sexta-feira, 6 de outubro de 2017

O filme Feito na América é representativo da política externa americana

O filme Feito na América com Tom Cruise
Os Estados Unidos há muito abandonaram uma política externa de princípios ou valores, por outra em nome da sua segurança e dos seus negócios, numa clara traição ao cidadão e contribuinte americano, que sequer consegue saber qual é o orçamento da Central Intelligence Agency (CIA), desde sua criação em 1947. O filme Feito na América faz menção a biografia de Barry Seal, um piloto da TWA, que abandona a aviação comercial para prestar serviços para a CIA na América Latina como piloto autônomo. O relato se concentra na década de 1980, mostrando o piloto Barry Seal que traficava armas para a CIA abastecendo os contra da Revolução Sandinista e ao mesmo tempo, servindo ao cartel de Medellín de Pablo Escobar, trazendo drogas para os EUA. A trama real se passa em grande parte na cidade de Mena no Arkansas, nos EUA, onde ocorriam várias atividades ilegais com a anuência dos presidentes Ronald Reagan, George H.W. Bush e do então governador do Arkansas, Bill Clinton, dentre elas um campo de treinamento dos contras em pleno território americano. A quantidade de dinheiro que Barry Seal manipulava era tão grande que ele passou a enterrar o dinheiro em seu quintal, impossibilitado de recorrer ao sistema financeiro de seu país, com medo da fiscalização da receita.

Já foi comentado aqui no blog a questão do envolvimento internacional dos EUA, no texto; A política externa americana no segundo pós guerra e os recentes acontecimentos em Paris, quando houve o ataque de terroristas árabes na capital francesa. Naquela ocasião assim como nessa minha principal referência é o livro de Perry Andreson, A política externa norte-americana e seus teóricos, no primeiro texto as questões do Oriente Médio eram mais abordadas, e agora nessa reflexão me restrinjo a América Latina. Segundo esse livro, houve uma mudança na passagem do presidente Roosevelt para Truman, na qual se percebe o declínio dos princípios do republicanismo e da democracia, e a ampliação  da questão da segurança.

No entanto, é verdade que a doutrina americana, ou sua concepção de mundo sempre se pautou por uma visão expansionista de ampliação contínua dos domínios da América, principalmente no que se refere ao continente americano. Em comparação com a Europa, na qual havia e ainda há um certo complexo de inferioridade por parte dos americanos, na América do Sul os EUA sempre tiveram uma prepotência culturalista e religiosa, que tem suas raízes na doutrina de pré-destinação protestante e em tempos fundacionais. Basta se remeter as palavras de John Adams a Thomas Jefferson em 1813, ou ao famoso slogan de Jackson, que mostram claramente a doutrina dos founding fathers, muito antes da hegemonia cultural americana do século XX;

"Nossa república federativa pura, virtuosa e dotada de espírito público perdurará para sempre, governará o globo e introduzirá a perfeição do homem." ou a fala de Jackson; "o direito a nosso destino manifesto de cobrir e possuir o continente por inteiro, direito que a Providência nos deu para o grande experimento da liberdade e do autogoverno federado." ANDERSON 2015 página14

A anexação de quase metade de superfície do México (1846-48) aconteceu na sequência desses pronunciamentos, demonstrando de forma clara que a política anti-colonialista americana servia para confrontar as potências imperialistas européias, mas não o continente sul americano, que sempre foi considerado como quintal dos nossos irmãos do norte. Ainda sobre o primeiro Roosevelt, o Panamá foi arrancado da Colômbia. e transformado num protetorado americano para ligar dois mares, o Atlântico e o Pacífico. É verdade que vozes dissonantes e contrárias a doutrina do Destino Manifesto[1] dos EUA sempre se levantaram, dentre elas os Whigs [2], o oficial do exército americano Ulysses S. Grant [3], e o filósofo Henry David Thoureau.[4]. Com a chegada de Woodrow Wilson (1856-1924) a Casa Branca como 28o presidente (1913-1921) a política externa americana assumiu um tom messiânico. A religião, o capitalismo, a democracia, a paz e o poder dos EUA eram uma só força e discurso, fazendo com que o país entrasse na Primeira Guerra, apoiasse o exército branco na guerra civil da revolução russa, e construisse uma lógica que misturava liberdade, justiça e venda de bens americanos para o mundo. No entanto, quando a guerra acabou os 14 Pontos de Wilson foram tratados com desdém pelas potências vitoriosas (Inglaterra e França), mostrando que a Pax Americana ainda não se estabelecera. Mas muito além do século XIX e o começo do século XX, a hegemonia americana plena se manifesta com o final da Segunda Guerra Mundial, quando os sinais de prosperidade transbordavam no país;

"Em 1945, com seu território intocado pela guerra, os Estados Unidos tinham uma economia três vezes maior que a da URSS e cinco vezes maior que a da Grã Bretanha, controlavam metade da produção industrial do mundo e três quartos de suas reservas de ouro... Em Bretton Woods, o berço do Banco Mundial e do FMI, a Grã Bretanha foi obrigada a abandonar a política de Preferência Imperial e o dólar foi estabelecido como mestre dos sistema monetário internacional, a moeda de reserva à qual todas as outras tiveram de se atrelar para fixar seus preços." ANDERSON 2015 página31

Franklin Delano Roosevelt (1882-1945) não viverá a vitória do exército vermelho sobre Hitler [5], em maio de 1945 quando as tropas soviéticas chegaram em Berlim, Harry S. Truman (1884-1972) um nacionalista paroquial já era o 33o presidente americano. Quatro dias após a rendição da Alemanha em Berlim o novo presidente americano cancelou o acordo militar com a URSS sem qualquer aviso prévio, estabelecendo a Doutrina Truman. Em 05 de junho de 1941, quando ainda era senador, Truman declarara que aos EUA interessava a destruição mútua da Alemanha e da Rússia[6], prenunciando a substituição da Lei de Segurança Social [7] do New Deal, pela Lei de Segurança Nacional. Em março de 1947, Truman proferiu o discurso de alerta contra os perigos do comunismo, no qual ficava claro que a ideologia da política externa americana se pautaria pela segurança. É dessa época a criação do Departamento de Defesa, o Estado-Maior Unificado, o Conselho de Segurança Nacional e a Agência Central de Inteligência (CIA), mecanismos governamentais com orçamentos secretos, justificados pela recorrente tendência de exagerar a fictícia vulnerabilidade do país a ataques. Se conforma então uma mentalidade anti-popular, que chega a pensar em negar o direito de voto a mulheres e negros, centrada numa elite dirigente pseudo esclarecida, e principalmente, imune as paixões populistas, um verdadeiro Estado Novo norte americano.[8] Permanece a referência ao sagrado e a missão divina americana, mesmo quando se trata da matança nuclear, Truman ao lançar a segunda bomba atômica sobre Nagasaki, fala:

"Agradecemos a Deus por [a bomba atômica] ter vindo a nós, e não aos nossos inimigos; e oramos para que Ele possa nos guiar para usá-la em Seus caminhos e para Seus propósitos. " ANDERSON  2015 página42

Aliás as menções a Deus e a uma orientação divina para as ações da política externa americana são constantes e não se restringem a Truman, mas envolvem uma grande diversidade de posicionamentos e atitudes. Com Roosevelt; "O Deus todo poderoso abençoou nossa terra de muitas maneiras...Ele deu ao nosso país uma fé que se tornou a esperança de todos os povos em um mundo angustiado." Ou Eisenhower, que transformou em lema oficial da nação; "Em Deus confiamos" ANDERSON2015 página42. Ou, o católico irlandes Kennedy; "Tendo uma boa consciência como nossa única recompensa garantida e a história como última juíza de nossas ações, sigamos em frente para liberar a terra que amamos, pedindo Sua benção e Sua ajuda, sabedores, porém de que aqui na Terra a obra de Deus deve, em verdade, ser obra nossa,..."ANDERSON2015 página43. Ou o jovem Bush; "Nossa nação foi escolhida por Deus e comissionada pela história para ser um modelo para o mundo..."ANDERSON2015 página43. Até Obama; "Essa é a fonte de nossa confiança: o conhecimento de que Deus nos convoca a dar forma a um destino incerto..." ANDERSON2015 página43 Todos esses depoimentos atestam que a Doutrina Calvinista da Pré-Destinação deixou o indivíduo e se abrigou numa nação, que usa desses argumentos divinos para tiranizar e policiar nosso continente de forma arbitrária.

No filme Feito na América fica claro a irresponsabilidade da política externa americana, que a partir da clivagem da Guerra Fria e do perigo de disseminação do comunismo, acaba por incentivar o tráfico de drogas do poderoso Cartel de Medellin. A América latina é vista como um território de bárbaros, onde uma política de segurança cria e impulsiona um dos ciclos de tráfico de drogas mais prejudiciais a uma cidade, como o de Pablo Escobar em Medellin. Literalmente, um Estado de Exceção que foi naturalizado pelo mundo contemporâneo, que continua se iludindo com a retórica da democracia, que apenas espalha injustiça, e que agora é tornado invisível pela mídia mundial.

"O mundo livre era compatível com a ditadura: a liberdade que o definia não era a liberdade dos cidadãos, mas a do capital..." ANDERSO 2015 página69

As intervenções militares se sucedem desde o final da segunda guerra mundial. Já em 1947 celebra-se no Rio de Janeiro o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, o mais importante ideólogo da política externa americana, George F. Kennan declara; "è melhor ter um regime forte no poder do que um governo liberal, indulgente, relaxado e impregnado de comunistas." Em 1954 na Guatemala com a nacionalização da United Fruit Company e a legalização do Partido Comunista local, os EUA contratam mercenários e derrubam o governo eleito de Arbenz. Seis anos mais tarde, em 1960, a Revolução Cubana nacionalizava os empreendimentos americanos na ilha, o presidente Kennedy esbraveja defendendo uma invasão da CIA.  Em 1964 os militares brasileiros encenaram o primeiro dos golpes contra revolucionário, os EUA enviam o porta aviões Forrestal apoiado por destroieres de apoio, numa mobilização nomeada de Operação Irmão Sam. Em 1965, fuzileiros navais americanos entram na República Dominicana para repelir um fictício perigo comunista com o apoio do exército brasileiro em retribuição. Em janeiro de 1973, acordos são assinados em Paris, programando a retirada das tropas do Vietnã em sessenta dias, a potência militar humilhada é compensada pelo golpe de estado contra Allende, um socialista eleito no Chile, em 11 de setembro do mesmo ano.

Enfim, a política externa americana é uma tragédia para a América Latina, o filme Feito na América denuncia essa condição, mas apenas reforça uma ideologia do voluntarismo de um indivíduo, Barry Seal, quando na verdade, mais parece a determinação de um Estado de Exceção, que já não mais presta esclarecimentos ao cidadão americano.

NOTAS:

[1] A doutrina do Destino Manifesto propunha a expansão contínua dos colonos americanos pelo continente com esforço de aperfeiçoamento civilizatório. O povo americano era eleito por Deus para civilizar o continente americano.
[2] O partido Whig foi fundado por Henry Clay em (1833-34), e tinha uma clara posição anti-expansionista propondo o aperfeiçoamento da democracia americana antes de sua expansão.
[3] Ulysse S. Grant (1822-85) foi oficial americano combatente na guerra com o México, quando jovem, depois oficial comandante em chefe das tropas da União, e o 18o presidente americano (1869-77)
[4] Henry David Thoreaux (1817-62) filósofo e poeta trancendentalista norte-americano, que em sua luta contra a guerra com o México se recusou a pagar impostos e se refugiou nas florestas maricanas, praticando um extrativismo de auto-sustentação, no norte dos EUA. É por muitos considerado a inspiração para o movimento hippie dos anos 60, a partir de seu posicionamento propondo a desobediência civil.
[5] A rendição da Alemanha em Berlim foi em 02 de maio de 1945, e Roosevelt morre em 12 de abril de 1945.
[6] O discurso de Truman no senado em 05 de junho de 1941 foi: "Se virmos que a Alemanha está ganhando, devemos ajudar a Rússia, e se a Rússia estiver ganhando, devemos ajudar a Alemanha, e, desse modo, deixá-los matar o maior número possível de pessoas."
[7] Lei promulgada em 1935 instituindo o sistema de seguridade social público nos EUA.
[8] Segundo ANDERSON 2015,  oprincipal ideólogo da política externa americana é George Kennam, um conservador "admirador de Salazar"

BIBLIOGRAFIA:

ANDERSON, Perry - A política externa norte-americana e seus teóricos - editora Boitempo São Paulo 2015