segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Lukács e a Arquitetura, um livro de Juarez Duayer

Livro Lukács e a arquitetura de Juarez
Duayer

Georg Lukács (1885 - 1971) é um dos mais importantes filósofos, crítico literário e historiador do século XX, sua obra possui um caráter complexo, que de certa forma espelha os movimentos históricos de seu tempo, o século XX, na sua vitalidade e conteúdo, sempre comprometido com um posicionamento polêmico e firme. Lukács é uma personalidade única em seu tempo, que espelha o tempo que vivenciou com uma profundidade realmente impressionante, construída a partir de uma erudição ímpar e interessada. O livro História e Consciência de Classe, de certa forma inaugura sua trajetória de publicações, datado de 1922 trata-se de uma coletânea de ensaios, que pretendem estruturar uma base filosófica mais sistemática para o leninismo. Junto com o filósofo Karl Korsch (1886-1961), Lukács foi duramente criticado por Grigory Zinoviev (1883-1936), no quinto Congresso do Comintern em 1924 por seus posicionamentos aproximados a um certo idealismo hegeliano. Em 1924, Lukács escreve um curto estudo celebratório sobre Lenin, logo após a sua morte denominado, Lenin, um estudo sobre a unidade de seu pensamento, e em 1925 publicou uma revisão crítica sobre o Manual do Materialismo Histórico de Nikolai Bukharin (1888-1938). Considerado como um dos expoentes daquilo que se convencionou chamar de Marxismo Ocidental, Lukács se distanciou do revisionismo democrático, que caracteriza os expoentes desta corrente do pensamento, sendo as vezes apontado como stalinista. Segundo KONDER 2002, a compreensão de Lukács do materialismo histórico e dos escritos do autor de O Capital, Karl Marx, eram alicerçados num sólido conhecimento das ideias do idealismo alemão, particularmente Kant e Hegel. Tal condição, lhe permitiu uma compreensão aprofundada dos textos de Marx, notadamente a partir do impacto da primeira guerra mundial (1914-1918) e da Revolução Russa de 1917, quando mergulha na obra do autor alemão. Sua história, no entanto nestes anos não se restringe as reflexões filosóficas, pois assume a condição de dirigente da política cultural da breve Comuna Húngara em 1919. 

"A experiência de um engajamento radical na luta política e na "batalha das ideias" se expressou numa coletânea de ensaios intitulada História e consciência de classe de 1922. Nos ensaios do livro, sobretudo no ensaio sobre a reificação (ou coisificação), Lukács trouxe uma significativa contribuição para o aprofundamento da reflexão a respeito da questão da ideologia. Exilado em Viena (então sob governo social-democrata), Lukács analisava as condições da vitória obtida pela direita em seu país, a Hungria, à luz da situação do capitalismo na Europa. Estava, na época, convencido de que a revolução proletária era iminente." KONDER 2002 pág.60

No pensamento de Lukács há também uma constante referência a aspectos socio-culturais e também estéticos, que denotam a ideia de uma composição mais abrangente, que relacionam partes com um todo, numa síntese com pretensões além da eficiência tecnológica. Dentro da sua Estética, escrita em 1963 e que foi sucedida por Uma Introdução a Estética Marxista de 1967 a literatura ocupa a centralidade de suas atenções, enquanto a arquitetura é encarada como um dos ítens dentro da totalidade das artes. A arquitetura e seu projeto possuem aspectos evocativos que disparam no seu observador ou fruidor, a contemplação do belo, que é pensado e articulado em nossas mentes a partir de um todo a espacialidade, que só pode ser julgado a partir de complexas relações entre parte e totalidade. Neste sentido, um compartimento da arquitetura, uma sala ou uma cozinha, ou ainda uma fachada ou seu telhado é uma parte, que ocorre na totalidade da edificação, interagindo com outras como; o lote, a quadra, a rua, a cidade, o meio que pautam a ideia de adequação, comodidade, funcionalidade, conforto, estática e beleza em sua plenitude, que só pode ser avaliada a partir da totalidade. Afinal, a edificação deve acolher o humano em sua inteireza sem esquecer de questões como legibilidade, sucessão de espacialidades articuladas e orientadas para uma adequação ao corpóreo e ao social, sem que isto represente prejuízo a qualquer uma daquelas categorias mencionadas. Neste sentido, a tríade de Vitruvio; "firmitas, utilitas e venustas", ou; estática, funcionalidade-comodidade e beleza permanecem governando o mundo do engendramento das partes com o todo no processo de concepção do projeto, seja da arquitetura ou do urbano. Em 2007, defendi a minha tese de doutorado que abordava o tema; Projeto, Ideologia e Hegemonia; em busca de uma conceituação operativa para a cidade brasileira, PROURB 2007, que aborda as questões da orientação ideológica, operativa e doutrinária do fazer arquitetura e cidade. Nesta reflexão coincidentemente há, também um trecho da Estética de LUKÁCS 1982 P.261, vol.3, que foi selecionada por mim e também por Juarez Duayer, no seu livro Lukács e a Arquitetura, do ano de 2008 que diz; 

"Esteticamente a arquitetura se produz somente quando as conexões assim captadas e transpostas a prática se revelam de um  modo visualmente evocador, quando a construção de sólida fundamentação cognoscitiva muta na conformação de um espaço particular, visualmente evocador, como momento construtivo determinado deste: quando as forças naturais gerais tornadas imediatamente visíveis figuram com forças gerais da vida humana. É claro que essa transposição da generalidade reconhecida em visualidade concreta, em eficácia imediata evocadora-visual, significa ao mesmo tempo a mutação da generalidade em particularidade. Neste ponto a relação inerente da generalidade à particularidade é ainda mais evidente, se isso é possível, que nas demais artes." DUAYER, 2008, página78

E eu, complementaria o filósofo húngaro, que a fruição da arquitetura não se restringe a visualidade, mas ao corpóreo-visível ou tátil-visível, numa evidência de que nosso juízo sobre ela depende da legibilidade, da comodidade, sensação de proteção, do conforto, vistos como uma ideia generalizante. E, esta complexa relação entre generalidade e particularidade, na arquitetura e no urbanismo é bem presente no pensamento de Lukács, construindo nosso juízo de valor da adequabilidade da obra ao contexto e ao tema. A compreensão geral da obra, em sua dimensão total, bem como suas particularidades específicas conformam uma espacialidade evocadora, que figura e abriga a vida humana, que não encontra seu lugar, se não for por um gesto arbitrário modificador ou humanizador. Aqui está a essência da matriz modificadora e conformadora de um lugar, da arquitetura e do urbanismo, que para se humanizar carrega uma expressividade ao mesmo tempo da genealogia do humano mais primitivo, e também de sua própria época. Esta genealogia do humano é sempre construção e reconstrução, objetividade e subjetividade, convencimento e arbitrariedade, checados e rechecados pela pré-figuração, o desenho, que escava não só o que foi, ou o que é, mas principalmente o que deve ser, ou o devir. Por conta de minhas aulas em Teoria e História da Arquitetura 1 na graduação, nos últimos tempos, me defrontei com um autor renascentista, Leon Baptista Alberti, que escreveu o Tratado de Re Aedificatória, que usa o termo latim "concinitas" para indicar a adequação, o encaixe do construído ao seu meio, numa construção bem sucedida. Sem dúvida suas questões estão no cerne do campo da arquitetura e do urbanismo há muito tempo, assim como as reflexões de Lukács sobre a arte em geral e o construído em particular. Objetivamente, o pensamento lukácsiano articula num discurso comprobatório persuasivo as questões do reflexo científico e artísticos, como forma de apreensão do real pela humanidade, como um patrimônio em contínua construção. Para Lukács, a ciência avança na medida em que desantropomorfiza sua apropriação do real, isto é supera a subjetividade e reconhece ainda que setorialmente a objetividade. Enquanto, a arte por sua própria natureza é antropomórfica, isto é lida com a matéria a partir da dimensão subjetiva, e constroe sua visão de mundo buscando sensibilizar o fruidor com a empatia de um subjetividade. A relevância de sua reflexão e a de Alberti, para a arquitetura e a cidade, tendo como premissa não apenas a objetividade científica, mas também a subjetividade da arte, pois estas reúnem em seu cerne as duas formas, além da intuitiva, de nos apropriarmos do real.  A questão da presença do caráter espaço-temporal na realidade objetiva é abordado por Juarez Duayer sobre o prisma de Lukács, numa correta tensão com a "fecunda contradição dialética" expressa numa sequência brilhante de citações do autor húngaro baseadas no fato de que;

"todo meio homogêneo primária e imediatamente espaço-visual tenha que inserir também um quase-tempo na totalidade de seu mundo, do mesmo modo que tão pouco existe meio homogêneo temporal que seja capaz de construir seu mundo sem nenhum elemento de quase-espaço. [...] o movimento do homem no espaço interior arquitetônico, seu movimento em relação ao espaço externo (aproximação etc) não são apenas condições prévias estéticas imprescindíveis ao comportamento receptivo - pois em princípio é impossível perceber uma obra arquitetônica na totalidade de sua composição desde um único ponto de vista -, mas têm, além disso, a significação de uma tomada de posse desse complexo real pelo homem [...] que nasce de numerosas e complicadas determinações objetivas e na qual, como vimos, já está contido objetivamente o domínio do homem sobre as forças naturais, realiza sua  verdadeira finalidade intencional precisamente nessa tomada de posse produzida pelos movimentos do homem em dito espaço, ou até ele, ou em torno dele etc., [e que consumam] o caráter total de dito espaço, tanto para si quanto, consequentemente, para o homem[...] este movimento satisfaz as finalidades subjacentes objetivamente à construção inteira e que condicionam o caráter concreto e único, convertido em particularidade, da estática da luta das forças naturais, este comportamento subjetivo experimenta um intensificado páthos interno e pode converter-se no órgão adequado, capaz de ampliar e aprofundar aquele "mundo" que o espaço arquitetônico, como um Para-nós receptivo, chama a vida" LUKÁCS 1982, V.4, P. 120 em DUAYER 2008 pág.77 e 78, trechos sublinhados por mim

O meio homogêneo, me parece uma figura ou um recorte do nosso pensamento, que diante do fenômeno arquitetônico ou urbano não consegue prescindir do tempo, como na música, mas que diferentemente desta reforça sua condição de "quase-espaço", no movimento humano. Há aqui instalado, uma profunda desconfiança na fruição entre totalidade e particularidade, que precisam da constante revisão da memória, para construir a legibilidade da obra. Estamos no âmbito da mera recepção ou fruição, onde a tomada de posse emerge de numerosas e complicadas determinações objetivas, onde o que se celebra é o domínio do homem sobre as forças naturais. Não como algo pretensioso e arrogante, mas como algo que conforta, transmite a sensação do abrigo, da defesa contra o frio ou calor excessivo. Há nesta sequência de citações brilhantemente selecionadas por Juarez Duayer, uma concatenação complexa, que nos confronta com a fenomenologia da percepção do espaço, algo banal e corriqueiro, mas carregado pela objetividade estática do construir, como algo fundamental na reprodução da vida humana. Algo que nos remete a humanização do homem, como uma construção contínua, que está longe de ser fixa e imutável, mas na verdade perpassada pelas condições histórico-sociais de cada tempo e de cada experiência, que modula nossa interação natural. "O domínio do homem sobre as forças naturais" é convertido em sequência de particularidades que conforma uma totalidade ou generalidade, "como um Para-nós receptivo chama a vida". Vida, que nos remete a banalidade de nossa existência, em suas demandas cotidianas mais imediatas, não apenas objetivas, mas também e complementarmente simbólicas (abrigo, segurança estática, adequação, etc), que configuram "o caráter concreto e único, convertido em particularidade". Nada mais sintético da essência da espacialidade humana, nada mais representativo do fenômeno construtivo humano, que é produzido e produz demandas de cada um dos seus tempos, muito longe da imutabilidade imediata, e, portanto próximo a arte. Lukács também será preciso no debate das finalidades e funcionalidades, que este debate carrega para a convivência dos homens, debatendo categorias como caducidade e continuidade em conteúdos que originaram a obra, mas que alcançaram a obsolescência, e, que por conta disso perdem sua vivencialidade.

"O próprio espaço expressa tão intensa, tão veementemente, a intenção evocadora originária, que sua vivencialidade já puramente estética pode preservar os principais conteúdos emocionais de sua origem e de sua eficácia contemporânea, ainda que seja, sem dúvida, com múltiplas modificações. A caducidade ou a continuidade vital de tais conteúdos não difere pois em princípio de processos análogos que ocorrem na ação histórica de outras artes. Aqui também é a recepção na evolução da autoconsciência da humanidade, o 'tua res agitur' (trata-se de coisa tua, ou trata-se de assunto de teu interesse) vivo e vitalizador possível em cada caso, o que decide acerca da atualidade ou caducidade." LUKÁCS 1982, V.4, P. 12, citado em DUAYER 2008, pág.79


Vista do padrão geral das superquadras em Brasília, com a
permeabilidade dos pilotis corbusieanos.


Aqui, Lukács reforça o caráter coletivo ou o interesse público da arquitetura e do urbanismo, como representações da ordem social vigente, como a materialização das instituições humanas que governam a vida dos homens. Ela é a representação do engendramento coletivo das organizações que estruturam a interação dos indivíduos, não apenas os pertencentes ao Estado, mas também os representativos de organizações da sociedade civil. No Brasil, onde houve uma recorrência da construção de novas capitais, estaduais ou nacionais (Aracajú, Belo Horizonte, Goiânia, Brasília, Palmas), nota-se como o mecanismo da comunicação da edificação manipulam representações com graus diferenciados, na busca da identificação da centralidade, da coesão do poder. Belo Horizonte, por exemplo, localiza o poder central de Minas no platô da Praça da Liberdade, onde estão instalados, o Palácio do Governador e as Secretarias de Estado em edifícios ecléticos pontuados pelo positivismo da nossa primeira república. Brasília, na década de 60 se estrutura na contraposição do eixo monumental ao eixo habitacional, presentes no traçado de Lucio Costa, num didatismo de comunicação, que sintetiza e facilita a apropriação da centralidade pelo conjunto da sociedade. A linguagem sintética de Lucio Costa reduz a cidade ao habitar e a representação do poder, didaticamente contrapostos, para enfatizar e facilitar a leitura da presença do poder, nas formulações icônicas de Oscar Niemyer. Formulações que por sua vez, elegem o tema da coluna de sustentação como a linguagem primordial do poder (o Palácio Alvorada, o Palácio do Planalto e o Supremos Tribunal de Justiça), claramente e em contraste com o tema da placa e da torre presente no poder legislativo, do Congresso Nacional de Brasília. Elementos de uma linguagem construtiva modernista (1), que passaram a representar a capital do país, e que foram apropriados de forma pulverizada e generalizada pelo povo. Aqui, mas do que nunca a Arte-Arquitetura mais do que figurar os anseios do povo, transfigura a realidade, criando sua iconografia, que pode ou não alcançar esta sintonia com a população geral.

"Por seu caráter estético, a arquitetura, como grande arte, se orienta resolutamente para o geral, para o social, de modo que suas obras-primas transcendem sempre do âmbito do indivíduo particular, privado, e só o levam em conta enquanto símbolo de um coletivo humano. Nos edifícios públicos, nos templos, nas construções que simbolizam o poder do Estado, a arquitetura logra em seus melhores momentos, aproximar-nos animicamente das crenças, das aspirações, dos temores, mas também do domínio da natureza, do autodomínio e do grau de socialização real de que foram capazes nossos semelhantes; e essa assimilação da experiência alheia - que poderia ser a nossa - nos é proporcionada por um "meio homogêneo" estético, espacial, que só a arquitetura, como arte, pode criar." LUKÁCS citado em DUAYER 2002 pág.80  

Localização no Plano Piloto de Brasília
das SQS 409 a 412

Importante pontuar, que estas centralidades poderiam no longo prazo efetivamente não se consolidar na história social dos estados ou do país, sendo negadas ou apontadas como projetos de grupos minoritários, não representativos do conjunto, que retrocederiam ao uso das antigas capitais. Mas a arquitetura e o urbanismo não se restringem apenas ao âmbito da monumentalidade, da representação do poder, mas está presente na esfera privada da reprodução da vida em seu dia a dia. Diferentemente dos monumentos, 

Ambiência das SQS 409 a 412 sem o Pilotis

que possuem escala e portanto se constituem em possibilidade quantitativa de marcar o território, a habitação precisa ganhar escala pela reunião, manipulando a continuidade, sua presença ou personalidade é dada pela repetição, que acabam sendo específicas das diferentes personalidades das cidades. Diria, ROSSI 1995 ou TAFURI 1979, que as áreas habitação das cidades constituem sua personalidade, pois se configuram a partir de grandes continuidades, que espelham uma forma concreta e específica do cotidiano, particular de cada cidade. As superquadras em Brasília espelham uma nova forma de habitar, marcadas pela sua interação com o solo da cidade, não mais a fragmentação do lote e a clara separação entre esfera pública e privada, mas a continuidade das estruturas habitacionais sobre pilotis, liberando o solo da cidade ao fluxo comum. É claro, o capitalismo segregou e elitizou estes espaços, a partir de sua valoração estratificada dedicada aos possuidores e excluindo os despossuídos, que não são aceites no desfrute desta parte da cidade. A razão instrumental capitalista pretende a redução quantitativa do valor, destruindo as interações qualitativas, o fundamento das convicções humanas. O que importa é o rendimento do valor, a tradução no preço. Nesta dimensão, o todo é esvaziado, a razão se fragmenta e renuncia a sua universalidade, operando racionalizações parciais, que não nos permite mais abstrair o todo.  Neste cenário, é importante descer a particularidade específica de algumas superquadras, como as Super Quadras Sul 409 a 412 (mostradas nas imagens), que não apresentam pilotis, e que buscavam na época da implantação de Brasília, atender as faixas de renda mais precarizadas. É claro que não foram suficientes, nem tiveram o espírito de acolhimento aos imensos contingentes que vieram para Brasília atrás de uma vida melhor, como não foram no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Esta particularidade diferenciada se encaixa numa totalidade, mas não é capaz de fazer frente ao movimento de estilhaçamento da razão promovido de forma contínua pela lógica da cidade capitalista.

"sujeito que submente as forças naturais no sentido social do homem não pode ser senão, geral, coletivo. Mesmo o domínio geral-legaliforme ou conceitual, ainda sem orientação tecnológica, das forças naturais, expressa o poder da sociedade, não o do indivíduo, no enfrentamento da natureza. E mais ainda, a finalidade subjacente à emancipação é, de modo insuperável imediatamente coletiva [...] prescindindo da primeira e geral questão do reflexo que só pode ser coletivo, a determinação classista do indivíduo abarca na estética da casa privada a personalidade meramente singular do proprietário. Como é natural, a coletividade em sua aparição histórica de cada caso, é um resultado das lutas de classes; precisamente no que diz respeito à arquitetura vige de modo mais contundente a palavra de Marx, segundo a qual as ideias dominantes de uma época são as ideias da classe dominante. Mas equanto nas demais artes - cada a seu modo - os reflexos dessas lutas, os antagonismos internos e externos, seus ascensos e descensos, suas tragédias e suas comédias aparecem mimeticamente, a arquitetura - dito com alguma simplificação - não expressa mais que seus resultados, nunca o desenvolvimento social dessas lutas mesmas[...] a luta pelo domínio humano da natureza, o processo de metabolismo entre a sociedade e a natureza, mas, antes de tudo, o submetimento da natureza às necessidades de uma concreta comunidade humana, e tanto no nível alcançado nesse terreno em cada caso quanto ás finalidades humanas efetivamente realizadas no processo" LUKÁCS, 1982, vol.4, p.121e122, citado em DUAYER 2008 pág.80e81

A massa contínua das habitações multifamiliares nas superquadras de Brasília, não consegue no entanto recalcar a presença das lutas de classe, pois; "as ideias dominantes de uma época são as ideias da classe dominante". E, em Brasília o paradigma ou a representação do "bem viver" das classes dominantes não parece estar mais nas superquadras, mas nas casas unifamiliares do Lago Sul, onde ostentação se junta com o medo, estruturando uma arquitetura fortificada, como numa prisão. O modelo do condomínio fechado exclusivo, com entradas controladas, perímetro murado, e com casas unifamiliares passa a representar a ideia dominante do "bem viver". Apesar de suas consequências deletérias para as cidades brasileiras, a fragmentação da razão apontada por Lukács mostra-nos a incapacidade do sujeito burguês, que renega seu papel coletivo, se refugiando em sua casa unifamiliar fortificada. Nestas condições de operação, qual as possibilidades da práxis arquitetônica e urbanística, como formular contra projetos capazes de apresentar uma outra figuração, que supere esta renuncia a totalização. 

NOTAS:

(1) DUAYER 2008, irá reforçar em seu livro; "O fato de Lukács reconhecer como veremos, somente a autenticidade das manifestações arquitetônicas até o período do Renascimento..." O que denota, para Lukács, que no modernismo, a cidade e a construção haviam sido degradadas a mero valor de troca, o que bloqueia a autenticidade estética das obras arquitetônicas. Nesse sentido, a obsessão de Manfredo Tafuri com o Renascimento é ilustrativo desta mesma condição de angústia, com a expressão arquitetônica de nossa contemporaneidade; "No deberia ser necesario recalcar que el carácter fragmentario y la desaparición de cada télos son condiciones de qualquier época. Sin embargo es bastante más importante volver a considerar todo lo que había interpretado como un eclipse. Silenciosamente, los protagonistas del arte contemporáneo - desde Klee hasta Le Corbusier - han hecho de la fragmentación y de la ausencia motivos de profunda reflexión sobre la totalidad y sobre la plenitud del sentido. Tal vez, solamente unidos mas allá de cualquier ley indiscutible - en el lugar donde el "espíritu destructor" logra construir - sea posible interrogar al espíritu de la ley." TAFURI 1995 pág.9

BIBLIOGRAFIA: 

DUAYER, Juarez - Lukács e a arquitetura - Editôra da Universidade Federal Fluminense, Niterói 2008

KONDER, Leandro - A questão da ideologia - Editôra Companhia das Letras, São Paulo 2002

LUKÁCS, Györky - Introdução a uma estética marxista; sobre a particularidade como categoria da estética - Editôra Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1970

ROSSI, Aldo - Arquitetura da Cidade - Editora Martins Fontes, São Paulo 1995

TAFURI, Manfredo - Sobre el Renascimiento; principios, ciudades, arquitectos - Editôra Cátedra Madrid 1995 

TAFURI, Manfredo - Teorias e História da arquitetura - Edotorial Presença Lisboa 1979