sexta-feira, 16 de junho de 2017

A grave crise política no Brasil e dois textos esclarecedores

O artigo do professor Luiz Werneck Vianna, publicado no jornal o Estado de São Paulo, no último domingo é uma brilhante interpretação de nossa atual crise política, apontando de forma clara a necessidade da política e dos políticos que nos sobraram.  A revisão histórica do artigo retoma movimentos da sociedade civil importantes, que costuraram a redemocratização brasileira a partir da constituição de um bloco histórico, que envolvia; o movimento sindical, a igreja progressista, a esquerda e alguns liberais. Esse movimento culminará na Assembleia Nacional Constituinte, que representa a conquista de uma série de direitos por parte do cidadão, que ainda estruturam nosso cotidiano. A menção ao artigo de Carlos Nelson Coutinho do final dos anos setenta, propagador das ideias de Antônio Gramsci no Brasil, A democracia como valor universal, onde Werneck faz menção a cisão de dois blocos no movimento da redemocratização, de um lado, "a ortodoxia dos fidelizados à estratégia de orientação nacional-popular e os que adotavam a prevalência da questão da democracia e do liberalismo político."
A trajetória de Carlos Nelson Coutinho é emblemática das agruras da esquerda no Brasil. Nascido em 1943, em Itabuna na Bahia foi membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), exilado em Bolonha na Itália pela ditadura militar sofre grande influência do eurocomunismo e do Partido Comunista Italiano (PCI), que então criticava o comunismo do modelo soviético. Na volta ao Brasil com a anistia, critica o alinhamento soviético automático do PCB, e se aproxima do Partido Socialista Brasileiro (PSB), para logo depois se filiar ao Partido dos Trabalhadores (PT). Em 2004, dois anos após a chegada do PT ao poder, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, com sua proposta de revisão da previdência, Coutinho rompe com o partido, se filiando ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Em 2012, aos sessenta e nove anos morre no bairro do Cosme Velho no Rio de Janeiro.

Nesse artigo de 1979, Coutinho deixava claro seu posicionamento em favor da democracia, e reafirmava a necessidade de sua presença na longa transição para o socialismo, como um valor que fazia a mediação entre as diferenças sociais, que tendem a se igualar, mas nunca se tornarão unitárias:
"É preciso ir além dessa constatação e afirmar claramente que, tanto na fase de transição quanto no socialismo plenamente realizado, continuarão a existir interesses e opiniões divergentes sobre inúmeras questões concretas; e isso porque - ao contrário do que afirma a concepção stalinista - o processo de extinção das classes faz certamente com que a sociedade tenda à unidade, mas não significa de modo algum a sua completa homogeneização." COUTINHO 1979
Havia então entre os pensadores a afirmação comum e corriqueira da busca por um regime de maior justiça social - o socialismo - , que com a queda do Muro de Berlim em 1989 passou a ser cada vez mais evitado. A queda do Muro de Berlim, tanto para o PSDB, quanto para o PT fez com que essas agremiações recalcassem as menções ao socialismo, e passassem a ter uma clara aproximação com argumentos neo-liberais. A hegemonia neo-liberal, que talvez seja melhor nomeada como hegemonia financista ou do capital financeiro começou sua emergência no mundo contemporâneo, com os governos de Tatcher  na Inglaterra(1979) e Reagan  nos EUA(1980). No Brasil os dois maiores partidos com vínculos com o discurso social; o PSDB preso a uma visão mais elitista descolada das bases sociais, enquanto o PT reafirmava um certo basismo, um vínculo com os movimentos sociais e com a sociedade civil. Na verdade, com a conquista do poder pelo partido em 2002 esse argumento se mostrou muito mais uma conveniência de discurso, do que uma prática efetiva. O relato mais próximo, que reforça o argumento da conveniência pode ser encontrado no PT carioca, que apesar de rechaçar as coligações com o PMDB local, foi de forma recorrente obrigado pela Direção Nacional a seguir coligado.

Muito além dos partidos no Brasil, que institucionalmente se vinculam ao Estado fortemente, muitas organizações de base da sociedade civil acabaram também abrindo mão de sua autonomia pelas benesses do poder Petista. É interessante notar, que Carlos Nelson Coutinho, no mesmo texto de 1979 já alertava para os perigos da perda de autonomia das organizações de base da sociedade civil, reportando a polêmica de Lenin e Trotski nos primórdios da implantação do Estado soviético;
"A pluralidade de sujeitos políticos, a autonomia dos movimentos de massa (da sociedade civil) em relação ao Estado, a liberdade de organização, a legitimação da hegemonia através da obtenção do consenso majoritário: todas essas conquistas democráticas, portanto, continuam a ter pleno valor numa sociedade socialista. (E não é preciso recorrer a Gramsci, ou aos teóricos atuais do eurocomunismo para afirmar isso: Lênin foi um dos primeiros a reconhecer esse valor quando se opôs à transformação dos sindicatos em “correias de transmissão” do Estado socialista, na famosa polêmica que travou com Trótski em 1921). "COUTINHO 1979 página36
Dentro dessa dinâmica, Carlos Nelson Coutinho também menciona a importância da ampliação dos mecanismos de acesso ao poder por parte das massas numa clara radicalização da democracia, como programa do socialismo, que não deveria se restringir a socialização dos meios de produção. Os sujeitos políticos autônomos do Estado deveriam ser a garantia da superação e da manutenção da participação política das massas no Brasil.
"Nesse sentido, o socialismo não consiste apenas na socialização dos meios de produção, uma socialização tornada possível pela prévia socialização do trabalho realizada sob o impulso da própria acumulação capitalista; ele consiste também -  ou deve consistir numa progressiva socialização dos meios de governar, uma socialização também aqui tornada possível pela crescente participação das massas na vida política, através dos sujeitos políticos coletivos que as vicissitudes da reprodução capitalista - sobretudo na fase monopolista - impõem às várias classes e camadas sociais prejudicadas pela dinâmica privatista dessa reprodução." COUTINHO 1979 página38
Ainda no texto de Coutinho, me parece importante o resgate de Lenin na defesa da importância da capilaridade de práticas democráticas no seio da sociedade, através dos "poderosos aparelhos privados de hegemonia, como a OAB, a CNBB, etc." Aparelhos, que muito além da organização do Estado praticam procedimentos democráticos de eleição de prioridades e pautas políticas específicas, que tentam influenciar as concepções socialmente compartilhadas pelas massas. Logo na primeira citação do texto, que faz referência a um artigo intitulado Sobre o dualismo do poder escrito em 1917 por Lenin;
"Para conquistar o poder, os operários conscientes devem obter a maioria; até o momento em que não haja violência contra as massas, não há outro modo de chegar ao poder. Não somos blanquistas, não visamos a tomada do poder por parte de uma minoria." LENIN, citado em COUTINHO 1979 página46
Mas, há também no texto de Coutinho uma menção da maior importância para entender nosso momento político contemporâneo, e a realidade do desenvolvimento histórico do Brasil, no fechamento do texto há a referência a "via prussiana", como uma forma de operar autoritária. A "via prussiana" envolve uma tendência de conciliação das elites dominantes no Brasil por cima, que de forma recorrente marginalizam as massas populares das decisões políticas nacionais. Uma tendência nacional expressa em nossa história, como uma desconfiança constante na capacidade das massas populares de assumir a efetiva maioridade. Os exemplos começam na independência proclamada por um príncipe português, que acomoda as elites agrárias da era colonial no arcabouço da nova nação, e chegam no golpe civil-militar de 1964, que apesar da modernização, radicalizou a exclusão do maior contingente do país dos frutos do progresso, bem como das decisões políticas.

"Uma direta consequência da 'via prussana' foi gerar uma grande debilidade histórica da democracia no Brasil. Essa debilidade não se expressa apenas no plano do pensamento social (basta lembrar o caráter conciliador do nosso liberalismo); ela tem consequências na própria estrutura do relacionamento do Estado com a sociedade civil, já que ao caráter extremamente forte e autoritário do primeiro corresponde a natureza amorna e atomizada da segunda;" COUTINHO 1979 página42

A superação das vicissitudes autoritárias das etapas de nossa história pareciam ter chegado ao fim com a proclamação da constituinte, quando apareceu de forma clara para toda a sociedade a necessidade imperiosa de inclusão dos excluídos, que então era compartilhado pelos mais diversos atores. No entanto, nosso momento político atual parece justamente apontar para o recrudescimento das promessas das conciliações autoritárias acertadas por cima, um fantasma que reafirma a vertente demofóbica da nossa história. O recalque do conflito imposto de forma autoritária, que tanto seduz nossas elites parece voltar de forma mais explícita nas manobras dos governos de Dilma e de Temer. Nesse sentido, a colocação de Fernando Henrique Cardoso antes de ser presidente, também presente entre as citações de Carlos Nelson Coutinho nos mostra como consenso na nossa sociedade cindida sempre será transitório e efêmero.

"Quem busca consenso é regime autoritário, Democracia não. Democracia é o reconhecimento do conflito, a busca da negociação e a procura de acordo, sempre provisório, em função da correlação de forças." Fernando Henrique Cardoso em COUTINHO 1979 página47

E, aqui fica claro a grande frustação, que representou a chegada ao poder do PT, que tinha como principal discurso ideológico o combate a forma de operar da via prussiana, afinal o partido repetia que pretendia o autogoverno dos trabalhadores e das massas excluídas pela história. A figura de Lula envolvia um grande simbolismo, afinal era a própria encarnação dessa adesão ao precariado brasileiro, o líder sindical que no seu aparecimento declarava que a contribuição sindical obrigatória da CLT getulista era o "AI-5 dos trabalhadores" era filho de imigrantes nordestinos, e sobrevivera em São Paulo como empregado metalúrgico da modernização conservadora da ditadura civil-militar. Mas o simbolismo da conquista logo se demonstrou como continuidade da forma tradicional de operar das elites brasileiras - a via prussiana -, que apesar da promoção de uma inclusão inusitada, se recusou a superar a velha operação excludente, carente de socialização tanto política quanto econômica. Afinal, a tese de que "a mudança será promovida pelo Estado.. e não da auto-organização da vida social", mais uma vez venceu, e também se demonstrou falha. Mais uma vez, os governos do PT acabaram reféns das pautas financeiras dos grandes bancos nacionais e das demandas das grandes empreiteiras.

A questão fica descaradamente mais clara, quando nos debruçamos sobre a forma de operar do Estado brasileiro na configuração de nossa infraestrutura urbana e de desenvolvimento, que na verdade manteve-se privatizada e operada em benefício de uma minoria, as grandes empreiteiras. As obras da Copa do Mundo de 2014, ou os investimentos em mobilidade urbana, ou as novas instalações da industria petrolífera, ou ainda as obras das Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro, enfim os planejamentos estruturantes de nossas cidades e de nosso território seguem sendo determinados por interesses particulares, que sequer fazem consultas às grandes maiorias. Na concepção das elites dirigentes do país o constante desleixo pelas ações de plano e de projeto, e a predominância dos agentes executores denunciam de forma recorrente a privatização da burocracia estatal brasileira. Essa forma de operar predatória, e que opera na lógica da apropriação do maior número de benefícios imediatos, como se a nação não tivesse futuro ou novas gerações acabou gerando e fomentando grandes escândalos de corrupção, repetindo a via prussiana.

Nesse contexto, o chamamento do texto de Werneck Vianna de volta ao debate da necessidade de ampliação das conquistas democráticas, na perspectiva de reconstrução de um novo bloco histórico me parece fundamental. Antonio Gramsci nos seus apontamentos sobre história e filosofia nos traz uma reflexão importante para a superação de nossas tendências autoritárias da via prussiana;

"A filosofia de uma época não é a filosofia deste ou daquele filósofo, deste ou daquele grupo de intelectuais, desta ou daquela grande parcela das massas populares: é uma combinação de todos estes elementos, culminando em uma determinada direção, na qual sua culminação torna-se norma de ação coletiva, isto é, torna-se 'história' concreta e completa (integral)." GRAMSCI 1966 página32

Abaixo na bibliografia, o link do texto de Carlos Nelson Coutinho, e a íntegra do texto do jornal Estado de São Paulo de Luiz Werneck Vianna

BIBLIOGRAFIA:

COUTINHO, Carlos Nelson - A democracia como valor universal - acessível no site https://www.marxists.org/portugues/coutinho/1979/mes/democracia.htm

GRAMSCI, Antonio - Concepção dialética da história - editora Civilização Brasileira Rio de Janeiro 1966

Volver
Não sairemos deste mato sem cachorro sem a política e os políticos que nos sobraram
Luiz Werneck Vianna, O Estado de S.Paulo
04 Junho 2017 | 05h00

Houve, nos idos da luta pela democratização do País, uma esquerda que procurava abrir seu caminho pelas vias abertas da sociedade civil. Entre os registros desse momento se podem lembrar algumas das mais marcantes, como a elaboração, em 1974, do programa do MDB por intelectuais de esquerda, incluídos comunistas, e do livro São Paulo, Riqueza e Miséria, de 1975, realizado sob o patrocínio do cardeal Paulo Evaristo Arns, ambos orientados a estabelecer os nexos da democracia política com a questão social.
Na mesma direção, foram realizados os ciclos de debates do grupo Casa Grande, em particular o de abril de 1978, cuja transcrição foi objeto, no ano seguinte, de uma publicação pela Editora Vozes, dedicada ao tema da transição para a democracia, então em curso. Os nove debates realizados envolveram 27 personalidades da esquerda e de identidade liberal, entre as quais intelectuais, economistas, empresários e lideranças sindicais, em que Luiz Inácio da Silva foi ovacionado ao participar de um deles.
Esses mesmos anos 1970 viram nascer o sindicalismo do ABC paulista sob a vanguarda dos trabalhadores metalúrgicos, que trouxeram à cena pública um novo ator na política do País por meio de suas mobilizações em greves bem-sucedidas. Com eles ressurgiram velhas demandas do movimento operário em favor da autonomia de suas organizações, pondo em xeque a estrutura corporativa sindical que nos vinha do Estado Novo. 
Momento forte desse processo esteve na criação, em 1974, da figura dos delegados sindicais de fábrica por um congresso dos trabalhadores metalúrgicos de São Bernardo, em rota de colisão com a estrutura verticalizada da CLT, identificada por Lula à época como o AI-5 dos trabalhadores.
A mesma década vai conhecer, na sociedade civil católica, a emergência da Teologia da Libertação, que vai promover uma ida ao povo dos seus intelectuais no sentido de ativarem a consciência popular dos seus direitos de cidadania. E ainda verá surgir, especialmente no Rio de Janeiro, o boom do associativismo das camadas médias em torno de temas urbanos. Sob essas novas influências, o léxico das esquerdas vai ter o eixo do seu discurso, tradicionalmente centrado na questão nacional - o que importava, na leitura da época, o fortalecimento do Estado -, deslocado em favor do que optava pelo da organização da sociedade civil com foco na valorização da democracia política.
Foi essa descoberta, feita no calor das lutas pela resistência contra o autoritarismo político vigente, que esteve na raiz da atração exercida sobre a esquerda desde então pela obra de Antonio Gramsci, pensador marxista italiano e teórico do tema sociedade civil, cuja influência entre nós, na esteira das traduções publicadas pela Editora Civilização Brasileira, logo se alargou para compreender círculos de tradição liberal. 
O ensaio do filósofo Carlos Nelson Coutinho, então membro do Partido Comunista, A Democracia Como Valor Universal, inspirado na obra de Gramsci, de fins dos anos 1970, importou num divisor de águas, apartando o campo comunista entre a ortodoxia dos fidelizados à estratégia de orientação nacional-popular e os que adotavam a prevalência da questão da democracia e do liberalismo político.
Assim, quando se abrem os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, em 1986, a cultura política sedimentada ao longo das lutas pela democratização do País encontrou o lugar para institucionalizar na nova Carta boa parte do que lhe servira de inspiração. 
Contudo, apesar do resultado feliz do texto constitucional - levando em conta que a democratização do País não resultou de uma ruptura com o regime anterior, e sim de um processo de transição -, mal promulgada a Constituição o suporte que garantiu os êxitos das lutas democráticas se desfaz com a abertura da sucessão presidencial em 1989. 
Com a opção do PT por candidatura própria, afrouxam-se os nexos entre democracia política e democracia social, evidente em sua recusa a admitir a presença de Ulysses Guimarães, o timoneiro das lutas pela democratização, no palanque de sua campanha para o segundo turno das eleições presidenciais. 
A partir daí o PT se dedica a uma estratégia de assédio das instituições políticas pela mobilização da questão social em voo solo, à margem das alianças políticas presentes no seu momento bem-sucedido de fundação. 
Nas sucessões presidenciais de 1994 e 1998 essa deriva ainda mais se afirma, especialmente quando o partido passa a investir na chamada questão nacional, instalando-a no cerne do seu programa. Nessa operação, movida mais por cálculos eleitorais do que por uma intervenção reflexiva, o PT se inscreve no campo do Terceiro Mundo, deixando para trás seu programa de ativação da sociedade civil como lugar privilegiado para a construção de uma hegemonia em favor da mudança social.
Na guinada imprevista, o PT absolve a era Vargas, absolvição dissimulada com a Carta aos Brasileiros, conquanto ainda no primeiro governo Lula tenha ficado evidente a vizinhança de suas práticas com as do Estado Novo varguista; mas é sob a Presidência de Dilma Rousseff, egressa do campo brizolista, que se estreitam as afinidades, até mesmo no campo sindical, entre os governos do PT e os de Vargas. A mudança deveria vir do Estado e de um capitalismo politicamente orientado, e não da auto-organização da vida social.
Os resultados desastrosos estão aí, à vista de todos os que testemunhamos os estertores de um tempo que só admite morrer se levar todos ao mesmo destino. Perdidos no labirinto da intricada política brasileira porque jogamos fora irrefletidamente o mapa dos bons caminhos que tivemos em mãos, dele não escaparemos sem uma reflexão corajosa por parte da esquerda que o recupere.
Nesta hora aziaga não há juízes e generais que nos valham. Desse mato sem cachorro não sairemos sem a política e os políticos que nos sobraram.