sábado, 13 de junho de 2020

Aula 2: Arquitetura, Cidade, Filosofia, Pandemia (apontamentos)

Na segunda aula de Arquitetura, Cidade, Filosofia, Pandemia reforcei a presença da importância do debate e do encontro do contraditório para ampliação do conhecimento, no esforço da rede do IAB para organização do Congresso UIA 2021Rio, no qual a cidade e a ocupação humana do território estará sendo pensada e problematizada. Foi também recordado alguns pontos da Aula 1, tais como;
  • A epidemia do Covid-19 radicaliza uma presença constante da era moderna e contemporânea, o impulso de conhecer e problematizar a sociedade em que vivemos, na sua operação, principalmente no que se refere a sua capacidade de distribuir felicidade e bem estar entre todos.
  • Esse desejo de transformação se aglutina em dois pontos. Um lado progressistaluta contra a manutenção de sua forma operativa; alienada, competitiva e repetitiva, bloqueadora da felicidade, da solidariedade e do bem estar. E o outro lado, conservador, que celebra a atual forma de ordenação social, alienada, competitiva e repetitiva, considerando que essa manutenção garantirá o alcance da felicidade e do bem estar. 
Uma clara disputa de narrativas, discursos ou ideologias que se sobrepõe, repetindo como será nosso "novo normal". Há um paradoxo, nessa expressão "novo normal“. Pois, se verdadeiramente "novo" deveria não ser "normal". Será, já um direcionamento em favor do conservadorismo? No Brasil, o discurso conservador ganhou terreno a partir de uma série de acontecimentos desde o processo de redemocratização, que podem ser resumidos em quatro pontos; 
  • as tradições estruturais do autoritarismo brasileiro,
  • a longa recusa do enfrentamento em nossa história desse mesmo autoritarismo,
  • o capital rentista que apura valores exorbitantes sem produzir nada e
  • a curta conjuntura de emergência de grupos milicianos e para militares, a partir de 2013, que endemonizaram a política pós constituinte de 1988.
Tais pontos estão de certa forma naturalizados em nossa sociedade, em uma série de comportamentos e atitudes cotidianas, que estão presentes no nosso dia a dia, como na citação presente na primeira aula, que localiza a presente recorrente do autoritarismo entre nós. Relembramos também, que desde tempos imemoriáveis a filosofia se dedica a Teoria da descrição do real, como podemos nos apropriar do que existe, vê-lo de forma precisa e convincente, descrevê-lo de forma aceitável e persuasiva. Narrativas ou Lugares de Interpretação ou Discursos Explicadores;
  • O que é exatamente conhecer?
  • O que me autoriza a afirmar que realmente conheço um assunto?
  • Quem me garante que o que sei, ou acho que sei, corresponde ao real?
Foi dado o exemplo, de que coisas banais como uma cadeira podem ser conhecidas pela experiência ou pela empiria; sua cor, a maciez do assento, sua solidez, seu espaldar, sua materialidade de madeira, seu desenho, e sua estrutura. Para ir além da empiria precisamos trilhar caminhos, que nos exigem mais abstração teórica; como ela se relaciona com outras cadeiras, sua concepção, seu estilo, sua técnica produtiva, qual sua conexão com o tempo que a concebeu, etc...Há portanto, duas grandes vertentes aparecem de forma clara, de um lado a empiria ou o conhecimento da experiência imediata com o objeto, de outro, a base da abstração teórica que demanda leitura e pesquisa.


Arcaico e Moderno, dimensões que se aproximam e se juntam
na exploração mútua. Favela e Condomínios de Luxo
Logo após essas recordações abordamos o filósofo italiano Antônio Gramsci (1891-1937), que nasceu em Ales na Ilha da Sardenha em 1891, junto do sul da Itália, e morreu em Roma em 1937, tendo uma vida trágica marcada pelo cárcere do fascismo de Mussolini. Em 1911, Gramsci sai da Sardenha e vai estudar Linguística na Faculdade de Letras em Turim, proveniente de uma família pobre, de uma área agrícola do sul, ele chega ao norte industrializado e desenvolvido como um imigrante precarizado. Nesse tempo, se dedica a trabalhos na imprensa de Turim, primeiro do Partido Socialista e depois do Comunista, a partir de 1919, funda com Palmiro Togliatti a Revista L´Ordine Nuovo, que se posiciona não só politicamente, mas também no campo cultural. Se dedica ao estudo de linguística de forma sistemática, escrevendo textos de solidariedade ao mundo cultural da Sardenha se aprofundando nos estudos de glotologia (1) do neo linguista Matteo Bartoli. Em1922, Gramsci foi à Rússia representando o Partido Comunista Italiano e lá conheceu sua esposa, Julia Schucht (1896 - 1980), uma jovem violinista, com a qual teve dois filhos Delio (1924 - 1982) e Giuliano (1926 - 2007). Em 1924, foi eleito Deputado Federal pelo PCI pela região do Venetto, dois anos depois em 1926 é preso pela polícia de Mussolini, que declara "É preciso calar a mente brilhante desse deputado." Nos cárceres do fascismo irá construir uma reflexão importante no marxismo, criticando o modelo centralizado e autoritário da União Soviética e de Stálin. A crítica gramsciana aponta a presença de uma vertente positivista no marxismo, considerando que esse muitas vezes se restringe a um economicismo reducionista, que não considera os aspectos culturais da transformação revolucionária. As reflexões serão manuscritas nos Cadernos do Cárcere, uma fragmentária abordagem de uma série de problemas, que partem de problemas cotidianos próximos e corriqueiros para amplas abstrações. Gramsci, terá uma importante reflexão sobre as formas de alcançar o poder pela esquerda, não de forma violenta mas pelo voto, sem que isso signifique um declínio da qualidade da mudança, ou da radicalidade revolucionária. Há em Gramsci o início de uma certa melancolia, em função da derrota da Revolução na Alemanha e na própria Itália, bloqueando a ideia da internacionalização do processo de mudança. A ascensão de regimes totalitários, o nazismo na Alemanha, e o fascismo na Itália foram exatamente movimentos que responderam ao perigo dessa internacionalização. Gramsci constroe uma argumentação, que identifica um centro, Inglaterra, França e EUA, uma periferia imediata no sistema capitalista, Alemanha, Itália, Espanha, Grécia, e uma periferia distante, dando um caráter espacial, geográfico e dinâmico. No qual, a subalternidade e a centralidade de determinadas burguesias ou da classe operária, dentro de uma concepção da história como uma ciência. A relação entre representantes e representados é problematizado, com base na força da organização das sociedades civis e da democratização das práticas cotidianas, operadas por sindicatos, associações e organizações de aglutinação de solidariedades. Ideologia e Hegemonia seguem uma relação dinâmica e dialética aonde discursos, falas apontam para um esforço de persuasão e convencimento. 
Um gradiente da presença de autoritarismo, a partir do centro e da periferia do sistema capitalista, contrapõe um padrão ou modelo do oriente ao ocidente, que desembocam em transformações violentas ou graduais. A fragilidade das burguesias é avaliada a partir dessa capacidade de persuasão passiva do conjunto de suas ideias na sociedade, numa poderosa analogia com a língua, molecular e permeada, como estrutura compartilhada bloqueadora do autoritarismo. A condição de subalterno de Gramsci, no espaço social da Itália será uma das fontes mais profícuas do seu pensamento, a noção de um certo centro impulsionador do capital, constituído primeiro pela Inglaterra e depois pelos EUA. A subalternidade da Itália nesse sistema mundial, a minoridade da burguesia italiana frente a inglesa, americana e francesa, sua declaração de dependência do Estado Nacional, a fraqueza do liberalismo italiano frente a essas outras três nações. A posição da Sardenha e a parte meridional da Itália agrária, católica e arcaica, frente ao norte industrializado, urbano e moderno. A reflexão de Gramsci terá sempre esse componente histórico espacial e cultural, que identifica especificidades, mapeia suas potencialidades e problemas, buscando sempre a estratégia da transformação. Mantendo sempre um otimismo propositivo. Sua consciência do desenvolvimento capitalista, sempre nos remete ao confronto entre o arcaico e o moderno, aonde as duas condições não são apenas polos antagônicos, mas realidades que tomam conhecimento mútuo, e muitas vezes exploram sua proximidade de forma complementar. Também a língua, sua evolução e seu desenvolvimento irão sempre constituir para Gramsci como um ordenamento estruturado de forma molecular e dispersa, e de baixo para cima, com transformações contínuas, que lhe permitiam analogias com a política. Além disso, a questão da língua sempre esteve nas reflexões de Gramsci relacionada à organização da cultura e à função dos intelectuais orgânicos das diferentes classes sociais. Um conceito fundamental para a compreensão da forma de pensar o poder em Gramsci, a pulverização da língua como patrimônio comum compartilhado por todos, e completamente avessa ás determinações centralizadas do poder institucionalizadoGramsci também construirá um forte vínculo entre linguagem e forma de estruturar o pensamento, negando de forma enfática o naturalismo e o mecanicismo, que imperava nos meios marxista do início do século XX. Mas ao mesmo tempo valorizando de sobremaneira a forma como a linguagem se estrutura, possibilitando a criação, a reformulação e a revolução dentro de parâmetros e regulações socialmente introjetadas em cada indivíduo. De baixo para cima. Para Gramsci, o estudo e o aprofundamento no fenômeno da linguagem sempre será proveitoso, reunindo criatividade e compreensão socialmente compartilhada, que na verdade impulsionam um devir histórico real e apartado do idealismo.
Na verdade, nos ensinamentos de Gramsci considero importante fixar e reforçar os seguintes conceitos, que estruturaram minha reflexão de doutorado, Projeto, Ideologia e Hegemonia; em busca de um conceito operativo para a cidade brasileira, no PROURB da FAU-UFRJ;
  • Ideologia: uma concepção mais neutra que negativa, quando comparada com a construção de Marx. Distinção entre Ideologias progressistas (socialista) e Ideologias conservadoras (burguesa). Visão dialética entre estrutura- superestrutura. Consciência da parcialidade da classe, superação do interesse corporativo, atingindo interesse universal. Analogia com a conquista do direito de voto da burguesia, contraposto a sucessão dinástica.
  • Hegemonia: Ideologia, que ganha supremacia junto ao tecido social, sendo compartilhada pela maioria, superação dos interesses econômicos corporativos atingindo valores universais. Coerção e Aceitação. Estado e Sociedade Civil. Hegemonia é política e cultural, importância dos meios de comunicação; jornal, rádio, etc... “Todos os homens são intelectuais, embora nem todos tenham na sociedade essa função.” GRAMSCI
  • Previsão (Plano e Projeto): Ausência de previsibilidade é associada a precariedade da vida cotidiana, na dissolução dos fundamentos sociais das formas tradicionais de expectativa. “A história é uma comparação implícita entre o passado e o presente...E por que seria ilícita a elipse quando a comparação é feita com uma hipótese futura, ao passo que seria lícita se feita com um fato passado?” GRAMSCI Q 10 página 311


A Industria cultural do cinema, crítica a alienação do
precariado
Theodor Adorno (1903-1969) e Max Hockheimer (1895-1973), dois filósofos da Escola de Frankfurt, um centro universitário da Alemanha, que se dedica a crítica cultural identificando assim como Gramsci a necessidade de transformação, a partir dos comportamentos do cotidiano. O tema de Adorno e Hockheimer se concentra na indústria cultural do cinema e da música identificando nela uma supremacia do entretenimento e da superficialidade, frente a um aprofundamento crítico. O livro, A dialética do esclarecimento, fragmentos filosóficos foi escrito por Theodor W. Adorno e Max Hockheimer em pleno exílio nos EUA, nos anos da ascensão do Partido Nacional-Socialista, que impediu as atividade do Instituto de Pesquisas Sociais (IPS), a Escola de Frankfurt, dentro da Alemanha de 1933 a 1945. Os dois filósofos alemães escrevem o livro exilados na costa oeste americana, na cidade de Berkeley próxima a San Francisco, convivendo com a emergência do modelo de uma cidade espalhada e de baixa densidade, dominada pelo automóvel e o pneu, que assiste ao surgimento da moderna indústria da cultura de massas, representada pelo cinema e pela música. Na Alemanha, o nazismo fora eleito determinando a perseguição aos judeus e aos intelectuais de esquerda, na União Soviética, Stálin havia assumido o controle do Partido Comunista calando vozes de diversos opositores. Mesmo nos EUA e na Califórnia, distantes das terríveis convulsões da Europa e iniciava a perseguição aos comunistas, que impuseram aos dois filósofos alemães uma série de constrangimentos. Adorno por exemplo, que não possuía o visto americano permanente, não podia se afastar mais de cinco quilômetros da Universidade e de sua casa, sem comunicar a polícia da Califórnia, o que já denotava o surgimento do Macarthismo (2), e da perseguição ao pensamento de esquerda. Por tudo isso, aqui emerge um marxismo desconfiado da coletividade e mesmo do proletariado, que radicaliza um discurso vanguardista e isolacionista, que Horkheimer já prenunciava no livro A teoria tradicional e teoria crítica de 1937;

"...a verdade buscará refúgio entre pequenos grupos de homens admiráveis." HORKHEIMER, citado por MERQUIOR 1987 página160 

Há uma desconfiança continuada sobre a ampliação do consumo das classes precarizadas, que efetivamente não representaram uma efetivação do esclarecimento, mas um entorpecimento e uma alienação generalizada. O discurso estadunidense de que no país não havia uma classe trabalhadora, mas apenas uma classe média consumidora, que desfrutava de bens e confortos permitidos pela ampliação contínua de sua economia é questionado contrapondo-se a ampliação da alienação do divertimento e do consumismo.


"Numa situação injusta, a impotência e a dirigibilidade da massa aumentam com a quantidade de bens a ela destinados. A elevação do padrão de vida das classes inferiores materialmente considerável e socialmente lastimável, reflete-se na difusão hipócrita do espírito." ADORNO e HORKHEIMER 1985 página14


O Mito de Ulysses na travessia do mar das sereias
O livro é composto por um Prefácio, que sistematiza a ideia de esclarecimento como destruidor dos mitos e ritos explicadores e instrumentador de uma ciência desmemorizada, simplificadora e unilateral. Já há nele um embrião de uma ideia importante para a Escola de Frankfurt a distinção entre duas racionalidades; a instrumental, e outra desinteressada e especulativa. Seguido por O conceito de Esclarecimento, no qual a razão instrumental e tecnológica é vista como legitimadora da dominação e do poder sobre a natureza ou outros seres humanos, que passam a ser objetivados. Seguido por dois excursos, um sobre o mito de Ulisses na Odisséia grega: 

  • Excurso (3) I: Ulisses ou Mito e Esclarecimento - visto como um testemunho precoce da civilização burguesa, onde sacrifício e renúncia prenunciam o domínio total da natureza humana e não-humana. E, o segundo excurso sobre Kant, Sade e Nietzche.
  • Excurso(3) II: Juliete ou Esclarecimento e Moral - onde emerge um sujeito autocrático, que descamba para uma objetividade cega, não admitindo mais o contraditório. A industria cultural e Elementos do Anti-semitismo.
Que são seguidos por, Notas e Esboços, que anunciam pesquisas futuras. Por essa estrutura, o livro denota uma certa processualidade inconclusa, ou uma perplexidade diante da transformação do esclarecimento em barbárie, a sombra do nazismo e de suas atrocidades domina a reflexão, sinalizando que o aumento do consumo de bens materiais não elevou o padrão da sociabilidade. Nesse curso, a abordagem da Escola de Frankfurt se ressente da ausência de Walter Benjamim, um pensador com uma abordagem mais positiva com relaçao a industria cultural de massa, notadamente no seu texto A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica

Michel Foulcault (1926-1984), aborda a crise da razão ocidental, identificando um profundo vínculo entre razão e poder, partindo do pressuposto da não existência de um pensamento desinteressado, e mais contemplativo. Suas teorias abordam a relação entre Poder e Conhecimento e sua vinculação com o controle social por meio de instituições sociais, que seriam como aparatos de vigilância. Foucault é considerado um pós estruturalista, e por muitos um pensador pós moderno. Foucault acabou rejeitando esses rótulos, preferindo classificar seu pensamento como interessado na formulação de uma história crítica da modernidade ou do presente. Seu pensamento foi muito influente tanto para grupos acadêmicos, quanto para ativistas nos movimentos de 1968 em Paris, e possui ligações com o niilismo (4) de Nietzche. Se Kant era entendido como Federdenker, alguém que escreve pensando, Foucault será um litero-filósofo, alguém que torna a filosofia pela linguagem mais acessível e compreensível ao grande público, atuando como grande produtor de polêmica. Suas principais contribuições escritas são;
  • História da Loucura (1961), 
  • A Palavra e as Coisas (1966) 
  • História da Sexualidade (1976-1984)
Em 1949 ingressou no PCF, rompendo com o partido em 1951, em sua obra são constantes a identificação de dominações e coerções a partir do diálogo interpessoal, mesmo entre duas pessoas próximas, apontando a presença da impossibilidade de interação social desinteressada. Há um certo culto a radicalização da alteridade, o reconhecimento de que cada indivíduo é uma ilha, o que exclui a possibilidade da razão genérica. A cognição desinteressada é uma constante na sociedade explicada pela recusa da possibilidade do nivelamento hierárquico entre pensadores e debatedores. Apesar de todas as classificações e enquadramentos Foucault sempre se afastou das definições comportadas de seu pensamento;

“Nunca fui freudiano, nunca fui marxista e nunca fui estruturalista.” FOUCAULT

Como grande polemista, Foucault já esteve mais na moda nos círculos arquitetônicos ou intelectuais, basta ver sua presença em livros na década de setenta, oitenta e noventa, tais como; A cidade como um jogo de cartas de Carlos Nelson dos Santos, ou o Declínio do homem público de Richard Sennet, ou mesmo Tudo que é sólido desmancha no ar ou Towards a New Architectural de Marshal Bermann. Todos citavam as interligações feitas pelo filósofo francês entre dominação e ordenamento do espaço, ou entre poder e arquitetura ao longo da história humana. Muito do pensamento de Foucault sobre arquitetura foi publicado numa entrevista que levou o título de O Olho do poder, como destaca Mauricio Puls em seu livro Arquitetura e Filosofia. Talvez o conceito caro a Foucault de Sociedade da Vigilância Contínua (1984) esteja sendo substituído pelo de Sociedade do Cansaço (2016) de Byung Chul Han. Aonde a vigilância foi substituída por uma ansiedade produtivista da sociedade concorrencial capitalista, que pelas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) nos mantém em estágio constante de trabalho, presos a racionalidade instrumental 24 horas por dia. Nesse sentido,  o Panóptico projetado por Jeremy Betham (1785), a prisão ideal, como arquétipo que otimiza a vigilância sobre o cotidiano humano contemporâneo, e que será aplicado como uma tese ao ordenamento da fábrica e do escritório burocrático modernos. Uma analogia entre o espaço da prisão, onde a torre de controle vigia os presos, e, estes últimos não sabem o que ocorre dentro dela. Foucault aponta este procedimento como a emergência da sociedade disciplinar, onde o indivíduo é isolado em sua cela, sente a vigilância de todos, mas não consegue saber se na torre de controle o vigia está presente ou não. Um estado consciente e permanente de visibilidade, onde a sociedade como um todo se torna espionável. Hoje tão recorrente em nossas vidas pela presença dissimulada e recorrente das redes sociais, tais como; Facebook, Instagram, Twitter, etc...

Palácio do Escorial, Espanha Felipe II
A pergunta colocada por Foucault para os arquitetos e os profissionais vinculados ao espaço permanece relevante; o poder pode declinar em sua tirania, ampliando sua representividade, mas a arquitetura e a ordenação do espaço permanecem uma arte aprisionada por ele? Pois apenas nele, se encontram os recursos para sua realização. Foucault menciona, que a história dos espaços é a história dos poderes, desde as pirâmides do Egito, passando pela acrópole da Grécia Antiga, a Praça de São Pedro em Roma, ou ainda Washington e Brasília, há sempre uma profunda vinculação entre arquitetura e poder. Sem dúvida, o vínculo entre construção e poder é real e inafastável, uma vez que construir demanda recursos, que apenas o poder e os possuidores de bens usufruem; mas e a previsão ou o projeto? A questão colocada por Foucault nos leva a uma reflexão sobre o sentido de planejar e projetar; Haveria possibilidade de gestão de um contra plano ou projeto? A construção é cara e vinculada ao Poder, mas e o Plano e o Projeto? O desafio nesse começo do século XXI seria franquear o acesso ao plano e projeto a parcelas da população, que nunca tiveram essa possibilidade em toda a existência humana.

Por último abordamos Jürgen Habermas (1929-), o último representante vivo da Escola de Frankfurt, que irá trabalhar sobre a diferenciação entre razão instrumental e razão comunicativa, dando a primeira uma restrita dimensão operativa, enquanto a segunda desfrutaria de uma maior legitimidade. Habermas é membro da Escola de Frankfurt, o Instituto de Pesquisas Sociais (Institut fur Socialforschung) tendo sido assistente de Adorno coopera com este na crítica ao positivismo lógico. Desenvolve sua teoria dos interesses cognitivos, em sintonia com o pensamento de Herbert Marcuse, e com a didática de Piaget especialmente em relação ao interesse emancipatório. Desde o início, sua obra transita ao redor da categoria da interação. O trabalho de Habermas trata dos fundamentos da teoria social, no qual a racionalização do mundo da vida ocorre mediante uma progressiva libertação do potencial de racionalidade contido na interação comunicativa. A ação orientada para o entendimento mútuo ganha cada vez mais independência dos contextos normativos, que são considerados no âmbito da racionalidade operativa. Em meados dos anos 1990 o filósofo Habermas decreta num texto no qual ironiza a tendência contemporânea de se utilizar do prefixo pós para caracterização do nosso tempo. O texto de Habermas distingue a modernidade do modernismo, dizendo que a pretensão humana de desígnio do seu futuro, que as revoluções americana e francesa tinham expressado permanecia inalcançado. Habermas constroe sua teoria da racionalidade comunicativa, que se contrapõe a racionalidade meramente instrumental, determinando que a razão não deve estar carregada de personalismos, mas construída a partir de conflitos. Abre-se uma nova perspectiva utópica, que não mais condena as gerações futuras a uma construção congelada e fixa, mas que celebra o processo de auto-construção e de auto-determinação.


"Com as fraquezas funcionais do mercado e os efeitos colaterais disfuncionais do mecanismo de mercado também desmorona a ideologia burguesa baseada na troca justa. Por outro lado, surge uma necessidade intensificada de legitimação: o aparelho do Estado, que agora não assegura mais apenas os pressupostos para a existência do processo de produção, mas toma a inciativa de intervir em tal processo, precisa ser legitimado nos domínios crescentes da intervenção estatal, sem que agora houvesse a possibilidade de recorrer à existência de tradições que foram soterradas e desgastadas no capitalismo concorrencial." HABERMAS, 2016 página431


Muitos formularam uma crítica a filosofia de Habermas em cima de sua filiação euro-cêntrica, uma vez que se referia ao mundo desenvolvido, que apresentava uma constante ampliação da esfera pública de debates e explicitação de conflitos. Realmente, havia nos anos setenta, a percepção de ampliação das formas de regulação do mercado, e a inclusão social promovidas pelas formas de ordenação governamental, pelo menos no espaço da Europa, Japão e dos EUA. Havia então um declínio do capitalismo concorrencial e uma forma de regulação das sociedades avançadas baseadas no fordismo, no domínio monopolista da economia, e no keynesianismo, que começou a desmoronar com a ascensão de Tatcher e Reagan no final dos anos setenta. Nesse contexto era fundamental a existência do Estado, regulando as interações humanas e arrecadando impostos para promoção do estado de bem-estar social (Welfare State). O reconhecimento, o acato das ordens, e as estruturas burocráticas do Estado eram reconhecidas e identificadas como ordenadores das interações humanas, e necessitavam ter legitimidade para operar. Há uma presença da burocracia do Estado, que vigia e regula as atitudes dos cidadãos, a partir de impostos, que retornam em serviços notadamente de saúde, habitação e educação, que o Brasil nunca usufruiu. Mas, apesar dessa crítica não como negar que o conceito habermasiano da Legitimação coloca um dos problemas mais agudos dos sistemas de governo representativos, pois medem a qualidade da relação entre governados e governantes, e que no Brasil dos últimos anos assume uma dimensão dramática. Ou metaforicamente, a capacidade de lobos se transmutarem em cordeiros, ou a delegação conferida a chacais para cuidar de rebanhos dóceis, ou ainda a variação entre passividade e ativismo de cidadãos e seus representantes. No Brasil e no resto do mundo, nossa condição sobre o julgo da hegemonia financeira ou do improdutivo rentismo, lançou numa luta pela sobrevivência todos os que vivem apenas de seu trabalho, os despossuídos.

Nesse ponto da aula, enveredamos por tentar compreender o significado do ato de planejar e projetar, representados pela arquitetura e urbanismo, na estruturação de sua formação acadêmica, e na compreensão socialmente compartilhada desse ofício. Desde tempo imemoráveis surge a figura do antecipador da construção, o agente que a pré-figura em desenhos e antecipações, dando previsibilidade ao que vai ser erguido. Muitos teóricos e críticos identificam na história do mundo ocidental, uma cristalização dessa atividade, no concurso da cúpula da Catedral de Santa Maria Maggiore em Florença, vencido por Filippo Bruneleschi (1377-1446), um ourives. Há uma infinidade de reflexões sobre ela, desde Leo Batisti Alberti (1404-1472), até Manfredo Tafuri (1935-1994) e Giulio Carlo Argan (1909-1992), que abordaram o significado da cúpula de Florença. Interessante salientar, que o arquiteto Bruneleschi nunca escreveu uma linha sobre esse feito notável do renascimento italiano, que envolvia uma síntese de elaboração de um objeto, ao mesmo tempo adequado à tecnologia, ao espaço interno (arquitetura) e à região e à cidade (urbano). Daí a a sua identificação como uma refundação ou fundação da profissão do arquiteto, no âmbito do ocidente reunindo uma tradição da cultura do construir e uma capacidade crítica sobre essa mesma cultura. A síntese bruneleschiana na cúpula de Florença envolve realmente uma complexa interligação entre saberes como; tectonia, arquitetura e urbanismo.

Realmente uma complexa interação entre empiria e conhecimento teórico abstrato, que envolve aquilo que Tafuri identificou como a "crítica operativa do real", uma reunião inusitada entre intuição operativa e desconforto com o módus operandi estabelecido. Uma atividade humana, que não reconhece no planeta que habitamos a capacidade de nos abrigar, investindo na sua transformação para obtenção do bem estar. Nos tempos contemporâneos, a partir da consciência da finitude dos recursos naturais, essa atividade ganha uma nova dimensão para exatamente adequar o habitar ao planeta.

“Segundo Vitruvio (séc.IIIA.C), a arquitetura nasce da fabrica e da ratiocinatio. A primeira consiste na experiência que o arquiteto adquire com o ato de construir. A segunda é a teoria que se vai constituindo como resultado da prática.” MACIEL 2006 página 44

Desde o Iluminismo, o debate sobre as profissões, tanto sobre a arquitetura quanto sobre o urbanismo, pretende construir a figura do arquiteto como um ideólogo social, capaz de organizar de forma persuasiva a cidade e o viver. Mais contemporaneamente o arquiteto, Manfredo Tafuri, no livro História e Teorias da Arquitetura dedicou-se ao termo, qualificando muitas vezes a atuação dos profissionais como uma ordenação ideológica, que aponta para um esforço de convencimento e cooptação social das idéias, de modo que estas ganhem permeabilidade social ou aceitação geral. Tal condição pode ser comprovada quando nos debruçamos sobre a História da Arquitetura, buscando a construção de seu sentido, que aponta para ampliação da sociabilidade humana, de sua interação social. A história da arquitetura está pontuada por esforços de mudar práticas humanas arraigadas adequando-as aos novos tempos, tais como; no Iluminismo no seu esforço de deixar transparentes os recursos aplicados a transformação da obra, ou no modernismo na sua ênfase no habitar coletivo, ou ainda na contemporaneidade com sua adequação a nova consciência de limitação dos recursos do planeta. A ordenação ideológica e o alcance da hegemonia são operações constantes nesses exemplos para convencer o conjunto da sociedade da necessidade de mudança. Portanto, é necessário enfatizar a presença da ideologia em nosso mundo contemporâneo, esta simples palavra possui uma das caracterizações mais dinâmicas dentro das ciências sociais. A Ideologia sob o ponto de vista do senso comum se constitui como um conjunto de crenças, idéias, pensamentos, doutrinas de um indivíduo ou de um grupo social, que estruturam o seu agir. Habermas, em seu livro, O discurso filosófico da modernidade destaca que a necessidade de auto-legitimação do pensar moderno determinou que o homem se tornasse refratário a seguir sistemas de idéias já instalados, buscando sempre reconstruir sua visão de mundo particular. A desconfiança frente a sistemas de crenças instituídos é cada vez mais intensa, gerando uma constante instabilidade na produção ideológica.

Daí nossa necessidade de abordar a história das construções humanas e particularmente da cidade como o fruto de um projeto único e coletivo realizado no tempo longo, com a aspiração de ampliação da participação humana na construção da cidadania. Nesse sentido, a primeira modernidade, da belle epoche gera um modelo higienista, que se repete com grande recorrência em diferentes locais, aonde há uma malha estrutural de vizinhança contraposta a grandes avenidas, que otimizam a circulação. Numa obsessiva busca por iluminação e aeração das ruas, do movimento higienista em cidades novas ou pré existentes, com os exemplos de;
  • Barcelona, Espanha 1849, 
  • Paris, França 1853, 
  • La Plata, Argentina 1882,
  • Belo Horizonte, Minas Gerais Brasil 1897 e 
  • Rio de Janeiro 1905.
Esse higienismo será a primeira reação estruturada à grande cidade industrial, que explodia na Europa e nos EUA, na passagem do século XIX ao XX. Nesse sentido, o modernismo é fruto da grande cidade industrial e se manifesta primeiro na América, aonde determinadas aglomerações tiveram crescimentos gigantescos nunca vistos na história humana. Esse processo representou, ao final do século XX, a transformação da humanidade de agrária e rural em urbana e densa. A cidade de Chicago na passagem do século XIX para o século XX assiste um debate entre o Movimento do City Beatiful de Burnham - academicista e eclético - e as tendências organicistas e modernistas de Louis Sullivan e de Frank Lloyd Wright que se antecipam em vários anos aos debates das vanguardas centro-européias. De certa forma, a Escola de Chicago de Arquitetura anuncia a hegemonia estadounidense, que se materializará de forma definitiva no segundo pós-guerra, com a emergência dos EUA como nação mais poderosa no mundo. Então, as vanguardas centro-européias seguindo preceitos da Escola de Chicago de Arquitetura, fundaram o modernismo com a pretensão de instituir uma nova objetividade (neue saslichtekeit), na qual os monumentos eram a morte da arquitetura, onde se buscava uma nova essência que estava na grande cidade industrial. Basta lermos Adolf Loos ou Oto Wagner, arquitetos da Secessão Vienense que afirmavam a emergência de uma nova ética do construir, onde o que lhes interessava não era mais; os organismos governamentais, o teatro de ópera ou o parlamento, a arquitetura da exceção, mas a habitação extensiva das periferias intermináveis da cidade industrial européia.

Os exemplos desse esforço se sucedem na Europa no período entre guerras, principalmente na sua região central; da República de Weimar Alemã, da Austria, da Tcheco Eslováquia, aonde administrações social-democratas buscam reduzir as agruras dos imigrantes recém chegados a cidade, com a produção habitacional. A casa do operário ou da classe média, que se constituia na grande massa edificada da cidade industrial, as periferias desse fenômeno inusitado que também explodia na Europa na sua escala e tamanho, determinando um contínuo construído rápido, feio e inadequado. As infraestruturas urbanas e a habitação produzida em massa são os temas eleitos pelas vanguardas centro-européias. O Metrô de Viena, os conjuntos de Karl Marx Hof também na capital austríaca, o conjunto habitacional de Wiessenhof em Stugart na Alemanha, ou ainda o Karl Liegen Stadt de Bruno Taut em Berlim são testemunhos desse esforço de inclusão de massas que aportavam as cidades. Com essa estratégia, não há como negar que o modernismo conquistou corações e mentes em todas as partes do mundo, com diferentes nuances e formulações ele encarnou um desejo na sociedade de ampliação da autonomia dos povos na definição de seu futuro, de seu vir a ser, materializado na produção indiferenciada da habitação social. Mas esse posicionamento sofre uma inflexão na década de 30, como apontado pelo historiador Keneth Frampton, com a emergência da hegemonia de Le Corbusier no cenário dos CIAMs. A cidade imaginada na modernidade corbusieana radicaliza as transformações propostas pela primeira modernidade, rompe-se a estrutura tradicional baseada na rua, na quadra e no lote. As edificações ficam independentes do traçado das ruas. Há uma crença na especialização de partes do território da cidade, que passam a estar segregados em áreas de lazer, habitação e trabalho, como se fosse a tendência da cidade industrial. O automóvel assume a dimensão do transporte único e exclusivo da cidade, num rodoviarismo, que irá fortemente impactar a vida urbana. O automóvel ocupa e demanda um espaço exclusivo nas aglomerações urbanas, assumindo um papel destruidor da convivência e da interação urbana. No contexto do Brasil, o modernismo assume uma face criativa e generosa, reinterpretando o modernismo corbusieano, dando-lhe uma face inusitada e inovadora, sintetizada e concentrada no projeto das super quadras de Brasília do ideólogo Lucio Costa.
Nos mesmos anos, da concepção de Brasília, o autor Christopher Alexander se propõe a mapear a gênese da evolução da forma no processo de desenvolvimento do projeto, com o claro interesse de impulsionar a participação do usuário na elaboração do seu ambiente construído. Desenvolve-se nos EUA o advocacy planning ou projeto participativo, no qual o processo de construção do vir a ser de comunidades específicas é celebrado como a verdadeira pulverização da democracia. Os livros, Ensayo sobre la Síntese de la Forma (1964) e Una linguagem de padrons, , A pattern Language (1972) do mesmo autor desenvolvendo a ideia do plano e do projeto como processo de desenvolvimento da construção do bem viver. No Brasil, Carlos Nelson dos Santos lança o livro A cidade como jogo de cartas, no qual celebra uma certa neutralidade do desenho da grelha, que impulsiona sua apropriação por diferentes agentes no longo prazo da cidade. Num paradoxo, o Plano de Nova York de 1811 decreta uma imensa homogenização do território baseado na malha xadrez. Os elementos celebrados são a rua, a quadra e o lote como unidades em torno dos quais o jogo da cidade é jogado. Nesse paradoxo, Carlos Nelsom dos Santos aponta que apesar desse inicio homogenizador, aonde todos os lotes são iguais no seu dimensionamento - testada e profundidade - a ilha de Manhattan apresenta hoje grande diversidade de tipologias, usos e contínuos diferenciados. Se restabelece a possibilidade da construção utópica, que deixa de ser um objetivo fixo e congelado, mas a celebração de uma processualidade que restabelece a necessidade da presença contínua da criatividade das futuras gerações. O jogo pressupõe agentes e atores igualmente empoderados, que declaram suas intenções e negociam objetivos, a racionalidade abandona a subjetividade isolada e se aproxima da inter-subjetividade.

Um pouco antes, nos anos 1950 o arquiteto Loui I. Khan (1901-1974) retoma o tema da monumentalidade e quebra a unidirecionalidade tecnológica dos materiais, retomando o tijolo como elemento pré-moldado mais potente. Em 1947 Khan assume a cadeira de arquitetura em Yale, fazendo reflexões fundamentais, como: “O que o lugar quer ser?” “ Programa morto e vivo” “Espaços que servem e os que são servidos”. No começo da década de 60, Jane Jacobs  no livro Morte e Vida das Grandes Cidades Americanas (1961), no qual decreta a perda da vitalidade das cidades americanas em função de um rodoviarismo exacerbado, presente no modernismo nos projetos de Le Corbusier como o Plano Voisin para Paris. A jornalista Jane Jacobs desenvolve a ideia de protagonismo do usuário no desnho das cidades;

"As cidades tem a capacidade de prover algo para alguém, somente porque, e apenas quando, são criadas por todos... Não existe melhor expert na cidade do que aqueles que vivem e experimentam seu dia a dia." JACOBS 1981 página 77
Essa mesma década de 60, explode com a emergência de um mundo que decreta o fim das vanguardas e a presença de uma grande massificação, aonde uma parcela inimaginável passa a acessar o conhecimento. O mundo elitizado da primeira modernidade dá lugar a uma imensa massificação, que está espelhada nos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, que começam em La Sarraz no ano de 1928 com vinte e oito arquitetos e terminam em Dubrovnick no ano de 1956, com uma multidão de estudantes. Passando para nossa contemporaneidade, em 2002, Kenneth Frampton lança o livro Studies in Tectonic Culture, no qual identifica a saturação do problema do símbolo e da representação no campo da arquitetura, apontando como saída o desenvolvimento da tectônica. O compromisso com o construído. As obras de grandes arquitetos são analisadas a partir da escolha de diferenciados modos de construção, que recolocam a complexa relação entre custo e benefício no projeto. Nesse mesmo tempo, o arquiteto Rafael Moneo lança em 2008 Inquietação Teórica e Estratégias Projetuais, no qual rejeita a adoção de um personalismo de linguagem por parte dos arquitetos, celebrando a idéia da reinvenção do arquiteto a cada novo projeto. Cada novo projeto representa uma oportunidade, que demanda do arquiteto uma leitura específica de cada lugar.
Por último, destaca-se o pensamento de uma dupla de pensadores franceses, que recolocam a questão da luta pela transformação mais ampla de nossa condição contemporânea, aonde é revalorizado o conceito de Comum.

"A raiz etimológica da palavra "comum" nos dá uma indicação decisiva e uma direção de pesquisa. Émile Benveniste indica que o termo latino munus nas línguas indo-européias, pertence ao vasto registro antropológico da dádiva e designa ao mesmo tempo um fenômeno social específico... Encontramos nos significados do termo a dupla face da dívida e da dádiva, do dever e do reconhecimento, própria do fato social fundamental da troca simbólica... Não se trata, primordial ou principalmente, de dádivas e obrigações entre parentes e amigos, mas, na maioria das vezes, de prestações e contraprestações referentes a toda uma comunidade." DARDOT e LAVAL 2017, página25

Os dois autores retomam os textos do jovem Marx, que em 1842 escreveu uma série de artigos na Gazeta Renana (Reinish Zeitung), sobre a lei que impedia a coleta de lenha nas florestas privadas da Renânia, que constituem a abertura do filme do diretor haitiano Raoul Peck, que descreve o começo da vida do filósofo alemão, desse momento até a síntese do Manifesto Comunista em 1848, junto com Engels. Esses textos destacam a profundidade das reflexões de Marx a partir do problema da coleta de lenha naturalmente caída no solo, com respeito a filosofia do direito, um tema caro ao seu mestre, o também filósofo Hegel. No final da aula numa rápida autocrítica dessa coletânea observa-se a ausência do pensamento feminino, que deve ser corrigida numa próxima reflexão, abordando a ; Arquitetura, Cidade, Filosofia. A menção à Rosa Luxemburgo (1871-1919) que desenvolveu um profundo pensamento sobre: Militarismo, guerra e classe trabalhadora (1913), A acumulação do capital (1963); E,  Hannah Arendt (1906- 1975), com: Origens do Totalitarismo, antisemitismo, imperialismo, totalitarismo (1951), Eichmann em Jerusalém (1963) termino essa duas aulas.


NOTAS:

(1) Glotologia – estudo da evolução da língua coloquial
(2) Macarthismo - movimento notadamente anticomunista, inspirada no movimento dirigido pelo senador Joseph Raymond McCarthy 1909-1957, que dominou os serviços secretos americanos.
(3) Excurso - tem como significado; desvio, digressão, divagação, ou desvio do tema principal.
(4) Niilismo - doutrina filosófica que nega  a existência do absoluto, quer como verdade, quer como valor ético

BIBLIOGRAFIA:

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___________, Christopher - Una lenguagen de padrons - Editorial Gustavo Gili 1981 Barcelona

ARENDT, Hannah - Sobre a Revolução - Companhia das Letras São Paulo 2001

________, Hannah - Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal - Companhia das Letras São Paulo 2002

ARRIGHI, Giovanni - O longo século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo - editora Unesp São Paulo 1996

BACHELARD, Gaston - A formação do espírito científico, contribuição para uma psicanálise do conhecimento - Editora Contraponto Rio de Janeiro 1999

BRAUDEL, Fernand - The Wheels of Commerce - Harper & Row, Nova York 1982

DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian - O comum, a revolução do século XXI - Editora Boitempo, São Paulo 2017

FOUCAULT, Michel - Vigiar e Punir - Editora Vozes Petrópolis 2000

FRAMPTON, Kenneth - Studies in Tectonic Culture - MIT Press Londres 2001

__________, Kenneth - História Crítica da Arquitetura Moderna - Editora Martins Fontes São Paulo 2007

FRÖLICH, Paul - Rosa Luxemburgo, Biografia - Editora Boitempo São Paulo 2019

GABRIEL, Mary - Amor e Capital, a saga da família de Karl Marx e a história de uma revolução - editora Zahar Rio de Janeiro 2013

HABERMAS, Jürgen - Para a reconstrução do Materialismo Histórico - Editora Unesp 2016 São Paulo

____________, Jürgen - O discurso filosófico da modernidade - Edição Martins Fontes 2002 São Paulo 2002

HOBSBAWM, Eric - Como Mudar o Mundo, Marx e o marxismo de 1840-2011 - Editora Companhia das Letras São Paulo 2011

JACOBS, Jane - Morte e Vida das Grandes Cidades Americanas - Editora Martins Fontes São Paulo 2000

JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo - Dicionário Básico de Filosofia - Jorge Zahar Editores Rio de Janeiro 2006

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KRAUSZ, Tamás - Reconstruindo Lênin, uma biografia intelectual - Editora Boitempo 2017
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LÊNIN, Vladimir Ilitch Ulianov - O estado e a Revolução, a doutrina do marxismo e as tarefas do proletariado na revolução - Editora Boitempo São Paulo 2017

LIGUORI, Guido e VOZA, Pasquale - Dicionário Gramsciano - Editora Boitempo São Paulo 2017

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MARX, Karl e ENGELS, Friedrich - A Ideologia Alemã: Crítica da novíssima filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Brauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas, 1845-1846 - Civilização Brasileira Rio de Janeiro 2007

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MONEO, Rafael - Inquietação Teórica e Estratégia Projetual - Editora Cosac Naify São Paulo 2008

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RAPONE, Leonardo - O jovem Gramsci: cinco anos que parecem séculos 1914-1919 - Editora Contraponto Rio de Janeiro 2014

SANTOS, Carlos Nelson - A cidade como jogo de cartas - Editora Projeto São Paulo 1988

SCHUMPETER, Joseph A - Capitalismo, socialismo e democracia - Editora UNESP São Paulo 2017

TAFURI, Manfredo - História e Teorias da Arquitetura - Editorial Presença Lisboa 1981

terça-feira, 9 de junho de 2020

Aula 1: Arquitetura, cidade, filosofia, pandemia (apontamentos)

A epidemia do Covid-19 radicaliza uma presença constante da era moderna e contemporânea, o impulso de conhecer e problematizar a sociedade em que vivemos, na sua operação, principalmente no que se refere a sua capacidade de distribuir felicidade e bem estar entre todos. Uma mudança na inércia comportamental, de certa maneira abrupta da existência estabelecida e comportada, determinado por um agente biológico de um vírus, como o da pandemia de Covid-19. É claro também, que a aspiração a sua transformação em algo diverso do existente decorre de uma diversidade de visões e narrativas, que disputam o metabolismo social, todas almejando ser compartilhada pela maior parcela. Há uma clássica divisão entre os conhecimentos ou as narrativas, que disputam a opinião social. De um lado, uma parcela dita progressista, que luta contra a manutenção de sua forma operativa; alienada, competitiva e repetitiva, bloqueadora da felicidade e do bem estar. E, de outro lado, uma parcela conservadora, que reafirma que a forma de funcionar da sociedade contemporânea competitiva é adequada, e que, não deve ser questionada, pois sua própria reprodução permitirá alcançar a felicidade e o bem estar. Há um pós epidemia colocado no futuro, que várias correntes disputam qual será sua configuração, numa disputa de narrativas que se sobrepõe, repetindo como será nosso "novo normal". Como ele se reestruturaria? Havendo, claramente um paradoxo, nessa expressão "novo normal", uma vez que, se verdadeiramente "novo" deveria não ser "normal". Será, já um direcionamento em favor do conservadorismo? No Brasil, o discurso conservador ganhou terreno a partir de uma série de acontecimentos desde o processo de redemocratização, que podem ser resumidos em quatro pontos; 

  • as tradições estruturais do autoritarismo brasileiro, 
  • a longa recusa do enfrentamento em nossa história desse mesmo autoritarismo, 
  • o capital rentista que apura valores exorbitantes sem produzir nada e 
  • a curta conjuntura de emergência de grupos milicianos e para militares, a partir de 2013, que endemonizaram a política pós constituinte de 1988. 
Tais pontos estão de certa forma naturalizados em nossa sociedade, em uma série de comportamentos e atitudes cotidianas.


"O machismo foi tornado crime, o que lhe reduz as manifestações públicas e abertas. Mas ele sobrevive no imaginário da população, no cotidiano da vida privada, nas relações afetivas e nos ambientes de trabalho, nas redes sociais, nos grupos de whatsapp, nas piadas diárias, nos comentários entre os amigos “de confiança”, nos pequenos grupos onde há certa garantia de que ninguém irá denunciá-lo. O mesmo ocorre com o racismo, com o preconceito em relação aos pobres, aos nordestinos, aos homossexuais. Proibido de se manifestar, ele sobrevive internalizado, reprimido não por convicção decorrente de mudança cultural, mas por medo do flagrante que pode levar a punição. É por isso que o politicamente correto, por aqui, nunca foi expressão de conscientização, mas algo mal visto por “tolher a naturalidade do cotidiano...O “brasileiro médio” gosta de hierarquia, ama a autoridade e a família patriarcal, condena a homossexualidade, vê mulheres, negros e índios como inferiores e menos capazes, tem nojo de pobre, embora seja incapaz de perceber que é tão pobre quanto os que condena. Vê a pobreza e o desemprego dos outros como falta de fibra moral, mas percebe a própria miséria e falta de dinheiro como culpa dos outros e falta de oportunidade. Exige do governo benefícios de toda ordem que a lei lhe assegura, mas acha absurdo quando outros, principalmente mais pobres, têm o mesmo benefício.” LAGO 2020


Desde tempos imemoriáveis a filosofia se dedica a Teoria da descrição do real, como podemos nos apropriar do que existe, vê-lo de forma precisa e convincente, descrevê-lo de forma aceitável e persuasiva, que na contemporaneidade corresponderia ao que denominamos; narrativas ou lugares de interpretação ou fala. Platão (428-348 a,C.), a partir da Alegoria da Caverna, que está no livro VII da República, e sucede A analogia do sol e A analogia da linha dividida e descreve o processo de desvelamento do real, como uma sucessão de aproximações a partir de diferentes fontes de iluminação. Primeiro a fogueira no interior da caverna e depois o sol no ambiente aberto e natural constroem uma sucessão de compreensões, que vão ao final desvendar o objeto do conhecimento. As perguntas; o que é exatamente conhecer? O que me autoriza a afirmar que realmente conheço um assunto? Quem me garante que o que sei, ou acho que sei, corresponde ao real? Coisas banais como uma cadeira podem ser conhecidas pela experiência ou pela empiria; sua cor, a maciez do assento, sua solidez, seu espaldar, sua materialidade de madeira, seu desenho, e sua estrutura. Para ir além da empiria precisamos trilhar caminhos, que nos exigem mais abstração teórica; como ela se relaciona com outras cadeiras, sua concepção, seu estilo, sua técnica produtiva, qual sua conexão com o tempo que a concebeu, etc...

As visões de mundo se agruparam em Escolas do Pensamento, que forneciam chaves variadas para essa compreensão, mesmo na Grécia Antiga houve cisões entre a Academia, onde se agrupavam Platão e Aristóteles (384-322 a.C.), e o Jardim de Epícuro (341-217 a.C.), um outro filósofo que a partir do hedonismo irá celebrar o prazer racional. A felicidade e o prazer eram os objetivos maiores da filosofia para Epícuro, que fundará em torno dessa doutrina uma série de colônias, fundadas por seus seguidores e discípulos em torno de um Evangelho, e que se instituíram desde a Espanha ao Oriente Médio, os chamados Jardins de Epícuro. Locais aonde se celebrava a festa e a produção para o compartilhamento da amizade entre mestres e discípulos materializados em refeições e festas de confraternização.

"Trata-se, portanto de um conhecimento que não pode ficar limitado à percepção sensível direta: precisa construir interpretações abstratas, baseadas em informações que não podem ser imediatamente cotejadas com a experiência vivida pelo observador. O sujeito se abstrai da multiplicidade das sensações, da percepção imediata, e se fixa em determinados elementos, que vão sendo desdobrados e postos em conexão uns com os outros." KONDER 2002 página16

Esses desdobramentos das questões sensitivas imediatas, empíricas, até as abstrações teóricas, conectadas entre si, conformando todas uma experiência do conhecer vai construindo o saber, que pode incorrer em equívocos e erros. Esses últimos, equívocos e erros, parecem mais fáceis de acontecer no momento inseguro do início da apreensão, mas se tornam mais difíceis de serem identificados, depois que a argumentação do conhecimento é construída, e colocada em pé pelo sujeito. Há sempre riscos de descaminhos, por isso um dos campos mais importantes da reflexão filosófica se materializou na Teoria do Conhecimento, que desvenda não apenas o objeto, mas também o sujeito. Certamente, o argumento mais convincente dessa argumentação venha exatamente do termo em grego para designar a verdade, alétheia, aonde "a" é um prefixo negativo, e "létheia" é ocultação, latência, ou recalque. Na verdade, "létheia" é também da mesma raiz latina de "latere", que nós conservamos no português com a palavra; "latente", como sinônimo de "oculto", recalcado, escondido. Portanto, o termo grego "alétheia" reforça a ideia do conhecimento ou da verdade, como um processo contínuo de desocultação, de desvelamento, como uma construção interminável, aonde não apenas o objeto é compreendido, mas também o sujeito. O desvelamento é contínuo e interminável, pois são infinitas as possibilidades de abordagem do objeto, que sempre pode ser delimitado de diversas formas.

Interessante cotejarmos características e conceitos imputados á sociedade brasileira, como; o patriarcalismo ou o patrimonialismo, submetidos ao processo de desocultação continuada. Enquanto, o patriarcalismo envolve uma certa concentração de poder no patriarca da familia ampliada com seus agregados, num processo contínuo e expansivo de apadrinhamento, que envolve benefícios e obrigações. O patrimonialismo envolveria uma indefinição entre as esferas públicas e privadas, entre o Estado e a Sociedade, que teria suas origens num iberismo e nas Capitanias Hereditárias, aonde o sujeito se denomina a representação natural do poder; "O Estado sou eu." Mas essas duas características-conceitos, que se reforçam mutuamente também estão sujeitas a sua superação, pois sua própria fixação sofre conflitos e questionamentos de forma contínua.

"A verdade do ser consiste na fidelidade à dialética da desocultação. Ora, um pressuposto dessa dialética é que nenhum momento, nenhum estágio da desocultação esgota o ser. Em outras palavras: em nenhum instante, a face presente do tornar-se presente que é o ser é capaz de materializar toda a realidade. De modo que qualquer fixação unilateral do presente levaria a esquecer a verdadeira natureza do ser." MERQUIOR 1969 página 161

O inglês Francis Bacon (1561- 1626) no seu Novum Organum escrito nos tempos do Renascimento Europeu pretendia recuperar o trato direto com as coisas, da experiência empírica se rebelando contra o pensamento da filosofia escolástica, para se libertar de uma imensa quantidade de noções, que ele chamava de ídolos. De acordo, com ele eram quatro as espécies de ídolos que serviam as conveniência humanas para expressar a correta realidade da natureza e do mundo; ídolos da tribo, ídolos da caverna, ídolos do foro, e ídolos do teatro. Os ídolos da tribo eram os que levavam o gênero humano a acreditar que sua visão era a expressão geral e correta da realidade. Os ídolos da caverna eram os que levavam os indivíduos a acreditar que sua opinião tinha valor universal e aceitação geral. Os ídolos do foro provinham da comunicação entre indivíduos através da linguagem e da imperfeição das palavras. Por último, os ídolos do teatro derivavam do fato de que todas as ideias chegam aos indivíduos através de encenações sancionadas pela tradição, sejam elas filosóficas, científicas, ou crendices e superstições. Os ídolos seriam como obstáculos, condicionadores do pensar que bloqueavam seu livre caminhar, dando-lhe um sentido automático e mecânico, que hoje poderiam estar representados pelas culturas institucionais que participamos, como; a família ou clã (tribo), o nosso círculo de relações (caverna), da linguagem corriqueira, exclusiva ou profissional (foro) e dos aparatos formadores que nos instruíram (teatro).

Os ídolos parecem evoluir com a complexidade de conformação do conhecer e da experiência compartilhada de um existir; no clã, nas amizades, na língua e nas escolas. Um represamento dos afetos de identidade, que nos formaram e que todos temos, que precisam ser explicitados e dimensionados, para que sejam superados, ou reconhecidos como presenças limitadoras. Límites, que muitas vezes só nos é dado compreender ou se aproximar quando somos fustigados pelo outro, pela diversidade, pelo confronto e pela polêmica de outras formas de construir o pensamento, muito além da nossa formação. A intrínseca multi disciplinaridade do saber, que envolve diferentes formações e pensamentos, cooperando de forma conflituosa de forma a superar os ídolos de barro.

"O intelecto humano não é luz pura, pois recebe influência da vontade e dos afetos, donde se pode gerar a ciência que se quer. Pois o homem se inclina a ter por verdade o que prefere. Em vista disso, rejeita as dificuldades, levado pela impaciência da investigação; a sobriedade, porque sofreia a esperança; os princípios supremos da natureza, em favor da superstição; a luz da experiência, em favor da arrogância e do orgulho, evitando parecer se ocupar de coisas vis e efêmeras; paradoxos, por opinião do vulgo. Enfim, inúmeras são as fórmulas pelas quais o sentimento, quase sempre imperceptívelmente, se insinua e afeta o intelecto." BACON, citado em KONDER 2002 página19

Michel Montaigne (1533-1592) jurista, filósofo e cético francês também do Renascimento se chocava com o comportamento e atitude dos europeus, frente aos povos do novo mundo, afirmando nos seus ensaios um livre pensar associativo e descompromissado de escolas e vertentes. A partir, da interação com os povos do Mundo Novo, trazidos a Europa denuncia a estreiteza da cultura europeia, chocando-se com o tratamento brutal e desrespeitoso com a diversidade do outro. Dois séculos mais tarde, Denis Diderot (1713-1784), o editor chefe e cofundador da Enciclopédia Iluminista, retoma a crítica de Montaigne aprofundando a crítica ao eurocentrismo, localizando um certo belicismo da Europa, na questão da propriedade privada. Afinal, para os selvagens a posse da terra era comum, o que determinava um ambiente mais pacífico e civilizado, livre das guerras que sempre nasciam de uma pretensão comum a mesma propriedade. A pretensão do eurocentrismo, que não enxergava as diferenças e outros arranjos societários, na verdade impede e bloqueia uma compreensão mais ampla de nós mesmos. Interessante pensar, que a diversidade não está apenas no saber constituído em diferentes matrizes, mas também em diferentes existências, consideradas como formadoras e aprendizados compartilháveis. A experiência do índio, da mulher, do negro, do favelado enfim do outro, do subalternizado carrega em si um saber e um conhecimento que precisa ser ouvido, explicitado, construído. A experiência empírica do colonizado precisa se expressar para fazer o colonizador perceber a ignorância na qual está mergulhado, numa racionalidade restrita, imperfeita e inacabada.

Daqui se depreende o medo e a insegurança que o autoritarismo bolsonarista está submetido, na medida em que não tolera a argumentação do outro, do diverso, daquele que não pensa como o patriarca, branco, heterossexual e competitivo. Por isso, reduz todos os opositores a ídolos panfletários incompreensíveis, negando o contraditório, querendo a todo custo se manter num pseudo saber simplificante, construtor de frágeis argumentos. As manifestações como; "não há povos no Brasil, apenas um povo brasileiro" (Weintraub - Min. da Educação) ou "o nazismo que tinha o nome de nacional-socialismo está mais próximo do socialismo do que do capitalismo" (Ernesto Araújo - Min. Relações Exteriores), ou ainda, por conta de protestos e reinvindicações; "Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez." (Paulo Guedes - Min. da Economia) denunciam uma forte insegurança da própria construção, pretendendo se afastar ou calar as manifestações contraditórias. O fascismo buscou esse mesmo anti intelectualismo, um culto pelo simplismo reducionista, por figuras espontâneas e populares em seus gestos e pensamentos, como Hitler e Mussolini, aonde o caricato se aproxima do homem comum.

"Em primeiro lugar, é preciso saber formular problemas. E, digam o que disserem, na vida científica os problemas não se formulam de modo espontâneo. É justamente esse sentido do problema que caracteriza o verdadeiro espírito científico. Para o espírito científico, todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não há pergunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente. Nada é gratuito. Tudo é construído." BACHELARD 1999 página18

Nesse sentido, Immanuel Kant (1724-1804), constroe seu pensar e interpretar o mundo a partir de uma interação complexa e dinâmica entre sujeito e objeto, ser e dever ser, ciência e ética, razão e juízo. Kant desenvolve e determina um pressuposto básico da teoria do conhecimento ou da representação do real presente nas três críticas - A crítica da Razão Pura (1781), Crítica da Razão Prática (1788) e a Crítica do Juízo (1790). No pensamento kantiano há um gradiente, uma complexidade e ao mesmo tempo uma interação multi direcionada, entre três conceitos fundamentais de percepção do que existe de fato; a ética, a ciência e a arte, ou os correlatos; o dever ser, o ser e o sensível. Um processo complexo, que envolve aproximações sucessivas sobre o real, a partir; das possibilidades do futuro, do que é, e do jogo lúdico da experiência, ou ainda; a reflexão, o reflexo e o juízo. O pensamento de Kant segue uma sistematização complexa, na qual ser e dever ser estão inicialmente separados, no sentido de que um (ser) é a totalidade do real que apreendemos, e o segundo (dever ser) são os preceitos éticos e morais. Na última crítica, a do Juízo, Kant reforça os elementos do pensar ligados a imaginação, e ao processo de livre pensar que era categorizado na expressão em alemão "Federdenker", ou seja, pensa escrevendo. Antes da publicação da primeira crítica, Kant ministrou um curso nos anos de (1779-80), denominado Antropologia, no qual abordava as possibilidades da imaginação agir sem coerção no processo de escrita, no qual, de certa forma, reforça essa disponibilidade do livre pensar. Uma livre associação de ideias e especialidades, como uma rede de entidades vivas e interagente, no qual há o abandono do nível de equilíbrio consolidado e estável do saber. Kant irá perceber a necessidade do repouso das ideias, no qual a imaginação floresce, impulsionando o processo criativo além do interesse e do desempenho o que se pretende é o pensar onírico. Uma crítica clara ao positivismo da ciência, que acreditam apenas no relacionamento direto de causas e efeitos simplificadores, na eleição de uma única lógica; médica, judiciária, econômica, etc... Um investimento no olhar demorado e lento, que se articula a partir de diversos saberes e especialidades, que são conectados pelo pensar desinteressado das ciências humanas; a antropologia, a filosofia, a política, que se utilizam de abordagens generalistas, que conectam saberes.

"Desta forma, as ideias poderiam surgir com o livre curso da imaginação: "devemos ter à mão uma folha de papel dobrada no meio, na qual vamos registrando promiscue todas as imagens que digam respeito à matéria. Além disso, também precisamos fazer alguns intervalos enquanto pensamos, os quais contribuem de maneira extraordinária para o descanso e fortalecimento da imaginação. Também devemos evitar reler com frequência aquilo que nós mesmos tivermos escrito. Não devemos ler escritos sobre a matéria a respeito da qual estamos refletindo, do contrário atamos o gênio." KANT 1995 página11

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 Stutgart - 1831 Berlim) foi amigo e conviveu com o poeta Friedrich Hölderlin, e com o também filósofo Joseph Von Schelling, participando na ainda não unificada Alemanha, dos acontecimentos da Revolução Francesa (1789). Estudou no seminário teológico e protestante de Tubingen (1788-1793) na região de influência de Stutgart, no que era o Ducado Würtemberg. Depois, foi preceptor na cidade de Berna na atual Suíça, mantendo-se mobilizado pelos tema religiosos,  principalmente a partir do texto de Kant; A religião nos limites da simples razão. Na qual, a determinação ética do pensamento segue uma trilha entre a moral e a religiosidade, na mesma trilha da humanização do sagrado, encarnado na figura de Jesus Cristo e nos questionamentos de Lutero, expressos no drama entre a doutrina eclesiástica e a fé do sujeito. Há uma distinção importante, nesses escritos da juventude, entre a religião estatutária e a popular e da comunidade, sendo essa última a que sintetiza a racional e universal vontade do sagrado. Hegel foi um entusiasta dos princípios revolucionários do Iluminismo, no que concerne a liberdade, fraternidade e igualdade. Quando, Napoleão entrou em Iena, em 13 de outubro de 1806, Hegel escreveu uma carta enaltecendo aquilo que considerava como sendo; "o Espirito do mundo." Ou, quando da derrota napoleônica em 1814, que descreveu como um acontecimento trágico, "o espetáculo de um gênio grandioso destruído pela mediocridade" (SINGER, 2003. p. 12). Nessa admiração, alguns críticos apontaram uma antecipação da crença no poder autocrático do Estado, que sem dúvida terá sua adesão, quando da restauração da Prússia, no qual via a encarnação da razão absoluta. Diferentemente de Rousseau e de toda tradição filosófica francesa, o centro racional aqui não é o indivíduo isolado, mas a reunião e o esforço empreendido pela história para a emergência de formas de aglutinação de indivíduos em comunidades.

"Vi o imperador - essa alma do mundo - cavalgar através da cidade em missão de reconhecimento: é deveras um sentimento maravilhoso contemplar um tal indivíduo que, concentrado em determinado ponto, sentado num cavalo, abarca e domina o mundo." ABBAGNANO 1983 página77

Sua juventude (1788-1800) é dominada por escritos e reflexões religiosas como; Religião do povo e cristianismoA vida de Cristo (1795) e Sobre a relação da religião racional com a religião positiva (1795-96), aonde se afasta do anti clericalismo do iluminismo, mas ao mesmo tempo demonstra uma vontade de conciliação entre o divino e o terreno. Na verdade, a geração de Hegel está profundamente envolta por linhas do pensamento complexas e amplas, que envolvem em termos esquemáticos; o helenismo, o cristianismo, o protestantismo, o iluminismo, e a modernidade. Todas envoltas pelo espectro de Kant (1724-1804), que ainda está vivo no espaço temporal da geração de Hegel, e determina um pressuposto básico da teoria do conhecimento ou da representação do real. Hegel gesta e gera na Alemanha do século XIX uma série de discípulos; progressistas a sua esquerda (Feuerbach, Marx e Engels) e conservadores a direita (Ludwig Von Mises), que se distinguem pela sua compreensão do papel do Estado nas transformações sociais. De um lado, aqueles que identificam no Estado uma construção da burguesia, que atende a seus interesses exclusivos e de outro, os que acreditam na racionalidade e neutralidade do Estado, como representante da vontade geral.

No contexto da pandemia de Covid-19 da contemporaneidade que vivemos, a questão do Estado na sociedade foi desnudado e colocado a prova, pois as condições dos serviços de saúde e o acesso a moradia higiênica são fundamentais no combate ao contágio generalizado. Benesses, que se mostraram inacessíveis pela generalização da lógica competitiva e da privatização, que vinham desde o final dos anos setenta (Thatcher 1979 e Reagan 1981) destruindo o Estado de Bem Estar Social - Wellfare State - restringindo as atuações estatais, nos campos da saúde e habitação pública. Frases, que pareciam verdades inquestionáveis, como; "Se os países não conseguem pagar suas dívidas, que se vendam""Não existe sociedade, apenas famílias e indivíduos" THATCHER, Margareth, ou "Não existe alternativa ao mercado" BEZOS, Jeff, que naturalizavam a condição de competição, afastando a empatia, a mútua dependência societária, lançando-nos numa luta do indivíduo contra todos. A eficiência na produção de uma subjetividade competitiva, avessa a solidariedade genérica e impessoal de um sistema de mútua dependência, que foi implementada pelo neo liberalismo parece ter sido desmontada. Enfim, a frase, no livro Princípios da Filosofia do Direito (1821), na qual Hegel absolutiza o papel do Estado como ente racional, desinteressado e neutro, frente ao indivíduo e a sociedade civil, denuncia e pré figura muito das disputas ideológicas do século XX, na estruturação das sociedade modernas.


"O Estado é absolutamente racional ... e tem o direito supremo sobre o indivíduo, cujo dever supremo é de ser um membro do Estado." HEGEL

Nesse sentido, Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), elegeram como sua forma de interpretar o mundo o conflito inter classes, a emergência de uma subjetividade nova e inusitada, o operariado e a didática da história como parteira da transformação pensada e induzida. Além disso, Marx e Engels identificam uma tendência inercial do sistema capitalista, que supervaloriza a forma líquida, a base monetária, que materializa o lucro, na fórmula; Dinheiro - Mercadoria - Dinheiro' (D-M-D'). A décima primeira tese sobre o filósofo materialista, pertencente a esquerda hegeliana Ludwig Feuerbach (1804-1872) procura construir uma nova posição para o pensar nos tempos modernos;

"Os filósofos apenas interpretaram o mundo diferentemente, importa é transformá-lo." MARX e ENGELS 2007,  página613. 

Uma proposição assertiva, que mira mais nos objetivos a serem atingidos, do que na descrição daquilo que ocorre, sintetizado no agente concentrado e subalternizado pela produção industrial, o operariado. A proposta é a instituição de uma filosofia da práxis, aonde parte se da vivência humana concreta e objetiva, os homens de carne e osso, para se chegar as suas ideias, sua imaginação e naquilo que engendram mentalmente, como justificativa para sua atuação. A base empírica sobre a qual Marx pensa e observa, o desenvolvimento do Capital é a Inglaterra, mas especificamente Manchester, aonde seu companheiro de reflexão Engels administra a fábrica do seu pai, rico industrial alemão associado ao empreendimento textil fabril da Ermen & Engels Victoria Mill. Engels irá vivenciar de forma bastante próxima, a dura situação da classe operária na Inglaterra do primeiro impulso industrial, fornecendo rico material empírico para as abstrações de Marx. Nessas observações e escritos de Engels há um olhar e afeto específico para os irlandeses, que são os principais explorados, tendo inclusive namorado uma empregada da sua fábrica, Mary Burns, imigrante da Irlanda. Interessante nesse pensamento foi, apesar de sua gestação datada em meados do século XIX, e localizada na Revolução Industrial da Inglaterra, sua capacidade de se manter como explicação da forma de operar capitalista até os dias atuais.

"Sem dúvida, o mundo capitalista e sua própria espacialidade mudaram de forma brutal do século XIX para o XXI, as formas de atuação e operação mudaram havendo uma clara aceleração dos processos, no entanto a lógica de procurar na forma monetária a segurança da realização do lucro permanece intocada. E, esse fato acarreta uma série de permanências que não parecem mudar. Uma certa aproximação inevitável, e inexorável com as crises. Aquilo que SCHUMPETER 2017 denominou como destruição criativa do capitalismo, uma forma constante de revolucionar as formas de atuação. Marx no século XIX já apontava essa marca do sistema capitalista de funcionamento, que tendia a procurar a forma monetária, tendendo inexorávelmente a especulação e ao rentismo para de certa forma se livrar da forma mercadoria. Essa capacidade de descrever criticamente o sistema capitalista é talvez o principal legado de Marx e Engels, que identificaram nas crises cíclicas da economia um modo atávico de realizar o lucro para poucos, e sempre concentrar renda. O historiador francês Fernand Braudel, na sua imensa obra fazia uma distinção, que me parece importante entre mudanças superficiais, que ocorrem na superfície do mar fustigado por ventos e ondas, enquanto as grandes profundidades se mostram imutáveis, e funcionando do mesmo jeito. Na sua analogia Braudel, se referia a longa transformação, sofrida entre o feudalismo e o capitalismo, fixando um certo padrão de repetição no capitalismo, no qual a última metamorfose era sempre a fase de predominância financeira, da realização do lucro, ou sua monetarização.

"O ponto de partida de nossa investigação foi a afirmação de Fernand Braudel, de que as características essenciais do capitalismo histórico em sua longue durée - isto é, durante toda suas existência - foram a flexibilidade e o ecletismo do capital, e não as formas concretas assumidas por ele em diferentes lugares e épocas: 'Permitam-me enfatizar aquilo que me parece ser um aspecto essencial da história geral do capitalismo: sua flexibilidade ilimitada, sua capacidade de mudança e de adaptação. Se há, segundo creio, uma certa unidade no capitalismo, da Itália do século XIII até o ocidente dos dias atuais, é aí, acima de tudo, que essa unidade deve ser situada e observada.'" BRAUDEL 1982 pagina 433, citado por ARRIGHI 1996 página4

Os ciclos repetidos do capitalismo são sem dúvida uma constante na sua história desde o século XIII europeu, conforme demonstrado por ARRIGHI 1996, aonde a sucessão de hegemonias dominadoras assinalam o processo apontado por Braudel. Uma fase de intensa produção, aonde a mercadoria parece ser a própria representação da riqueza, seguida por uma fase aonde a moeda passa a ser centralidade da prosperidade. ARRIGHI 1996, também assinala, que no século XIX o capital parecia ter encontrado uma nova casa, algo inusitado até então, que eram as unidades fabris de produção da revolução industrial, que pareciam ter ancorado o capital na produção. Mas logo, a repetição das crises em 1870 e 1929 mostraram que o padrão de busca pelo padrão rentista e especulativo se repetia da mesma forma. Desde os banqueiros genoveses do século XV, que descobriram que era mais seguro emprestar dinheiro aos reis da península ibérica, aos investidores de Wall Street em Nova York em 1929 ou em 2008, vale mais apostar do que produzir." MOREIRA 2018 www.arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com captado em 05-06-2020

Vladimir Ilitch Ulianov, Lênin (1870-1924) é o conformador de uma linha de pensamento, o marxismo-leninismo, que se posicionou sobre a transformação violenta e rápida num país que estava na periferia do desenvolvimento capitalista da atualidade, mudando expectativas do próprio pensamento de Marx. Impossível se referir a Lenin, sem mencionar a Revolução Russa de Outubro de 1917, um processo que na verdade se estende de janeiro de 1905 até março de 1921, que envolve cinco grandes acontecimentos.

  • O primeiro, a Revolução de 1905, que envolve a capitulação do império russo ao império japonês expansionista, que conquista a base naval russa de Port Arthur, no nordeste da China, lançando o país numa grande carestia e que determina uma série de greves e protestos contra a autocracia dos Tsares, aonde emerge uma organização social única de base; o Soviete. 
  • O segundo a Revolução de Fevereiro de 1917, do Governo Provisório que de novo reúne protestos e greves nas principais cidades contra a participação da Rússia na 1a Guerra Mundial na Europa, iniciada em agosto de 1914. 
  • O terceiro a Revolução de Outubro de 1917, na qual Lenin sintetiza as demandas dos protestos, no lema da destruição do Estado autocrático dos Tzares; "Todo o poder aos Sovietes", que eram como Conselhos de base popular, incrivelmente pulverizados na sociedade. 
  • O quarto, são as guerras civis de 1918-1921, nas quais forças das mais diversas correntes, que se contrapunham ao Partido Bolchevista de Lenin se agruparam no exército branco, sabotando as iniciativas do novo Estado. 
  • O quinto e último, é a Revolta dos marinheiros do Mar Báltico, que ocorre em março de 1921 na cidade de Kronstadt, que foi fortemente reprimida pelos bolcheviques, e que na historiografia oficial constará como um surto contra revolucionário, mas que o próprio Lenin reconheceu como um arbítrio autoritário, apenas necessário num Socialismo de Guerra.


"Os marinheiros não queriam Brancos nem Vermelhos...Eles foram o relâmpago, melhor que qualquer outro que iluminou a realidade." LENIN, citado em REIS 2017 página142

A importância das formulações de Lenin para o nosso mundo atual, pois fazem frente a uma certa tendência a localizar as posições progressistas de esquerda como estatizante, de uma maneira simplificadora e reducionista. Muitas vezes, principalmente a partir dos anos oitenta do século XX, o senso comum geral assumiu essa interligação mecânica e automática da defesa do Estado, com o lugar de resguardo do interesse público, e portanto campo de defesa dos progressistas. Mas tal posição é de certa forma uma novidade histórica, pois no começo do século XX, e até meados do século XIX, a esquerda não celebrava o Estado dessa forma. Um personagem, que foi fruto de uma enorme mistificação pelo regime oficial soviético, que se caracterizava como Socialismo Real ou de Estado. Lenin vai ter seu cadáver embalsamado após sua morte, e seu corpo é até hoje exposto junto ao Kremlim, em Moscou, permanecendo como uma das figuras mais populares da Russia atual, só perdendo para Pedro, o Grande.

O que inicialmente nos surpreende é a intensa produção livresca e intelectual do personagem, seguindo os passos de Marx e Engels, Lênin se debruçou sobre seu contexto histórico e produziu uma das mais extensas bibliografias da história. Um dos trabalhos mais conhecidos, e com grande destaque nessa obra foi o Estado e a Revolução, a doutrina do marxismo e as tarefas do proletariado na revolução, escrito antes da tomada do poder pelos bolcheviques em agosto e setembro de 1917. Um trabalho que ainda cobra da esquerda e dos neo liberais uma reflexão mais apurada, do que é o Estado. Algo subordinado a sociedade, ou que a subordina? Publicado em 1918, após a revolução, mas escrito antes dela como já assinalado, no qual Lênin descreve o Estado como um órgão de dominação dissimulada de classe, algo que segundo os hegelianos representaria o interesse de todos, e que segundo Marx deveria ser suprimido numa sociedade sem classes. E, o fato de que a verdadeira tarefa da revolução socialista era a destruição do Estado, como uma instituição criada pela burguesia, não para a conciliação das classes, mas como um poder supostamente neutro colocado aparentemente por cima da sociedade, que atendia sobretudo aos seus interesses. O contexto no qual o texto é escrito são as reflexões dos sociais democratas alemães, como Karl Kautsky, que afirmavam um caráter reformista e anti revolucionário, de revalorização do papel do Estado, e, por outro lado, a presença dos sovietes, como instituições de representação direta, ou de supressão da representação profissional da democracia burguesa. Nas formulações de Lênin, há uma clara tensão entre utopia e pragmatismo, um documento que apresenta uma luta contínua entre a realpolitik, e uma construção proativa de um novo aparato, ainda inexistente, materializado de baixo para cima. Nada em Lênin aparece como muito confortável, e segundo alguns ele nunca acreditou que o socialismo do autogoverno democrático dos trabalhadores, ou a democracia dos sovietes poderia ser instalada com facilidade na Rússia de tradição autocrática. Na verdade, destaca-se aqui um artigo escrito por Lênin, antes da Revolução de Outubro de 1917;

"Em "Conservarão os bolcheviques os poderes de Estado", Lênin afirma: "Nós não somos utopistas. Sabemos que um operário não qualificado e uma cozinheira não são capazes, neste momento, de começar a dirigir o Estado. Nisso estamos de acordo [...] com os democráticos-constitucionalistas [...]. Mas diferenciamo-nos desses cidadãos porque exigimos a ruptura imediata com o preconceito de que administrar o Estado [...] é algo que só ricos ou funcionários provenientes de famílias ricas podem fazer." KRAUSZ 2017 página253

Importante também assinalar uma diferenciação fundamental entre os argumentos da burguesia e os progressistas, que sempre enfatizaram a impossibilidade da neutralidade científica do Estado, como representação do interesse geral, enquanto a primeira persiste acreditando nela. É interessante também assinalar, que O Estado e a Revolução podem nos levar a duas interpretações antagônicas; de um lado, àqueles que identificaram a obra como a semente do autoritarismo do Estado soviético, como A. J. Polan e Robert Service(1), e outros como, Neil Harding e Kevin Anderson(2) que veem na obra princípios libertários, negados pelo Estado Stalinista que se seguiu.

"Entre todas as obras de Lênin, o Estado e a Revolução foi a que sobreviveu de modo mais interessante. O flanco marxista e, na verdade, quase todos os movimentos anticapitalistas e críticos do Estado a tomaram para si. O texto pode se aplicar em oposição tanto aos conceitos capitalistas quanto aos stalinistas do Estado, na medida em que a meta marxista, a da extinção do Estado era, e é, objetivo declarado da Revolução Russa e da revolução socialista universal." KRAUSZ 2017 página250

Interessante destacar, que a crítica de Max Weber sempre apontou a unificação realizada pelo Estado soviético, em um órgão de trabalho do Executivo e do Legislativo, dominado por um partido único, como uma característica do Estado autoritário. O problema, que choca a concepção liberal e também nossa visão contemporânea é que O Estado e a Revolução sempre afirmou numa linguagem clara seu compromisso de classe, com uma fase intermediária da Ditadura do Proletariado, fato que causa calafrios a um oficialismo cientificista imperante. E, que demanda da contemporaneidade uma reflexão mais aprofundada. Há muito, que a esquerda principalmente no Brasil, abandonou as armas e afirmou seu compromisso com a democracia, como um valor inegociável (3). Volta-se assim a questão da neutralidade axiológica, que tanto embasa a sociologia liberal de Max Weber, que recalca os interesses de classe no preparo que as classes privilegiadas desfrutam, e, efetivamente possuem, pois estão além da sobrevivência. A questão da Revolução, das transformações violentas estariam superadas na perspectiva histórica da nossa contemporaneidade? A questão deve ser ponderada a partir da imperfeição da própria democracia, que se configura como um sistema de forças e contra forças, que pretendem superar os interesse particulares e de classe. E, pela perspectiva histórica, que claramente nos mostra que a interação entre Estado e Sociedade aparece mais equilibrada nas sociedades mais desenvolvidas no período entre a Revolução de Outubro de 1917, na Rússia e a Queda do Muro de Berlim em 1989, pois a ameaça da transformação violenta fustigava e assustava o pensamento burguês. A partir da Queda do Muro de Berlim, a contra força do espectro comunista parou de rondar as democracias ocidentais, lançando-as numa arrogante supremacia de conceitos como; mercado, competição, empresariamento, etc.., que só ampliou a concentração de renda, e a própria fraqueza da verdadeira democracia. Diante dessa questão há uma citação primorosa de Lenin, num outro texto denominado, As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo, que delimita a forma de pensar de um revolucionário com clareza;

"Os homens sempre foram em política vítimas ingênuas do engano dos outros e do próprio e continuarão a sê-lo enquanto não aprenderem a descobrir por trás de todas as frases, declarações e promessas morais, religiosas, políticas e sociais, os interesses de uma ou de outra classe." Lênin citado por KRAUSZ 2017 página 251


NOTAS:

(1) Os livros, que apontam a premissa autoritária da obra de Lênin são; POLAN, A. J. - Lenin and the End of Politics - Methuen, Londres 1984 e SERVICE, Robert - Lenin A political Life v3 The Iron Ring - Mcmillan, Londres 1994, ambos citados por KRAUSZ 2017 página249.

(2) Os livros que apontam a disposição libertária da obra de Lênin são; HARDING, Neil - Lenin´s Political Thought v.2 - Martin Press Nova York 1981 e ANDERSON, Kevin - Lenin, Hegel and the End of Politics - Methuen, Londres 1984

(3) Ver aqui no blog, o texto A grave crise brasileira e dois textos esclarecedores, que são COUTINHO, Carlos Nelson - A democracia como valor universal - acessível no site https://www.marxists.org/portugues/coutinho/1979/mes/democracia.htm e VIANNA, Luiz Werneck -Volver Não sairemos deste mato sem cachorro sem a política e os políticos que nos sobraram - O Estado de S.Paulo 04 Junho 2017

BIBLIOGRAFIA:

AARÃO REIS, Daniel - A revolução que mudou o mundo: Rússia 1917 - Companhia das Letras São Paulo 2017

ARRIGHI, Giovanni - O longo século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo - editora Unesp São Paulo 1996

BACHELARD, Gaston - A formação do espírito científico, contribuição para uma psicanálise do conhecimento - Editora Contraponto Rio de Janeiro 1999

BRAUDEL, Fernand - The Wheels of Commerce - Harper & Row, Nova York 1982

GABRIEL, Mary - Amor e Capital, a saga da família de Karl Marx e a história de uma revolução - editora Zahar Rio de Janeiro 2013

HOBSBAWM, Eric - Como Mudar o Mundo, Marx e o marxismo de 1840-2011 - Editora Companhia das Letras São Paulo 2011

KANT, Immanuel - Duas introduções à crítica do juízo - Editora Iluminuras São Paulo 1995

KONDER, Leandro - A questão da ideologia - Companhia das Letras São Paulo 2002

KRAUSZ, Tamás - Reconstruindo Lênin, uma biografia intelectual - Editora Boitempo 2017

LAGO, Ivann - O Jair que há em nós - artigo publicado em carta maior coletado em maio de 2020 em https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Sociedade-e-Cultura/O-Jair-que-ha-em-nos/52/47388

LÊNIN, Vladimir Ilitch Ulianov - O estado e a Revolução, a doutrina do marxismo e as tarefas do proletariado na revolução - Editora Boitempo São Paulo 2017

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich - A Ideologia Alemã: Crítica da novíssima filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Brauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas, 1845-1846 - Civilização Brasileira Rio de Janeiro 2007

MOREIRA, Pedro da Luz - O espaço da Europa em 1848, e o nosso tempo contemporâneo - Dezembro de 2018, em www.arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com coletado em 05/06/2020

__________, Pedro da Luz - A mudança, o Estado e a Sociedade Civil - Fevereiro de 2018, em www.arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com coletado em 05/06/2020

SCHUMPETER, Joseph A - Capitalismo, socialismo e democracia - Editora UNESP São Paulo 2017