Anderson, onde esse autor denunciava uma certa síndrome de celebração do modelo chinês nas esquerdas, num texto de 2010, portanto contemporâneo a "Two Revolutions", denominado "Sinomania". Por fim Wang Chaohua sublinha;

"Essas instâncias burocráticas agem em nome não do capitalismo, mas do socialismo - ou de sua lustrosa forma modernizada, uma "sociedade harmoniosa". Se aldeões forem despejados de suas casas por barragens no Yang-tsé, ou pastores forem tirados de seus pastos na Mongólia Interior, isso se dará pela causa do bem maior "socialista". Aqui reside a utilidade positiva do discurso do "socialismo com características chinesas" em mascarar o oposto dos princípios que supostamente defende." Wang Chaohua em ANDERSON 2018, pág.110

4. POSFÁCIO DE ROSANA PINHEIRO-MACHADO: Rumo e Repressão

Por último, chegamos ao texto de Rosana Pinheiro-Machado, professora visitante da Universidade Federal de Santa Maria no Rio Grande do Sul, que não é uma estudiosa da China, mas ligada a estudos do Sul Global, e que nos contempla com uma excelente análise. Retomando questões de relevância para nosso contexto de época e da nossa realidade sobre as questões levantadas pelos dois textos de Anderson e Wang Chaohua, com grande sensibilidade. A começar pela importante menção a biografia de Deng Xiaoping de VOGEL, Ezra - Deng Xiaoping and the Transformation of China - Cambridge, Belknap Harvard 2011, que me parece pessoa central para compreender as contradições entre desenvolvimento econômico e liberdades políticas. Um debate, central para o Brasil contemporâneo, onde emergem desmemoriados irresponsáveis do pensamento conservador celebrando a Ditadura Militar instalada no país em 1964, e só superada em 1988 com a Constituição Federal. Nessa questão, um texto fundamental, ainda de 1980 é o de Carlos Nelson Coutinho - A democracia como valor Universal - Revista da Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1980, inclusive para a esquerda que sempre se aproximou de experiências autoritárias. Mas acho que Rosana Pinheiro-Machado mapeia corretamente as origens autoritárias do regime chinês, num dilema típico do país "frequentemente atualizado em poemas e óperas... de que a felicidade só é alcançada à custa de grande sofrimento." Rosana Pinheiro-Machado em ANDERSON 2018, pág.113. Sua reflexão parte de uma questão fundamental, pensando a legitimação histórica a partir da ideia de "rumo", que apesar de ser a justificativa social da repressão, segundo ela, "não está no centro da filosofia política chinesa" pág.114. Apesar disto, a autora relativiza a ideia presente, tanto no texto de Anderson, bem como no de Wang Chaohua, de que existiria uma perspectiva atemporal e culturalista, na China, contrapondo que a ideia de "cultura é também hegemonia". A partir da menção ao confucionismo, a autora constrói a ideia fundamental de uma ética particular da China, como uma analogia ou paralelismo ao que seria a cultura judaica-cristã para o Ocidente. De certa forma, um meio naturalizado, que vem demonstrando grande capacidade de flexibilidade e adaptabilidade, que se introjetam nos indivíduos independente de sua aceitação ou rejeição dos seus legados específicos. Há uma menção a dinastia Zhou oriental (771-256 a.C), que nos remete a um tempo contemporãneo a Grécia clássica, onde se destacam; o confucionismo, o taoísmo e o legalismo. Algo, que segundo a autora, vincula fortemente regimes autocráticos e a ocorrência de prosperidade chinesa, nas eras imperiais e imperialistas do Império do Meio, um discurso que valoriza a harmonia, a hierarquia, a autoridade e a paz, a partir de um certo punitivismo baseado no uso legítimo da força. Uma certa celebração do mundo tal qual ele é, em contraposição a celebração da mudança, que "nortearia a filosofia política das democracias ocidentais." pág.115 conviventes com a instabilidade e a insegurança. A questão é complexa e deve ser contrabalançada, com sua partida ou premissa de que a ideia de cultura, ou de sua descrição, é também hegemonia, e portanto, envolve as complexas relações de dominação do "outro", ou do "exótico". Talvez, mais uma indicação de leitura me parece fundamental para contrabalançar o raciocínio da autora, a partir do livro de SAID, Edward W. - Orientalismo; o oriente como invenção do ocidente - Companhia das Letras, São Paulo 2007. Mas, voltando a Rosana Pinheiro-Machado;

"O código de "pesos e medidas" da era Qin (221-206 a.C.), que previa punições e torturas específicas para cada tipo de má conduta, foi usado e reelaborado por diversos imperadores que governaram a
China nos séculos subsequentes, sendo considerado um legado fundamental para a formação da militarização e centralização chinesa. A era Ming (1368-1644) exemplifica o funcionamento do imperialismo chinês: produziu obras magníficas, como a Cidade Proibida e a atual Grande Muralha; queimou livros antigos; gerou releituras confucionistas voltadas para a harmonia e a paz; aplicou
um código de punição semelhante ao da era Qin; promoveu o abuso dos monarcas, que banalizaram a tortura e executaram dezenas de milhares de eunucos; e, por fim, expandiu fronteiras.
Uma das lições que os lideres políticos chineses há muito aprenderam sobre governança, é que leis punitivistas e grandes exércitos não sustentam um império: também é preciso ter valores e virtudes
fortes no primeiro plano. No longo curso, entre ondas de rupturas e crises, a história oficial chinesa, escrita por oficiais mandarins, manteve a atenção no confucionismo, na fraqueza das leis e na importância atribuída à autoridade para que o Reino do Meio alcance não apenas a harmonia social, mas também a grandiosidade." Rosana Pinheiro-Machado em Anderson 2018, PÁG.116

Por último destaco uma categoria importante no texto de Rosana Pinheiro-Machado, dentre outras, a ideia contida na palavra chinesa Xiaokang, um termo segundo ela mobilizado de Mêncio a Mao e que se refere a confôrto econômico, presente na "Grande Harmonia"  de Confúcio, algo entre o mandato celestial dos governantes e o bem estar da população em geral. Uma questão central para o poder, sua representatividade e legitimidade, algo que está no cerne do conceito de subalternidade das massas populares e a delegação de poder. Portanto, intrinsecamente ligado a arquitetura, urbanismo, território e sua capacidade de representar e espelhar o poder. Termino aqui com uma citação da autora numa entrevista ao portal UOL;

"A luta por reconhecimento das minorias, no Brasil, só ganhou centralidade nos últimos anos. Grande parte da população vive ainda uma tensão com sua identidade, dividida entre o papel de oprimido e o desejo entre ser parte do lado opressor. Fruto da colonização, há também uma luta constante para ser/parecer da elite. Isso explica porque tantos pobres, negros, mulheres e LGBTs apoiaram Bolsonaro.... - Entrevista Rosana Pinheiro-Machado - É impossivel separar bolsonarismo do antifeminismo diz antropologa - em https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/03/01/, acesso em 15/01/2024

BIBLIOGRAFIA:

ANDERSON, Perry - Duas Revoluções: Russia e China; com textos de Wang Chaohua, Luiz Gonzaga Belluzo e Rossana Pinheiro-Machado - São Paulo, Boitempo, 2018

Entrevista Rosana Pinheiro-Machado - É impossivel separar bolsonarismo do antifeminismo diz antropóloga - em https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/03/01/, acesso em 15/01/2024

Entrevista com Wang Chaohua; "Trinta anos depois, líder estudantil chinesa vê Massacre da Praça da Paz Celestial como 'uma ferida da História'"jornal O Globo de 03/06/2019, acesso em 12/01/2024 https://oglobo.globo.com/