sábado, 22 de maio de 2021

Apontamentos da aula 1 Arquitetura, Cidade, Filosofia e os eixos temáticos do Congresso UIA 2021 Rio

 

Um dos slides da 1a Aula: Arquitetura, Cidade, Filosofia
e os eixos do Congresso UIA2021Rio

A aula se inicia com a problematização do que seria o conceito de filosofia da práxis, uma ideia que aponta para operacionalização dos debates filosóficos no sentido de construir um módus operandi cotidiano, que estruture nosso comportamento no dia a dia. Uma colocação cara ao marxismo, de uma maneira geral, que tem como um de seus pressupostos a identificação do agente do pensamento, o ser pensante, como uma forma de mapear a gênese de seu pensar e de suas ações. A contextualização das origens sociais do pensar, identificado com um ator e agente desvenda os interesses, os objetivos, e uma questão fundamental; a representatividade do pensamento. Há aqui, a presença de uma filosofia do sujeito, ou a crença de que a existência de qualquer agente, quando auto problematizada pode desembocar numa filosofia. Nessa presença, se percebe uma gênese romântica, típica do século XIX na Alemanha, que é superada pelas concepções materialistas e realistas inerentes ao marxismo, que na ânsia de identificar os sujeitos do pensamento, também ansiava na sua construção identitária. Uma questão cara a Antônio Gramsci, que sempre estruturou seu pensar, a partir de fatos e ações corriqueiras, presentes no cotidiano de todos, e que, ao serem problematizados levavam diferentes agentes a expressar um interesse de um grupo específico. 

“...a filosofia da práxis, por um lado, destrói e ridiculariza todos os conceitos estaticamente unitários, por outro mantém um comportamento sempre crítico, e nunca dogmático, um comportamento em certo sentido romântico, mas de um romantismo que, conscientemente, procura seu caráter clássico. Portanto, como filosofia que se sabe expressão ideológica, de uma sociedade atravessada de contrastes... O filósofo atual pode afirmar isto, sem poder ir mais além; de fato, ele não pode se evadir do terreno atual das contradições, não pode afirmar, a não ser genericamente, um mundo sem contradições, sem com isso criar imediatamente uma utopia.” GRAMSCI 2001 página101

Nesse quadrante do pensamento é importante contextualizar nossa condição brasileira no mundo; um país colonizado por uma metrópole europeia, que se integra a economia capitalista global sem fazer valer seus interesses, uma vez, que não se auto identifica. Uma inserção periférica e tardia no sistema capitalista geral, que determina uma certa minoridade do pensar, como uma condição continuada das ideias fora do lugar. Uma certa condição subalterna governa as formas de pensar, atuar e produzir no Brasil, fruto de uma mentalidade que não encontra potência nas tradições indígenas ou africanas, ou mesmo brancas na interação inovadora, que sua espacialidade produziu. O famoso e folclórico, “complexo de vira-latas”, do nosso dramaturgo maior, Nélson Rodrigues, um espectro que ronda a alma do Brasil. Dentro desse tema, reforçando-o e sublinhando-o, confronta-se o arraigado patrimonialismo de nossas classes dirigentes, que enfatizado pelo Iberismo, acaba se constituindo como a absolutização do Direito de Propriedade da terra. Uma condição, que possui suas origens no colonialismo, no patriarcalismo e no próprio capitalismo luso-brasileiro, e que representam uma carga pesada para nossas cidades. Uma condição que parecia ser encerrada com a Constituição Federal de 1988, e com o Estatuto da Cidade de 2001, que vinculavam fortemente o Direito de Propriedade ao cumprimento de seu papel social. Mas, que até agora encontraram pouca aplicabilidade no território efetivo das cidades brasileiras, aonde permanece a absolutização do Direito de Propriedade, como um valor cercado numa fortaleza inexpugnável. Essa condição, de "complexo de vira-latas" conferem as pesquisas e aos mapeamentos em todos os campos do saber necessários a nossa auto-contrução, como identidade, como especificidade, um caráter minoritário e inacabado.

“Mapear a teoria da arquitetura brasileira exige esforço de muitos e prazo dilatado. Contudo, é trabalho imprescindível. Não temos, por exemplo, o registro dos textos sobre arquitetura e urbanismo aqui presentes no período colonial e isto nos leva a entender precariamente a gênese de nossas produções, as tradições estilísticas que aqui vingaram, os desvios e novidades apresentados os interlocutores com e contra os quais dialogaram nossos primeiros arquitetos e urbanistas. A originalidade e vigor do barroco mineiro, entre outros casos, poderia ser melhor aferida se desdobradas suas aparentes semelhanças formais com o barroco tardio ibérico e da Europa setentrional de modo a permitir reconhececer as fontes textuais e figurativas que compuseram acervos das mais diversas ordens: públicos, privados, eclesiásticos, corporativos, oficiais ou oficionais.” BRANDÃO 2006 página1

Sem dúvida nenhuma o território de construção desse mapa da teoria é a universidade brasileira, em toda sua diversidade de diferentes localidades e expressões, aonde diariamente se pensa e se problematiza a construção do país. Um projeto de longa construção assentado de forma inter institucional, nos diversos campos do conhecimento, que irá identificando as críticas e celebrações das particularidades inerentes ao Brasil. Uma proposição que envolva a própria diversidade da constituição dessa especificidade, em que se materializa no país, e que precisa não reproduzir internamente as determinações de nossa inércia e condição colonial, deixando-se manifestar as diferentes expressões, esforçando-se para deixar fluir as múltiplas narrativas. As cidades, o habitar, e a ocupação do território, como campo específico da Arquitetura e do Urbanismo, de uma maneira geral estão inseridas nesse contexto, e precisam compartilhar suas descobertas e intuições para atingir a maioridade da reflexão, seja ela crítica ou celebratória. Daí o tema do Congresso UIA2021Rio, que proclama; Todos os Mundos; Um só Mundo; Arquitetura 21, uma proposta de convivência com a diversidade de modos de fazer e pensar. A reunião de um aparente paradoxo, que reúne a esfera local e global, num esforço próximo ao resgate da cosmologia dos povos originários do Brasil, que resistem na sua forma de operação a aceitar a lógica da competição com o mundo natural.

“A ideia de nós humanos, nos descolarmos da terra, vivendo numa abstração civilizatória, é absurda...A civilização chamava aquela gente de bárbaros e imprimiu uma guerra sem fim contra eles, com o objetivo de transformá-los em civilizados que poderiam integrar o clube da humanidade. Muitas dessas pessoas não são indivíduos, mas pessoas coletivas, células que conseguem transmitir através do tempo suas visões sobre o mundo... Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada da humanidade homogênea na qual há muito tempo o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania... Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar...” KRENAK, Ailton, citado em BOAVENTURA 2021 página77

Esse tema maior é detalhado por quatro grandes eixos; Fragilidades e Desigualdades, Diversidade e Mistura, Mudanças e Emergências, Transitoriedade e Fluxos, que pretendem atrair reflexões sobre o espaço construído pelo homem, e suas interações com nosso planeta. Há neles, uma intencional transversalidade com relação aos temas tradicionais da ocupação do território pelo homem; a região, a cidade, o edifício, a natureza. Uma ideia de que nosso tempo contemporâneo está perpassado por uma premissa inicial, no campo da arquitetura e do urbanismo, a da promoção da equidade nas diversas partes da região, da cidade, do edifício e da natureza. O complexo engendramento de um sistema econômico capitalista, que vem de forma constante promovendo a inequidade de benefícios, benfeitorias e recursos, incrementando a péssima divisão de renda. O neoliberalismo que inicia sua expansão no final dos anos setenta e início dos anos oitenta, com a demolição do Estado de Bem Estar Social, que até então imperava nos países centrais do capitalismo. Apesar das constantes e repetidas crises - 2008; EUA e Espanha, 2015; Brasil, 2020 Pandemia de Covid-19 -, o sistema continua celebrando a desregulamentação e a liberação do empresariamento dos mundos da vida, num movimento de auto suicídio. Daí a importância do desenvolvimento histórico do século XX, que foi problematizado na aula, a partir de dois livros; A era dos Extremos, o breve século XX 1914-1991 de Eric Hobsbaun 1995 e, por outro lado, O Longo século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo de Giovanni Arrighi 1996. Uma curta duração, acelerada e curta, que entre a Primeira Guerra, a Revolução Bolchevique na Rússia e a Queda do Muro de Berlim em 1991 representariam um embate típico do nosso tempo. De um lado; a ordenação centralizada da economia pelo Estado, e por outro, a desregulamentação e o empresariamento dos mundos da vida. Num outro aspecto, é a longa duração ou a grande transformação, que desde as Cidades Estados italianas no século XIV, até a hegemonia dos EUA no século XX apresenta uma grande repetição de ciclos, que se sucedem a partir de uma lógica de ampliação do sistema capitalista, que se repete de forma recorrente.

"Todas as vezes que os processos de acumulação de capital em escala mundial, tal como instituídos numa dada época, atingiram seus limites, seguiram-se longos peíodos de luta interestatal, durante os quais o Estado que controlava ou passou a controlar as fontes mais abundantes de excedentes de capital tendeu também a adquirir a capacidade organizacional necessária para promover, organizar  e regular uma nova fase de expansão capitalista, de escala e alcance maior que a anterior." ARRIGHI, 1996 página14

Na construção de ARRIGHI 1996, o século XX inicia-se com a descoberta da contabilidade cruzada nas Cidades Estados Italianas (1418) e ainda não terminou, mas chega ao final de uma expansão geográfica contínua do capitalismo pelo mundo, que usa como forma central de auto organização; a monetização ou financeirização dos mundos da vida. Para o autor italiano, ARRIGHI 1996, a capacidade de se reinventar do capitalismo vem dessa constante ampliação por novas regiões do mundo, aonde sempre se repete com três movimentos. O primeiro momento, seria a implantação numa região nova a partir de uma sinergia produtiva, baseada na violência da acumulação primitiva, aonde a presença dessa concentração produtiva atrai agentes em busca de lucro. O segundo momento, é o desenvolvimento produtivo articulando mercadorias, indústria, agricultura num centro virtuoso, que também inicia e anuncia o declínio constante dos lucros. E, o terceiro momento, a desterritorialização do capital, abandono dos investimentos fixos - fábricas, mão de obra e culturas - pelo declínio contínuo dos lucros, fazendo os endinheirados não mais se dedicar a produção, mas a migrar para a especulação financeira desenfreada. Nesse raciocínio, ao contrário da visão das ciências sociais e dos meios de comunicação oligopolizados, que consideram o capitalismo e a economia de mercado como contrapostos ao poder do Estado, encara-se a emergência e a expansão do capitalismo como absolutamente dependente do poder estatal. Aqui, há a ideia de que as camadas endinheiradas possuem total independência para continuamente deslocar seus investimentos das atividades econômicas que enfrentam declínio dos lucros, para as que apresentam maior retorno, daí sua tendência de continuamente voltar à especulação.

"Portanto, a fórmula geral do capital apresentada por Marx (DMD´) pode ser interpretada como retratando não apenas a lógica dos investimentos capitalistas individuais, mas também um padrão reiterado do capitalismo histórico como sistema mundial. O aspecto central desse padrão é a alternância de épocas de expansão material (fases DM de acumulação de capital) com fases de renascimento e expansão financeira (fases MD´)... Nossa investigação é, essencialmente, uma análise comparativa dos sucessivos ciclos sistêmicos de acumulação, numa tentativa de identificar (1) os padrões de recorrência e evolução, que se reproduzem na atual fase de expansão financeira e reestruturação sistêmica, e (2) as anomalias da atual fase de expansão financeira, que podem levar a um rompimento com padrões anteriores de recorrência e evolução. Serão identificados quatro ciclos sistêmicos de acumulação, cada qual caracterizado por uma unidade fundamental do agente e estrutura primários dos processos de acumulação de capital em escala mundial: um ciclo genovês, do século XV ao início do século XVII; um ciclo holandês, do fima do século XVI até decorrida a maior parte do século XVIII; um ciclo britânico, da segunda metade do século XVIII até o início do século XX; e um ciclo norte-americano, iniciado no fim do século XIX e que prossegue na atual fase de expansão financeira." ARRIGHI 1996 página 6

Nesse contexto, um tema - A Pandemia de Covid-19 - soterrou todos os outros, monopolizando as atenções de todos, e impondo uma agenda de reflexão em torno da questão da privatização das iniciativas científicas de combate ao vírus, como vacinas e medicamentos. De um lado persistia uma visão de empresariamento como impulsionador de iniciativas inovadoras, como na manchete do jornal O Globo de 3 de maio de 2021; “Startups Medicalcare apresentam grande valorização”. Enquanto, de outro, várias vozes relativizavam essa celebração da propriedade privada no campo do desenvolvimento científico, afirmando que as conquistas precisavam ser vistas como conquistas de todos. Um dos sintomas dessa dicotomia está expresso nas atitude da Organização Mundial de Saúde (OMS), que em 2017 criou a Coligação para a Inovação na Preparação para Epidemias (CEPI), seu slogan é “Novas vacinas para um mundo mais seguro”. A OMS tem uma lista de patógenos para os quais deseja desenvolver vacinas, mas as empresas farmacêuticas tem demonstrado pouco interesse, uma vez que os surtos têm ocorrido na África e na Ásia. Em outra frente, as economias emergentes, Índia, Brasil e África do Sul já haviam criado na década de 90 um instrumento denominado; "licenças compulsórias", o nosso medicamento genérico. Pelo qual, produzem medicamentos sem a necessidade de pagamento de pesadas taxas de patente ou de transferência de tecnologias, garantindo preços mais acessíveis e comprovando mesmo com a supressão desse mecanismo, a lucratividade produtiva. Mas, o CEO da Bayer Marijn Dekker descreveu o mecanismo de licença compulsória como; “essencialmente roubo”, pois o desenvolvimento visava populações com capacidade maior de solvência. Seu posicionamento, claramente distinguia de forma pejorativa populações da Índia e do Ocidente: “Não desenvolvemos esse produto para o mercado indiano, vamos ser honestos. Quero dizer desenvolvemos esse produto para doentes ocidentais que o podem comprar.” Essa ética claramente se chocava com o argumento inarredável, de que na Pandemia de Covid-19 não adianta ter apenas populações ocidentais protegidas, enquanto indianos e pauperizados seguem contaminados. Os argumentos pró mercado foram abalados, levando nos a questionar a própria existência de uma instituição espectral, que na grande mídia aparece como algum cidadão concreto;

“...as necessidades e aspirações dos mercados, esse megacidadão informe e monstruoso que nunca ninguém viu, nem tocou, nem cheirou, um cidadão estranho que só tem direitos e nenhum dever.” SANTOS, 2021 página 17

Os relatos são sempre sobre a necessidade de se cercar conhecimentos socialmente desenvolvidos, que significam a salvação da saúde da humanidade, e devem portanto ser franqueados a todos. A empresa Cepheid Inc produz testes de detecção da Covid-19 e recebeu da poderosa agência dos EUA, a FDA autorização de uso de emergência. O teste usa as máquinas e os artefatos do HIV e tuberculose, e fornece resultados em menos de uma hora, o preço determinado pela empresa  é de US$19,80 para cada aplicação. No entanto, a organização Médicos sem Fronteiras declarou que tal preço era incompatível com economias nas quais as pessoas vivem com menos de US$2,00 por dia, argumentando que sem testagem, o vôo de combate ao Covid-19 seria cego. Ao mesmo tempo, nem sempre os órgãos com status científico estão livres dos interesses da Big Farma, a mesma FDA dos EUA concedeu o status de medicamento órfão para o antiviral da empresa Gilead Sciences, o Rendesivir, categoria reservada a medicação para o tratamento de doenças raras. Que terão baixa procura? No entanto, o Rendesivir tem se revelado um medicamento chave no tratamento do Covid-19, o oposto de uma doença rara? A lógica de que medicamentos altamente especiais são caros, demandam investimentos em pesquisas vultosas e portanto possuem altos preços acaba por não se sustentar, diante das verdadeiras evidências da ciência. A mesma lógica desmorona, quando aplicada as dinâmicas capitalistas da cidade contemporânea, aonde o habitar um direito humano passou a ser governado pelos argumentos neoliberais da produção e do lucro.

“[...] Nesta grande síntese desaparecem as contradições que caracterizam a modernização capitalista justamente no âmbito da planificação urbana — contradições entre, por um lado, as necessidades de um mundo da vida formado, e, por outro, os imperativos cujos meios são o dinheiro e o poder. Acrescenta-se a isto um mal-entendido lingüístico, ou melhor, um erro categorial. Denominamos "funcionais" os meios apropriados a um fim. É neste sentido que se entende o funcionalismo quando pretende construir edificações conforme os fins dos usuários. Contudo, dizemos também "funcionais" as decisões que estabilizam uma conexão anônima de resultados de ações, sem que a existência deste sistema fosse desejada ou sequer considerada por qualquer um dos participantes. O que neste sentido é funcional do ponto de vista sistêmico para a economia e a administração — por exemplo, o adensamento do centro da cidade com aumento de preço dos terrenos e elevação da tributação — comprova-se como "nada funcional" do ponto de vista do mundo da vida tanto dos habitantes quanto da vizinhança. Os problemas do planejamento urbano não são primariamente de organização espacial, mas de insuficiência gestionária, de represamento e orientação de imperativos sistêmicos anônimos, que interferem nos mundos da vida citadinos e ameaçam-lhes consumir a substância urbana. [...]” 
HABERMAS 1987 página122

Na verdade, a grande metrópole, e dentro dela o tema da habitação no mundo contemporâneo se tornaram abstrações governadas por um mundo incompreensível e abstrato, que cada vez mais aderiu valor a dimensões locacionais-comparativas, que tendem a um exclusivismo doentio. Os sentidos da fruição urbana e arquitetônica que estavam profundamente vinculados ao uso concreto, cada vez mais se aproximam a um valor abstrato e ostentatório. A grande metrópole, como o Rio de Janeiro, ou São Paulo passam cada vez mais a serem territórios inabarcáveis, abstratos e distantes da compreensão dos sentidos imediatos, portanto manipuláveis por especuladores e aproveitadores. Uma funcionalidade de outra espécie, não mais vinculada aos mundos da vida, do uso, da festa  e do desfrute, mas exclusivamente dominados pela troca, pelo ganho e pela competição.

“Enquanto um mundo abarcável, a cidade pôde ser arquitetonicamente formada e representada para os sentidos. As funções sociais da vida urbana, política e econômica, privada e pública, da representação cultural e eclesiástica, do trabalho, do morar, da recreação e da festa, podiam ser traduzidas em fins, em funções de utilização temporalmente regulada dos espaços configurados. Contudo, no século XIX ao mais tardar, a cidade torna-se ponto de intersecção de relações funcionais de outra espécie. Ela é inserida em sistemas abstratos que, enquanto tais, não podem mais alcançar uma presença esteticamente apreensível” HABERMAS 1987 página123

Mas diante desse mundo regulado por interesses monetizados e financeirizados, que cada vez mais se expandem, como se comporta o ato de planejar e projetar, que se confunde com uma aspiração humana básica. A previsibilidade. Uma pretensão humana, que a modernidade acreditou ser generalizável para todos, mas que em nosso mundo se encontra bloqueada, governada por argumentos exclusivistas, comprada como tudo. Afinal, essa era a pretensão da modernidade, seja renascentista ou iluminista, a construção de um mundo programável e melhor para as futuras gerações, capaz de libertar não apenas uma parte, mas toda a humanidade. Para tal, os homens planejam e projetam.  Em sua essência, o processo de plano ou projeto não é programável, ao se iniciar nenhum dos participantes sabe aonde chegará. Nesse sentido, Plano e Projeto atuam como uma forma de abarcar o real, uma maneira prospectiva de conhecê-lo, como crítica operativa do real, conforme a síntese de TAFURI 1981. Planejamento e Projetação como o conjunto de eleições, decisões, operações e valorações críticas necessárias para a transformação ou intervenção da realidade existente acabam disparando desejos e ordenações inesperadas e inusitadas. Na verdade, o conceito de planejamento e projetação não deve ser restringido, apenas a ciência e ao conhecimento, ou ao sensível e ao artístico, mas a um lugar entre os dois. Eles estão carregados daquilo que ALBERTI 2012 definiu como concinitas ou adequação ao contexto existente, num encaixe sintético único, que dá voz ao lugar para ser algo Comum e Humano. A previsibilidade é uma dimensão humana, que precisa ser generalizada a todos. Mas, a previsibilidade também está contaminada por uma dimensão fáustica, uma vontade de efetiva materialização e realização. Afinal, a crítica se soma o operativo, para realizar sobre o real.

“O artista tem só um meio para representar a obra em que trabalha; fazê-la.” Merleau Ponty

“Assim, pode dizer-se que a crítica operativa projeta a história passada projetando-a em direção ao futuro: a sua verificabilidade não reside em abstrações de princípio, mas avalia-se, de caso a caso, com os resultados que obtém.” TAFURI 1981

Mas e as cidades, esse artefato inventado pelo homem, que reúne diferentes expectativas, objetivos, plano e projetos, numa sinergia única, um ponto do território, capaz de aproximar diversas subjetividades, que compartilham tecnologias. A cidade é fruto de um desígnio, de um desejo, de um projeto e de um plano, ela não é fruto da natureza, da seleção natural, mas algo inventado pelo homem com o sentido de impulsionar sua reprodução. Ela não é fruto do acaso. Quando os sociólogos apontam que a cidade é o espelho da sociedade, apontam na verdade, que a cidade brasileira, injusta e desigual, representa materialmente nossa sociedade. As cidades são interessantes situações espaciais, ocupam apenas 2% do território seco do planeta, no entanto são responsáveis por 85% do impacto ambiental, tais como poluição dos mananciais e emissão de gás carbônico. Pensar sobre a forma de produção e reprodução da cidade contemporânea é minimizar esse impacto ambiental. Mas qual projeto de cidade que estamos atualmente reproduzindo? Atualmente o personagem exemplar do cidadão contemporâneo bem sucedido mora numa casa unifamiliar perto de um idílio da natureza, com um número de carros na garagem igual ao de membros familiares. Um modelo insustentável, baseado nas premissas de uma sociedade competitiva, dominada pela hegemonia financeira, por práticas coloniais e pelo patriarcado mais tóxico. É urgente oferecer um contra projeto para essa cidade, capaz de representar um sociedade colaborativa, baseada na solidariedade, que se volte para a produção compartilhada, que abra espaço para as diferentes vozes, promovendo a diversidade humana. Espacialmente, os quatro pontos de reversão da inércia de reprodução da atual cidade, com a marcação de suas palavras chaves, seriam:

  • Cidade compacta e densa, que inicie o combate a dispersão interminável da cidade brasileira
  • Cidade baseada na convivência da diversidade de classes, que combata a tendência de gerar guetos da cidade brasileira
  • Cidade com uma mobilidade ampliada, que combata a exclusão determinada a partir da ausência ou tarifação cara do transporte público da cidade brasileira
  • Cidade que se aproxime dos conjuntos naturais de forma didática, a partir de uma aproximação positiva entre vida urbana e natural.
A partir desse ponto, a aula procurou demonstrar, usando a cidade do Rio de Janeiro como exemplo, como nosso planejamento e projetação de cidades atende uma minoria de interesses localizados, desconsiderando a grande maioria de sua população. A história da cidade, sua disposição e configuração física atual nos fornecem claros indícios da particularização do sistema de planejamento e projetação da cidade. Foram utilizados, como exemplos: a) o serviço de trens urbanos da cidade, b) o arco metropolitano, c) os corredores de BRTs novos, d) o plano inicial e o efetivamente realizado do Metrô carioca, e) a rede hidroviária da cidade metropolitana, f) o sistema de despoluição da Baía de Guanabara, g) a história da ocupação da Baixada de Jacarepaguá e Barra da Tijuca, h) o Porto Maravilha, e i) as favelas cariocas. Todos, sem exceção demonstram a vertente de classe das operações, mostrando-nos como foram capturados de forma a tender beneficiar uma minoria, deixando a grande maioria a margem do desenvolvimento da cidade.

BIBLIOGRAFIA:

ALBERTI, Leo Baptista - De arquitetura, a arte de construir: tratado de arquitetura e urbanismo - Editora Hedra São Paulo 2012

ARRIGHI, Giovanni - O Longo século XX: dinheiro, poder e as origens do nosso tempo - Editora Unesp São Paulo 1996

BRANDÃO, Carlos Antonio Leite - Os modos do discurso na teoria da arquitetura - disponível em www.arq.ufmg.br/ia/teoria.html 2006

GRAMSCI, Antonio - Cadernos do Cárcere - Civilização Brasileira Rio de Janeiro 2001

HABERMAS, Jürgen - Arquitetura Moderna e Pós Moderna - Revista Novos Estudos do CEBRAE setembro de 1987

HOBSBAWN, Eric - Era dos Extremos, o breve século XX, 1914-1991 - Editora Companhia das Letras São Paulo 1995

SANTOS, Boaventura de Souza - O futuro começa agora, da pandemia à utopia - Editora Boitempo, São Paulo 2021

TAFURI, Manfredo - Teorias e História da Arquitetura - Editorial Presença Lisboa 1981