segunda-feira, 13 de abril de 2020

Cidade, moradia, salubridade, consciência, narrativas e pandemia do Covid 19

Precariedade habitacional e pandemia
Com a pandemia do corona vírus se espalhando pelo mundo de uma maneira geral e ampla, cresce uma vinculação ligeira e superficial entre espacialidade urbana e territorial e disseminação da doença, o episódio ainda é muito recente para conclusões apressadas, mas aqui trago algumas reflexões preliminares. Agora, precisamos ter uma certa humildade diante dos índices, contaminações e mortes da pandemia, pois ainda temos surpresas pela frente, com muitas variáveis. O texto aqui desenvolvido é de um arquiteto e urbanista, que nada entende dos aspectos biológicos e médicos dessa pandemia, pretendendo trazer reflexões sobre o arranjo espacial e demográfico do Brasil, suas regiões e cidades, com vistas a saúde em geral, e ao Covid-19.  Aqui mesmo nesse blog foi publicado o texto, GESTÃO URBANA, SAÚDE, HABITAÇÃO E MODELOS DE CIDADE, trabalho que foi submetido e aceito ao Seminário da Fiocruz, GESTÃO URBANA E SAÚDE, apresentado como palestra em 28 de junho de 2019 (o link do texto vai abaixo). Nesse texto, a partir da oportunidade do Congresso Mundial UIA2020Rio, que ocorreria na cidade do Rio de Janeiro em 2020, e que foi transferido para 2021, em função também da pandemia do Corona Virus, expressava a necessidade de se debater princípios orientadores para a reprodução da cidade contemporânea no Brasil, a partir de premissas da saúde. Uma vez, que a fixação de modelos rígidos não é muito bem aceita pelo conjunto de nossa sociedade no presente, por seu caráter impositivo e discricionário, havendo uma forte demanda pela participação e cooptação de diferentes agentes na formulação de nossos arranjos espaciais. No texto portanto, apresentava quatro princípios básicos, que deveriam nortear o desenvolvimento de nossas cidades, sem a pretensão de impô-los, mais como uma provocação inicial ao debate e à mobilização de diferentes atores. Agora diante do cenário da Pandemia, penso que o debate é fundamental não apenas com vistas a ações imediatas, mas também no sentido de mudar o desenvolvimento inercial da cidade brasileira, que tradicionalmente sempre excluiu parcela considerável de nossa população. Já, no texto mencionava a importância de mudarmos o projeto da cidade brasileira, que sempre excluiu parcela significativa de sua população, não inserindo-a na produção de habitações dignas.

O link do texto é https://arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com/search?q=gestão urbana, habitação e modelos de cidade

O tema sanitário e epidemiológico já esteve muito mais articulado com a ordenação espacial, particularmente com a configuração das cidades durante todo o século XIX e começo do século XX, alguns autores identificam mesmo a consolidação do urbanismo como ciência, a partir dessa demanda. Intervenções emblemáticas, em cidade importantes, sejam tecidos pré-existentes ou novas estruturas, como Barcelona, Espanha (1848), Paris, França (1853), La Plata, Argentina (1882) e Belo Horizonte, Brasil (1897) mostram uma paradigmática recorrência formal e em suas dimensões, que então assinalam uma preocupação sanitária. Creio que a desvinculação entre saúde e espaço se deu a partir da descoberta das vacinas, mas principalmente, a partir dos modernos antibióticos, que forneceram a humanidade uma certeza arrogante e pretensiosa vitória sobre os micro organismos invisíveis, independente da espacialidade que ocupavam. A vinculação entre espaço e doença advinha, então da teoria dos miasmas, que foi formulada ainda no século XVII, e que vinculava as doenças aos odores fétidos de matéria orgânica em putrefação presente em solos e nos lençóis freáticos. Importante mencionar que as cidades, que ainda não tinham as dimensões atuais eram os locais aonde mais aconteciam áreas e territórios produtores de miasmas. As condições de salubridade de Londres, a cidade de mais forte desenvolvimento capitalista, em meados do século XIX, podem ser atestadas pela história da família de Karl Marx, o autor do Manifesto Comunista junto com Friedrich Engels. Jenny Marx, a mulher de Marx contraiu varíola, e o único filho homem, Edgar Marx, o Musch, morreu em maio de 1855 acometido pelo cólera provavelmente devido as condições insalubres no bairro do Soho Theater, na Dean Street, aonde moravam desde 1853.


"Marx descreve seu lar como um verdadeiro hospital, e temia que o que ganhava não lhe permitisse comprar o tipo de alimento que a família precisava para se manter saudável. Ele estava especialmente preocupado porque, o cólera surgira novamente em Londres, e o epicentro era no Soho. Só na Bond Street, um minuto a pé da Dean Street, 115 pessoas haviam morrido da doença (quase 11 mil morreriam de cólera em Londres naquele ano)" 1853. Como muitos outros, Marx acreditava que o motivo eram os canos de esgoto que atravessavam um trecho onde vítimas da peste de 1665 estava enterradas. O verdadeiro motivo, descoberto por um médico do Soho, John Snow, eram vazamentos do esgoto para dentro de poços de onde os londrinos tiravam sua água potável. Um desses poços era na Broad Street GABRIEL 2013 página323, grifo meu

Londres, que no final do século XVIII é a maior cidade do mundo com 1 milhão de habitantes, chega em meados do século XIX a 2,5 milhões de habitantes, um crescimento explosivo e diferenciado com bairros novos e bem projetados, mas também áreas insalubres, como a área do Soho aonde a família Marx vivia. A partir de 1825 surgem novos meios de comunicação, como as estradas de ferro, que invariavelmente garantirão bairros idílicos mais próximos da natureza para os ricos, enquanto que os pobres se amontoam no antigo centro em casebres insalubres. A residência da família Marx na Dean Street 28 dispunha apenas de dois cômodos no último andar, um para frente e outro voltado para o fundo do lote, com apenas uma área sanitária, compartilhada com os outros andares e o comércio da rua, uma lavanderia, que estava no térreo. Era um edifício de térreo e mais três andares na Dean Street 28, colado nas duas divisas laterais, com três janelas para frente, e com um único banheiro no andar térreo. A necessidade de mudar essas condições já era clara para o movimento higienista, que muitos apontam como fundado pelo médico austriaco Johan Peter Frank, que escreve o livro,  A miséria do povo, mãe de efermidades, no começo do século XIX, após sua experiência na Lombardia como chefe da Divisão Sanitária. Era claro então que as condições de higiene do precariado europeu eram determinadas por sua condição de despossuídos nas emergentes metrópoles do século XIX. Fica também claro, na citação acima, a crença do próprio Marx na teoria dos miasmas, com a hipótese do terreno infectado por cadáveres da peste de 1665. Mas, as pandemias e sua disseminação envolvem também questões relativas aos hábitos cotidianos e corriqueiros no espaço, nesse sentido é exemplar também as condições da família Marx, descritas por um espião prussiano que vigiava o intelectual em Londres;


"Marx vive em um dos piores, se não o pior bairro - e, portanto, dos mais baratos - bairro de Londres. Ocupam dois cômodos... No apartamento inteiro não há nenhum móvel limpo e firme. Tudo está quebrado, manchado e rasgado, com dois dedos de poeira sobre cada canto, e em toda parte há desordem. No meio da sala há uma grande mesa antiga coberta com um oleado, e ali ficam os manuscritos dele, seus livros e jornais, assim como os brinquedos das crianças, e trapos e remendos do cesto de costura da esposa... É perigoso sentar em qualquer cadeira da casa. Aqui uma com três pernas, na outra as crianças estão brincando de cozinhar - essa por acaso tem quatro pernas. Esta é a que oferecem à visita, mas preciso limpar a comida das crianças antes de me sentar, para não sujar as calças." GABRIEL 2013 página318

Friedrich Engels em 1844 com 24 anos, o parceiro da família Marx descreveu as condições do proletariado inglês, em Manchester e Londres, como deploráveis num livro notável; A situação da classe trabalhadora em Inglaterra. Engels era o filho mais velho de um rico industrial da Renânia, cuja a família seguia práticas intolerantes da corrente pietista do cristianismo, e seu pai não enxergava com bons olhos as manifestações de rebeldia manifestadas pelo rapaz. A família Engels havia expandido os seus negócios além da Alemanha, fundando uma fábrica têxtil na Inglaterra na cidade de Manchester, junto com a família Ermen, - a Ermen & Engels - , que será gerida por Friedrich. Em 1842, quando Engels se transfere para Manchester começa a percorrer os bairros operários, aonde há uma grande proporção de irlandeses. Logo conhece, Mary Burns, uma irlandesa de dezenove anos, que trabalha na Ermen & Engels, com seu pai e sua irmã de apenas quinze anos, chocando-se com a forma como os pietistas donos de fábrica tratam seus funcionários. Mary o apresentou a Pequena Irlanda e outros bairros operários de Manchester, aonde casas baixas de dois cômodos, um porão e um sótão abrigavam 120 pessoas que compartilhavam um toalete externo. Engels descreve uma mudança espacial fundamental, que se espalhará pelo mundo de forma definitiva, chegando na contemporaneidade a nossa sociedade majoritariamente urbana. A partir do século XVIII, mais intensamente na Inglaterra, mas também na Europa, o cercamento dos campos comuns no ambiente rural inviabiliza a sustentação de amplas parcelas da população do campo, gerando um forte abandono da vida pastora e agrícola. Ao mesmo tempo, a industria implantada nas cidades demanda grandes contingentes de mão de obra, que no entanto não absorve a totalidade dessa população afastada da vida campestre, ocasionando grandes aglomerações e contínuos de pobreza no ambiente urbano. Tal fenômeno determina condições precárias de existência e saúde para essa população, que na verdade deve ser pensada do ponto de vista sanitário como potencial produtora de doenças e epidemias. Na verdade, o conceito de saúde adotado pela Organização Mundial de Saúde, que ultrapassa a ausência de doença e abrange a ideia de bem-estar físico, mental e social, que é dependente de condicionantes sociais, econômicos, políticos e culturais.

"Em Manchester, os bairros operários se espraiavam como ervas daninhas ao longo do rio, mas em Londres os cortiços eram verticais, e os pobres lotavam edifícios de quatro andares do porão ao sótão. Cada centímetro, inclusive as escadas era ocupado. Algumas pessoas alugavam apenas um lugar na cama, nem mesmo uma cama inteira. Outros alugavam vaga numa corda estendida ao longo de uma parede, junto à qual podiam dormir sentados." ENGELS 1975 página 40

No Brasil, o vínculo foi também amplamente debatido na passagem do século XIX para o XX, com a geração de engenheiros sanitaristas e com uma série de transformações que impactaram as cidades brasileiras naquela época. Cidades novas ou reformas urbanas amplas mudaram a face de nossas ainda pequenas aglomerações urbanas trazendo lhes um caráter higienista e de maior salubridade, que envolviam canalização de córregos, dragagem de alagados, abertura de avenidas largas, ampliação do espaço das ruas, mas também distribuição de água potável, canalização de esgotos, habitação ventilada com instalações sanitárias. São notáveis as intervenções nesse espírito em Belo Horizonte(1897),Vitória(1897),  Rio de Janeiro(1905), Santos(1909), Recife(1915) Essa arquitetura e urbanismo da Belle Époche, Higienista ou Neo clássica tinha a sua frente figuras como; Pereira Passos (1836-1913), Aarão Reis (1853-1936), Theodoro Sampaio (1855-1937), Paulo de Frontin (1860-1933), Saturnino de Brito (1864-1929) e se articulava fortemente com expoentes da área médica como Oswaldo Cruz (1872-1917) e Carlos Chagas (1878-1934)  ligando fortemente profilaxia e estética. A cidade do Rio de Janeiro, nos primeiros anos do século XX já possuía 1 milhão de habitantes e era assolada de forma recorrente por epidemias de febre amarela, febre tifóide, impaludismo, varíola, peste bulbônica e tuberculose. Havia um claro comprometimento da imagem internacional da cidade como porto seguro para mercadorias variadas, que eram exportadas e importadas pelo país, além disso sua eficiência portuária era reduzida, pois não havia calado para os maiores navios, os armazéns eram precários e as ruas estreitas para distribuir as mercadorias. Além disso tudo, havia uma clara deficiência habitacional representada pelos cortiços, que além das densidades extremas, possuíam poucas instalações sanitárias, como cozinhas e banheiros. Ficava claro que diferentes especialidades se somavam na formulação de um outro projeto para o desenvolvimento do país; medicina, gerenciamento do espaço, economia. É representativa dessa aproximação entre médicos e engenheiros, a Comissão constituída para determinar o melhor local para a nova capital de Minas Gerais, Belo Horizonte, capitaneada por Aarão Reis, mas envolvendo médicos e estudiosos de doenças tropicais. 

"A narrativa de Aarão Reis para justificar a escolha de Curral D´El Rei e Paraúnas como regiões adequadas para implantação da nova capital de Minas Gerais é sintomático do positivismo dominante em nossa república. A descrição para o Curral D´El Rey, a futura Cidade de Minas e a atual Belo Horizonte era representativa; '... local escolhido oferecia condições ideais: estava no centro da unidade federativa, a 100 km de Ouro Preto, rico em cursos d’água, clima ameno, numa altitude de 800 metros. A área destinada à nova capital parecia um grande anfiteatro entre as Serras do Curral e de Contagem, contando com excelentes condições climatológicas, protegida dos ventos frios e úmidos do sul e dos ventos quentes do norte, e arejada pelas correntes amenas do oriente que vinham da serra da Piedade.'" MOREIRA, P. L. 1997 PROURB página55

Todas essas experiências brasileiras tinham como base a filosofia positivista, dominante nos meios militares e na sociedade civil de então, que envolviam formas ingênuas de um dogmatismo cientificista, que reduziam a questão da salubridade das cidades a uma absolutização das ciências naturais, que sempre acabaram nos direcionando a um determinismo redutor. Era como se a realidade tivesse uma independência do ser que a interpreta, represando e bloqueando interpretações e análises mais sofisticadas relativas ao processo de conscientização. Essa atitude sempre endemonizou a política posicionando-a de forma equivocada como ação contrária a ciência, por estar amparada na questão do diálogo e na escuta de lógicas contraditórias. A Revolta da Vacina (0), no Rio de Janeiro 1904 envolve exatamente essa questão, contrapondo ciência ao senso comum e a exploração manipuladora da liberdade individual absolutizada. É interessante assinalar, que no comando das modificações por parte dos governos federal e municipal há uma predominância de positivistas, assim como na oposição, por exemplo do Apostolado Positivista, que apoia a revolta e conspira contra o governo do presidente Rodrigues Alves. Em novembro de 1904, data da revolta, a demolição de casas para abrir a avenida Central terminara e 16 dos novos edifícios estavam sendo construídos. Para tal, o engenheiro e prefeito Pereira Passos, exigiu plena liberdade de ação para aceitar o cargo, sem estar sujeito a embaraços legais, orçamentários ou materiais. Rodrigues Alves, presidente do país, através da lei de 29 de dezembro de 1902, criou um novo estatuto de organização municipal para o Distrito Federal, atribuindo ao prefeito amplos poderes. A lei previa que as autoridades judiciárias, federais ou locais não poderiam revogar as medidas e atos administrativos do município, nem conceder interditos possessórios contra atos do governo municipal exercidos por razões imperativas; acabava com qualquer controle ou adiamento burocrático das reformas e, nos casos de demolição, despejo ou interdição, haveria apenas um auto afixado no local, prevendo penalidades contra as desobediências; dispunha o despejo dos residentes nos prédios a serem demolidos, bem como a remoção dos respectivos móveis e pertences, que seriam feitos pela polícia(1). Havia uma clara vertente autoritária baseada na ciência médica e na salubridade, que se hegemonizava frente a outras narrativas, típica do Positivismo de Auguste Conte. É claro também, que não se trata de corroborar com um anti-cientificismo igualmente limitado e redutor, nem com um relativismo paralisante, mas de uma premissa fundamental de inclusão e promoção de coesão social, possíveis pelo projeto e pela política.


"O engenheiro... é o grande sacerdote e intérprete da natureza. O engenheiro, sempre em contato com a natureza, conhecedor de seu caráter, do seu hábito, chegou pela aplicação de sua força intelectual, a vencê-la e dominar sua força bruta, desviando, corrigindo, dominando sua força bruta, desviando, corrigindo, dominando essa força para servi-lo. A engenharia pode fazer tudo isto; dominando a superfície e as entranhas da terra, as ondas e o fundo dos mares e acaba de transpor os domínios da águia e da andorinha veloz." Saturnino de Brito citado em MOREIRA, F. D. 2010 página 47

O eixo central da avenida foi inaugurado em 7 de setembro de 1904, em meio a grandes festas, já com serviço de bondes e iluminação elétrica. A derrubada de cerca de 640 prédios rasgara, através da parte mais habitada da cidade, um corredor que ia da prainha ao Passeio Público. Parte dos escombros ainda cobria os lados da avenida, facilitando seu uso para as barricadas. A inauguração se dava diante de um cenário de guerra e de terra arrasada, pouco convincente do ponto de vista celebratório, imagético e simbólico. Na mesma data, estavam sendo alargadas as ruas do Acre (ex-Prainha), São Bento, Visconde de Inhaúma, Assembleia e Sete de Setembro. O morro do Senado no bairro da Lapa era arrasado para abertura da Avenida Mem de Sá, Praça da Cruz Vermelha, ligando o Passeio Público a rua Frei Caneca. A rua do Sacramento foi prolongada até a avenida Marechal Floriano Peixoto, recebendo a parte nova o nome de avenida Passos. Interessante assinalar que a Avenida Marechal Floriano foi alargada antes fugindo do padrão das ruas cariocas, era então chamada de rua larga, . A demolição dos velhos casarões, àquela altura já quase todos transformados em pensões e cortiços, provocou uma crise de habitação que elevou os aluguéis e pressionou as classes populares para os subúrbios e para cima dos morros que circundam a cidade. A implantação da modernidade no Brasil parecia querer excluir parcelas importantes da sua população, que assim como hoje se sustentam por pequenos biscates e não possuem vínculos fixos de trabalho(2). A modernidade assumia um caráter parcial e não era disponibilizada para todos, combinando aquilo que será a face perversa de nossa modernização incompleta e combinada, que sempre manteve o arcaico, para dele se beneficiar e super explorar. É claro também, que as classes populares se beneficiavam da reforma sanitária, pois ao final das contas eram muito mais expostas as epidemias de febre amarela, febre tifóide, impaludismo, varíola, peste bulbônica e tuberculose por não usufruir do recurso do isolamento (3), por suas condições de abrigo e do acesso aos serviços médicos e informações sanitárias. A modernidade, no contexto do Brasil daquele tempo, na transição da ordem escravocrata para a competitiva, assumia um caráter exclusivo, importada da Europa de forma ligeira sacralizava a ideia de progresso para usufruto de poucos;


"O partido dos modernos insurge-se contra a autocompreensão do classicismo francês, quando assimila o conceito aristotélico de perfeição ao de progresso, tal como este foi sugerido pela ciência natural moderna. Os 'modernos' questionam o sentido de imitação dos modelos antigos com argumentos histórico críticos, em contraposição às normas de uma beleza absoluta e atemporal, salientam os critérios do belo relativo ou condicionado temporalmente, articulando com isso a autocompreensão do iluminismo francês com a de um novo começo de época." HABERMAS 2000 página13, grifo meu

Mas, além das críticas ao urbanismo higienista e positivista é preciso reconhecer que o movimento representa um importante legado para a cultura urbana brasileira, e depois desse primeiro movimento demonstrou claramente capacidade de auto aperfeiçoamento, principalmente nos projetos de Saturnino de Brito(1864-1929). Saturnino se graduou na Escola Politécnica em 1886, atuou na construção de ferrovias no interior do Brasil, foi assistente de Aarão Reis na construção de Belo Horizonte, deixando essa função para se dedicar ao plano de extensão de Vitória em 1897. Desse momento em diante se dedicou a uma série ininterrupta de planos de extensão e saneamento de cidade, dentre as quais se destacam; Santos (1905-1909) e Recife (1909-1915). Quando nos debruçamos sobre essas atuações percebe-se um retrocesso positivo num formalismo geometrizante rígido e a adoção de uma maior adequação a topografia e as demandas de cada localidade. Saturnino recebeu até agora pouca atenção de nossa historiografia, principalmente no que concerne aos seus desenhos e soluções em cidades concretas, mas, que me parecem uma das mais sensíveis sistematizações nessa área. Seu entendimento do urbano como um processo, e não apenas uma transformação e modificação na cidade podem ser observados em Vitória, Santos e Recife. Tal atitude pode ser comprovada pela sua visão do organismo urbano como um todo, sua preocupação com o gerenciamento da reprodução da cidade no seu desenvolvimento, pensando a construção das casas e edifícios pulverizados nas diferentes partes da cidade, no longo prazo. Uma visão do projeto urbano como processo de interação com a cultura do construir pulverizada e diversificada da sociedade


"Brito produzia extensos relatórios para cada trabalho prático, nos quais discorria desde detalhes técnicos até suas concepções urbanísticas. Escrito para a conferência La Cité Reconstituée em 1916, seu livro Notés sur le tracé sanitaire des villes condensa sua principais ideias e pode ser considerado o primeiro esforço para se estabelecer uma teoria  do urbanismo no Brasil." MOREIRA, D 2010 página49

Essa página do urbanismo no Brasil é de forma recorrente esquecida, com arquitetos e urbanistas muitas vezes citando esses mesmos conteúdos a partir de autores estrangeiros, que parecem pela subalternidade interiorizada sempre mais elegantes que nossas reflexões particulares. Autores brasileiros, mais próximos de nossa contemporaneidade, como; Rodrigo Lefébvre, Sérgio Ferro, ou Carlos Nelson dos Santos, também tiveram reflexões importantes sobre o projeto e sua articulação com procedimentos democráticos de participação, e estão hoje igualmente esquecidos. O que me parece importante frisar, a partir de nossa experiência com a pandemia do Covid-19, no campo do projeto de nossas cidades brasileiras é a emergência de um processo Político que passa a considerar a necessidade de inclusão social e de geração de maior coesão entre os cidadãos. Efetivamente, não importa que apenas uma minoria tenha acesso a uma habitação em condições dignas para o isolamento social, isto é; com saneamento, instalações sanitárias adequadas, densidade de moradores salutar, presença de uma urbanidade civilizada e segura no seu entorno. É cada vez mais evidente, que a crise deflagrada pela propagação do coronavírus está nos mostrando, infelizmente de forma trágica, que as sociedades não podem prescindir de sistemas públicos e gratuitos de saúde, da previdência social, de um programa habitacional que inclua a urbanização, o saneamento das favelas, a produção de unidades habitacionais inseridas em contextos com saneamento, segurança e urbanidade. Que precisamos de legislação e políticas de proteção ao trabalho, de garantia do direito á habitação, de instrumentos de controle e correção sobre a valorização excessiva da terra urbana, de políticas de mobilidade inclusivas, de projetos aonde os excluídos são ouvidos e incluídos em suas demandas. Que a informalidade e a precarização dos vínculos trabalhistas, da moradia, do espaço urbano, da cidade, do direito a produção agrária e urbana constituem fragilidades nocivas a toda a sociedade, e não apenas aos grupos excluídos. Como colocado por SAFATLE em recente entrevista;

"Porque uma coisa que poderia nascer dessa experiência de uma luta coletiva contra a pandemia era um afeto político fundamental de solidariedade genérica. Uma solidariedade que demonstra muito claramente: ‘minha vida depende de pessoas que eu nem sei quem são’. Que não parecem comigo, que não fazem parte do meu grupo, que não têm minha identidade, e essas pessoas são fundamentais; nós temos um destino coletivo." SAFATLE 2020

Emerge uma consciência ou narrativa que me parece importante sublinhar e destacar, nas ocupações precárias de baixa renda como favelas e loteamentos irregulares presentes nas cidades brasileiras, as mais importantes recomendações e procedimentos para evitar o contágio são impraticáveis, ou de difícil implantação, pela baixa qualidade dos serviços de abastecimento de água, coleta de lixo, distribuição elétrica, telefonia e esgotamento sanitário, pelo adensamento excessivo e pela precariedade sanitária das habitações. No sistema de saúde efetivamente constituído em nossas cidades percebe-se, assim como na rede de cultura, ensino, informação um déficit locacional, que privilegia determinados bairros e segrega outros. Além disso tudo, as famílias desses bairros precarizados e sub infraestruturados estão mais sujeitas à diminuição de sua renda pela sua necessidade de prover seu sustento, a cada dia. Os efeitos da redução da circulação e da atividade econômica provocada pela necessidade de estancar a disseminação do vírus são mais violentos nessas mesmas localidades, uma vez que concentram os menores níveis de renda, cultura, saúde e escolaridade. Na verdade, a pandemia do Covid-19 deixou claro que o conceito de moradia adequada em tempos de isolamento social é aquela que possui condições de garantir a existência entre os residentes da habitação, muito além de ter acesso a um mero sistema de saneamento básico que permita manter a higienização constante e apropriada, mas também, condições de co-habitação. A lógica da solidariedade entre diferentes, da celebração de um projeto comum de cidade, aonde ninguém é deixado de lado, conseguirá prevalecer em nossa contemporaneidade? A emergência de um neo positivismo, que celebra a independência absoluta da ciência, frente a ordenação Política da sociedade irá prevalecer. O pessimista filósofo marxista ZIZEK, nos contempla com um inusitado depoimento otimista, que parece concordar com a emergência de um projeto solidário para a humanidade, a partir de uma reflexão pessoal de cada um de nós;


"Nem todo mundo que está em casa passa seu tempo apenas assistindo filmes estúpidos. Todos estão se fazendo perguntas básicas sobre nossa vida cotidiana, questões que em outros momentos definiríamos de metafísicas. Muitos estão usando esse tempo para refletir. E para escolher. É verdade, somos mais isolados, mas também mais dependentes uns dos outros. Vivemos um imperativo paradoxal: demonstramos solidariedade por não nos aproximarmos. Nunca fui um otimista, mas esse respeito pressupõe uma mudança profunda de comportamento que sobreviverá à crise." ZIZEK, Slavoj - Entrevista no site da Unisinos em 13/04/2020 

Mas, muito além do otimismo creio que se impõe uma vigilância constante sobre o processo de tradução e diálogo entre ciência e Política, para que mais uma vez não se imponha uma lógica redutora e de exclusão no Brasil. Pois, será que a interpretação ou narrativa da solidariedade efetivamente se impõe a todos, ou sobreviverá a crise da pandemia, convencendo a todos de que a interdependência intra sociedade é a chave para superá-la? Ou, os fundamentalistas do mercado e da lógica competitiva exarcebada do neo liberalismo, que certamente continuaram sua pregação da seleção natural, entre perdedores e ganhadores do darwinismo social. Certamente, estão articulando narrativas e explicações, que identificarão as fragilidades de nossa estrutura social, a partir de uma lógica de ênfase na competição de todos contra todos. Se levantarão e proclamarão suas narrativas e discursos contra a solidariedade, celebrando a ordem econômica competitiva e meritocrática, que nos doutrinou desde o fim dos anos setenta, com as eleições Thatcher e Reagan. Na verdade, não podemos nos iludir, o sistema sempre se utilizou de crises reestruturadoras para reordenar suas imposições dominadoras, uma rearticulação das necessidades humanas segundo critérios do saber técnico, seja médico ou urbanístico, só poderá ser ratificado pela consciência dos próprios atores Políticos.

NOTAS:

(0) Alguns autores discordam ou problematizam a nomeação desta rebelião no Rio de Janeiro como Revolta da Vacina, pois consideram que os motivos da explosão se deviam a questões muita mais amplas, como a falta de habitação, a precariedade dos transportes e a expulsão da população pobre do centro da cidade. É sintomática a destruição de bondes e a disponibilidade de entulhos de obra, que foram usados nas barricadas cariocas nessa ocasião

(1) De forma concomitante com as obras, Pereira Passos tomou uma série de medidas que visavam proibir e alterar as formas de trabalho, lazer e sociabilidade consideradas incompatíveis com uma capital cosmopolita e moderna. Proibiu cães vadios e vacas leiteiras nas ruas; mandou recolher os mendigos a asilos; proibiu a cultura de hortas e capinzais, a criação de suínos, a venda ambulante de bilhetes de loteria; mandou também que não se cuspisse nas ruas e dentro dos veículos, que não se urinasse fora dos mictórios, chegando mesmo a determinação de que não se soltassem pipas.

(2) É conhecido o fato e de certa forma folclorizado, de que parte desse precariado começou a criar ratos para conseguir prover seu sustento, uma vez que Oswaldo Cruz institui uma remuneração em dinheiro para quem os entregasse aos Serviços Sanitários da Capital Federal.

(3) O retiro na serra adotado pelo imperador, entre os meses de novembro e fevereiro não era para se preservar do calor carioca, mas também para evitar as epidemias.

BIBLIOGRAFIA:

BENCHIMOL, Jaime Larry - Pereira Passos: um Haussmann tropical - Biblioteca Carioca 1992 Rio de Janeiro

ENGELS, Friedrich - A situação da classe operária em Inglaterra - Edições Afrontamento Porto 1975

GABRIEL, Mary - Amor e Capital: a saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução - Editora Zahar Rio de Janeiro 2013

HABERMAS, Jürgen - O discurso filosófico da modernidade - Editora Martins Fontes São Paulo 2000.

HABERMAS, Jürgen - Técnica e ciência como ideologia - Editora Unesp São Paulo 2014

MOREIRA, Fernando Diniz - Saturnino de Brito e o plano de saneamento de Recife - Néctar Recife 2010

MOREIRA, Pedro da Luz - Belo Horizonte, e a fundação de nossa tradição moderna - dissertação de mestrado do PROURB 1997

MOREIRA, Pedro da Luz - Gestão Urbana, saúde, habitação e modelos de cidade - www.arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com.br 

SAFATLE, Vladimir - Safatle: "Bolsonaro se acha capaz de esconder os corpos" - Entrevista ao A Pública coletado em 08/04/2020, no site:  https://apublica.org/2020/04/safatle-bolsonaro-se-acha-capaz-de-esconder-os-corpos/#.Xo2jExPPJow.whatsapp

ZIZEK, Slavoj - Entrevista no site da Unisinos em 13/04/2020  http://www.ihu.unisinos.br/597903-vejo-um-novo-comunismo-distante-do-comunismo-historico-brotar-do-virus-entrevista-com-slavoj-zizek