terça-feira, 8 de dezembro de 2020

O Estado, o plano, o projeto sua construção e a ansiosa percepção do real

"Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder detenha o poder. " MONTESQUIEU citado em ARENDT 2011 página 368

A escravidão, instituição fundadora do Estado no Brasil

Um dos mais complexos conceitos em nossa contemporaneidade é a ideia do Estado, como uma ordenação burocrática constituída, que deveria se pautar pelo atendimento do interesse público geral, evitando ser capturado por lógicas particulares de grupos de pressão. Mas, o aparecimento do Estado na história humana contraria de antemão essa afirmação, pois ele aparece invariavelmente a partir dos interesses de estamentos, que se articulam em cima de claras e objetivas ações, que servem para estruturá-lo. Portugal, que segundo FAORO 2001 se constitui como primeiro Estado Nacional, no distante século XI dentro da história da Europa, vai ter como interesse a guerra ao inimigo comum; o "sarraceno e o espanhol". Aqui, aparece uma vertente muito presente na contemporaneidade, a presença de uma ameaça externa ou de uma luta moral que deve ser empreendida, para que o grupo se auto denomine, se articule e se reproduza. O plano-projeto do Estado católico e papista português é a vitória sobre os árabes e os espanhóis. Esses últimos ainda na verdade não constituídos plenamente, mas o Estado português se materializa nas fortificações de cidades do norte para o sul, a medida que se configuram como aglomerações de matriz cristã. A auto definição do estamento é determinada ´pela própria constituição e organização do Estado, como num processo de auto determinação, ou como aglutinação em torno de interesses. Com tão antiga articulação, o Estado português não co-existe com a esfera da secularização, típica do Iluminismo que distingue o poder civil do eclesiástico. Igreja e Estado se confundem, determinando uma divisão de trabalho e de responsabilidades, que representará uma importante característica do Estado Ibérico. Os grupos de interesse se auto definem a partir das suas próprias lutas, ganhando e construindo sua própria identidade, um processo contínuo de reunião e definição. Interessante notar, que o assenhoramento do território ou da terra é o motivo num tempo distante, aonde a renda provinha do solo, típica do feudalismo, e ainda não da mercadoria e da produção, que viriam a ser instituídas e desenvolvidas no capitalismo. Portanto, antes do aparecimento e ascensão da burguesia, o pioneiro Estado Português se estrutura em torno do rei, o chefe da guerra, que subordina os senhores feudais a uma federação de condados. E, também não distingue o poder civil e eclesiástico, mantendo-se como um Estado vinculado aos interesses da Igreja Católica, articulando sua expansão à ampliação da fé cristã pelo mundo. Tais premissas construirão características, que segundo FAORO2001 definirão o Estado Patrimonnial Ibérico, que terá grande influência sobre a formação brasileira dos nossos aparatos estatais.

"Dos fins do século XI ao XIII, as batalhas, todos os dias empreendidas, sustentadas ao mesmo tempo contra o sarraceno e o espanhol, garantiram a existência do condado convertido em reino, tenazmente... No topo da sociedade, um rei, o chefe da guerra, general em campanha, conduz um povo de guerreiros, soldados obedientes a uma missão e em busca de um destino...
Ao príncipe, afirma-o prematuramente um documento de 1098, incumbe reinar (regnare), ao tempo que os senhores, sem a auréola feudal, apenas exercem o dominam, assenhoreando a terra sem governá-la. Ainda uma vez a guerra, a conquista e o alargamento do território que ela gerou, constitui a base real, física e tangível, sobre que assenta o poder da Coroa. O rei, como senhor do reino, dispunha, instrumento de poder, da terra, num tempo em que as rendas eram predominantemente derivadas do solo." FAORO 2001 página 02

Nesse contexto emerge um Estado de urgência da guerra, aonde o sistema de contrapesos e auto controle apontado por Montesquieu não existe, há uma ansiedade autoritária, que se recusa a aceitar o contraditório e as vozes discordantes. Daí a complexa equação de Montesquieu, que pretende com um sistema de compensações de interesses, chegar a um poder impessoal, que só poderá ser auto regulado, na medida em que há conflito e dinamismo de mútua vigília, pois apenas o poder regula o poder. Seria como um sistema, de interesses diversificados, que acabaria por se auto controlar a partir do mesmo sistema de grupos de desejos e pré concepções conflitantes. Ao final, as instituições humanas assim como o Estado, no seu cotidiano são constituídas por pessoas e grupos, que operam seu dia a dia, com seus despachos e decisões, que na verdade espelham lógicas morais e éticas dessas mesmas pessoas e grupos. O gerenciamento de planos e projetos de todo Estado-Nação e do próprio sistema global Inter-Estatal também está gerido por esses grupos de pressão e interesses, que alcançam e monopolizam o poder. A representação e a introjeção de papéis por cada agente, que ao mesmo tempo, que espelham também forjam os mencionados desejos e interesses. Daí o questionamento do materialismo histórico, que identifica no Estado, a operação e os interesses de uma classe, e que a verdadeira liberação e representação universal significa fazer seu desvencilhamento do aprisionamento a um único grupo. Num mundo global, esse sistema de compensações e contra pesos está carregado de injustiças, é também incompleto e inacabado, apesentando uma graduação entre "Estados-de-fato" e "quase-Estados". Um desenvolvimento diferenciado da estruturação Estatal, aonde a constituição jurídica das nações ainda apresenta deficiências, que se mostram ainda incompletas apesar das ondas de descolonização. A governança mundial e o sistema de relações inter nações também estão perpassadas por esses desequilíbrios e incompletudes.

"O avesso desse processo de formação de um governo mundial é a crise das nações territoriais como instrumentos efetivos de governo. Robert Jackson cunhou a expressão "quase-Estados" para se referir aos Estados aos quais foi concedido o status jurídico de nações, e que com isso se tornaram membros do sistema interestatal, mas aos quais falta a capacidade necessária para exercer as funções de governo historicamente associadas à condição de Estado. Nessa visão, os exemplos mais claros de tal situação são fornecidas pelas nações do Terceiro Mundo que emergiram da onda de descolonização pós-Segunda Guerra Mundial..." ARRIGHI 1996 página76

Mas, não há como falar de Estado sem mencionar o filósofo alemão do fim do século XVIII e início do século XIX, Hegel, que desenvolveu seu complexo sistema de pensamento de forma concomitante com as Revoluções Americana e Francesa. Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 Stutgart - 1831 Berlim) foi amigo e conviveu com o poeta Friedrich Hölderlin, e com o também filósofo romântico Joseph Von Schelling, participando, na ainda não unificada Alemanha, dos acontecimentos da Revolução Francesa (1789). Estudou no seminário teológico e protestante de Tubingen (1788-1793) na região de influência de Stutgart, no que era o Ducado Würtemberg. Depois, foi preceptor na cidade de Berna na atual Suíça, mantendo-se mobilizado pelos tema religiosos,  principalmente a partir do texto de Kant; A religião nos limites da simples razão. Na qual, a determinação ética do pensamento segue uma trilha entre a moral e a religiosidade, na mesma linha da humanização do sagrado, encarnado na figura de Jesus Cristo e nos questionamentos de Lutero, expressos no drama entre a doutrina eclesiástica e a fé do sujeito. Há uma distinção importante, nesses escritos da juventude, entre a religião estatutária e a popular e da comunidade, sendo essa última, para Hegel a que sintetiza a racional e universal vontade do sagrado. Hegel foi um entusiasta dos princípios revolucionários do Iluminismo, no que concerne a liberdade, fraternidade e igualdade. Quando, Napoleão entrou em Iena, em 13 de outubro de 1806, Hegel escreveu uma carta enaltecendo aquilo que considerava como sendo; "o Espirito do mundo." Ou, quando da derrota napoleônica em 1814, que descreveu como um acontecimento trágico, "o espetáculo de um gênio grandioso destruído pela mediocridade" (SINGER, 2003. p. 12). Nessa admiração, alguns críticos apontaram uma antecipação da crença no poder autocrático do Estado, que sem dúvida terá sua adesão, quando da restauração da Prússia, no qual via a encarnação da razão absoluta. Diferentemente de Rousseau e de toda tradição filosófica francesa, o centro racional aqui não é o indivíduo isolado, mas a reunião e o esforço empreendido pela história para a emergência de formas de aglutinação de indivíduos em comunidades.

"Vi o imperador - essa alma do mundo - cavalgar através da cidade em missão de reconhecimento: é deveras um sentimento maravilhoso contemplar um tal indivíduo que, concentrado em determinado ponto, sentado num cavalo, abarca e domina o mundo." ABBAGNANO 1983 página77

Sua juventude (1788-1800) é dominada por escritos e reflexões religiosas como; Religião do povo e cristianismoA vida de Cristo (1795) e Sobre a relação da religião racional com a religião positiva (1795-96), aonde se afasta do anti clericalismo do iluminismo, mas ao mesmo tempo demonstra uma vontade de conciliação entre o divino e o terreno. Na verdade, a geração de Hegel está profundamente envolta por linhas do pensamento complexas e amplas, que envolvem em termos esquemáticos; o helenismo, o cristianismo, o protestantismo, o iluminismo, e a modernidade. Todas envoltas pelo espectro de Kant (1724-1804), que ainda está vivo no espaço temporal da geração de Hegel, e determina um pressuposto básico da teoria do conhecimento ou da representação do real presente nas três críticas - A crítica da Razão Pura (1781), Crítica da Razão Prática (1788) e a Crítica do Juízo (1790). No pensamento kantiano há um gradiente, uma complexidade e ao mesmo tempo uma interação multi direcionada, entre três conceitos fundamentais de percepção do que existe de fato; a ética, a ciência e a arte, ou os correlatos; o dever ser, o ser e o sensível. Um processo complexo, que envolve aproximações sucessivas sobre o real, a partir; das possibilidades do futuro, do que é, e do jogo lúdico da experiência, ou ainda; a reflexão, o reflexo e o juízo. Os escritos da juventude de Hegel só serão editados depois de sua morte, já no século XX, possibilitarão uma visão mais compreensível de uma reflexão tão árdua, entre o infinito e o finito, ou o universal e o particular. Para Hegel, o real é racional, ou não poderia se substanciar, ou ser palpável, numa unidade entre subjetivo e objetivo, que se constroe na história da humanidade e do indivíduo, se refletindo em etapas da auto consciência, que se localizam; no universal, no particular e no pessoal. A fórmula tão repetida da filosofia hegeliana pensa e objetiva fazer o infinito superar o finito, identificando esse último com a idealidade, enquanto o primeiro é o real.

"Aquilo que é racional é real; e aquilo que é real é racional" Hegel citado em ABBAGANO 1983 página82

Essa identidade de realidade e razão, como uma defesa quase apaixonada mostra-nos a tenaz oposição de Hegel à Kant, que tinha pretendido construir uma filosofia do finito, ou do particular a partir da antítese entre o dever ser e o ser. Em Kant, as ideias da razão são meros ideais. Hegel quer arrancar a razão do domínio da moral, ou da vontade desfazendo-a na realidade, como se fossem uma identidade inseparável. Para Hegel, os conceitos de finito e infinito, particular e universal, relativo e absoluto não podem ser definidos de forma absoluta, mas serão sempre relacionais, como "determinações reflexivas", aonde a compreensão de um pólo depende do outro extremo.  Uma pretensiosa aventura da racionalidade, uma certeza da consciência de ser toda a realidade, quase absoluta, talvez só explicável em Hegel por sua relação de desdém com a natureza, que no seio do romantismo alemão parece se rebelar contra o seu próprio tempo. Assim, o que importa não é a percepção imediata e empírica da árvore isolada, mas a sua multiplicidade que efetivamente configura o real, na totalidade da floresta. Alguns, críticos que consideram toda a filosofia ocidental, como uma nota de rodapé das reflexões de Platão, que também coloca a ideia, assim como Hegel, no ápice da compreensão humana. Um ápice, que pela enorme complexidade do infinito ou universal pretende que a razão dê conta dele, numa arrogância só possível num intelecto muito além do individual. E aqui, a reflexão ou racionalidade hegeliana ganha um caráter absoluto, como o Espírito, que seria como um dever ser de um determinado tempo, que emerge a partir de uma acumulação de experiências, típica da infância da modernidade. O tempo do século XIX, que testemunha imensos progressos, rupturas e desenvolvimentos inusitados é encarado de forma positiva e otimista. Na verdade, Hegel enxerga a história da humanidade como uma positividade, uma evolução redentora, imbuída de uma teleologia em direção a fortuna e a felicidade, aonde o Estado é sua encarnação. Um otimismo, que contrasta de forma definitiva com nosso niilismo contemporâneo.

"A separação entre realidade e a ideia é especialmente cara ao intelecto, que assume os sonhos das suas abstrações como algo de verídico e sente-se orgulhoso pelo seu dever ser, que até no campo político vai pregando com a melhor vontade: como se o mundo tivesse esperado tais ditames para aprender como deve ser e não é; mas onde estaria portanto a presunção desse dever ser, se o mundo fosse como deve ser?... A razão é a certeza da consciência de ser toda realidade: assim o idealismo exprime o conceito de razão" Hegel (Fenomenologia do Espírito), citado em ABBAGANO 1983 página83

Tudo, na verdade se refere a aventura do conhecer, como podemos garantir que nossa compreensão não está sendo enganada pelas sombras e os espectros, que nos impedem de efetivamente formular o real em toda sua complexidade. A verdade está portanto no todo, que não pode ser colocado como ponto de partida, mas de chegada, que para Hegel é sempre resultado de etapas do desenvolvimento histórico do pensar humano. Na Filosofia do Direito (1821), Hegel identifica três momentos na escalada de compreensão do mundo, o primeiro; a família, o segundo a sociedade civil burguesa, e o terceiro; o Estado. No primeiro momento, o indivíduo ainda não se autonomizou, estando vinculado ao clã, a família, isto é numa esfera ainda muito próxima da natureza, seus desejos e interesses encontram-se desorganizados e recalcados. No segundo momento, o indivíduo se confronta com o mundo, enfrentando a competição do mercado, testando sua capacidade de fazer prevalecer seus desejos e interesses, num confronto de todos contra todos, sua razão planeja e opera sua independência. No terceiro momento, finalmente o indivíduo reconhece seu pertencimento à comunidade, completando sua liberdade com a necessidade da cooperação fundada na razão, que se encarna no Estado como sua realização universal. Para Hegel, "O Estado é um hieróglifo da razão", os sujeitos singulares devem aprender a decifrá-lo para ultrapassar os limites da própria consciência, que corresponderiam aos limites da bürgerliche Gesellschaft, ou sociedade burguesa. Aqui o plano e projeto parecem envolver uma pretensiosa premissa de abarcar a totalidade - identidade redutora do real ao racional, e vice-versa, - fazendo sínteses e acomodando contradições, num movimento de ascensão à perfeição. 

"A ideia especulativa , a opção abstrata é transformada em força propulsora da história e, com isso, a história é transformada em mera história da filosofia. Mas nem mesmo esta é compreendida conforme ela - segundo as fontes existentes - de fato aconteceu, quanto menos conforme de fato se desenvolveu através das influências das relações reais e históricas, mas sim conforme é compreendida e apresentada pelos mais novos filósofos alemães, especialmente Hegel e Feuerbach." MARX e ENGELS 2007 página 149

A denúncia crítica do idealismo alemão será empreendida, na sequência da segunda metade do século XIX, por Marx e Engels que identificam nesse idealismo absoluto a face perversa do interesse da ordenação do Estado-Nação pela burguesia, em torno da propriedade privada. Nesse contexto, o plano e o projeto é a ampliação total da lógica da propriedade privada, que cerca e particulariza tudo, ampliando a competição e determinando a monetarização do todo. Marx e Engels observarão na Manchester de meados do século XIX, uma competição de todos contra todos, contraposta a solidariedade dos grupos trabalhadores, que migravam da Irlanda em levas atrás de seu sustento. Interessante assinalar, que Hegel já aponta, nas três fases - Família, Mercado e Estado - um pretenso aprimoramento no sentido da superação da competição pela solidariedade interpessoal, localizada no Estado racional. Mas afirma essa tendência como natural do desenvolvimento humano, como um objetivo inexoravelmente imposto pelo desenvolvimento histórico da humanidade. Por outro lado, o materialismo histórico pensa e engendra que a transformação deverá ser produzida e formulada pelos prejudicados da ampliação da lógica proprietarista nos mundos da vida. Marx e Engels se manterão no mesmo otimismo, típico do século XIX, que se maravilhava com a sinergia das descobertas humanas, que pareciam colocar a existência em outro patamar de esperança.

"Das passagens anteriores pode-se concluir também que Hegel: (1) compreende a Revolução Francesa, como uma fase nova e mais completa desse império do espírito; (2) vê nos filósofos os imperadores universais do século XIX; (3) afirma que agora apenas pensamentos abstratos têm validade entre os homens; (4) que já nele casamento, família, Estado, aquisição própria, ordem burguesa, propriedade, etc são entidades compreendidas como "Divinas e Sagradas", como "o Religioso"; e (5) que a moralidade é representada como santidade essencial ou mundanismo santificado, como a forma maior e última do império do espírito sobre o mundo..." MARX  e ENGELS 2007 página200

O século XX se desenvolverá a partir das lutas de narrativas, em torno ao Estado, duas guerras mundiais, que certos historiadores descrevem como; a primeira como confronto entre Impérios-Estados coloniais, e a segunda, como confronto entre Estados do totalitarismo e da liberdade. Na segunda guerra, a aliança pela liberdade incluiu o Império Soviético, o Estado do Socialismo real, que fora na verdade o grande confronto do nazi-fascismo, que mobilizava 10 divisões do exército alemão na frente oriental (Rússia), em contraposição com apenas 3 divisões para a frente ocidental (França e Mar do Norte). A segunda guerra assistirá a aliança de Churchil (Inglaterra), Roosevelt (EUA) e Stálin (União Soviética) contra o nazi-fascismo, que ao final será derrotado de fato pelo exército soviético, primeiro a chegar em Berlim. Na derrubada de Hitler, a União Soviética de certa forma emerge como o Estado racional de Hegel, planejado de forma centralizada, parecendo demonstrar uma operatividade superior. No segundo pós guerra, com a hegemonia EstadoUnidense verifica-se nos Estados centrais ocidentais dois grandes eixos de regulação, de um lado, o keynesianismo e do outro, o Fordismo. O Keynesianismo irá promover a regulação do crescimento da economia, a partir da enorme capacidade presente no Estado de gerar e pensar regulações anti-cíclicas, que eram identificadas como ajustes na tendência inexorável do sistema capitalista de permanecer prisioneiro nas práticas especulativas. A materialização do lucro se faz por sua conversão em base monetária, em si improdutiva, e, com tendências inevitáveis em direção a sedução especulativa, aonde dinheiro produz dinheiro, sem passar pela produção. A outra forma reguladora dos Estados centrais era o Fordismo, a garantia de um grau de consumo razoável para a classe trabalhadora, impulsionando a compra generalizada de bens e serviços, numa ampliação inusitada do bem estar. A grande crise de 1929, da Bolsa de Nova York havia gerado uma grande instabilidade no sistema, gerando consequências em cascata como o advento do nazismo na nação mais alfabetizada da Europa, e com maior população universitária. Era na verdade, como já mencionado aqui, um grande baque para o otimismo do século XIX, alicerçado na expansão contínua do Iluminismo. 

"Muitos fatos mostram que, independentemente do elemento russo no caso os efeitos da Segunda Guerra Mundial sobre a situação social da Europa serão parecidos com os da Primeira Guerra Mundial, só que mais fortes. Ou seja, estamos presenciando a aceleração da tendência existente à organização socialista da produção no sentido definido nesse livro. O mais importante desses fatos é o sucesso do Partido Trabalhista inglês... O tempo do liberalismo acabou, é claro, mas até mesmo os doze membros liberais sobreviventes represetam mais votos que 72 membros trabalhistas tomados a esmo. SCHUMPETER, 2017 página 506

A crise do final dos anos setenta e começo dos anos oitenta foi determinada por aquilo que vários teóricos apresentam como um tendência natural do sistema, ao declínio das taxas de lucro, e, pela Crise do Petróleo, de meados da década. De um lado, o poder dos monopólios, e de outro a exaustão dos dois modelos de regulação do sistema capitalista; o keynesianismo e o fordismo. Alguns historiadores e cientistas sociais identificam nas pautas das manifestações de 1968, aonde o quadro da distinção entre esquerda e direita se desvanece, numa luta contra a burocratização geral do Estado, seja ele capitalista ou socialista. A emergência da contra cultura desvenda a pluralidade e multilateralismo, determinando a consciência da diversidade do desenvolvimento, que passa a ser medido por uma infinidade de índices. Uma perplexidade geral será capitalizada pela nova direita, que com a eleição de Thatcher (1979), e Reagan (1981) conquistam o poder, iniciando o desmonte do Wellfare State, ou Estado de Bem Estar Social, nos países centrais. Um desenvolvimento, que fora conquistado pelos sindicatos a partir de lutas e greves, mas que declinara da solidariedade internacional, impondo muitas vezes um fardo pesado para a mesma categoria na semi-periferia do sistema, nos países em desenvolvimento. Desde então, o discurso da responsabilidade fiscal e da necessidade do Estado gastar apenas aquilo que arrecada, se generaliza, impondo a revisão das políticas anti-cíclicas do keynesianismo. A obsessão pelo controle de despesas do Estado é determinada ´por uma clara vertente conservadora; diminuição das taxas de tributação dos mais ricos, e desmonte das políticas de âmparo social. De uma hora para outra decrescem os empregos industriais, e as grandes concentrações fabris que se robotizam, os serviços financeiros e de seguros se ampliam como grandes contratadores. A empresa e sua racionalidade operativa são celebradas, conquistando a administração pública, que envereda pelos seus padrões de funcionamento, esquecendo-se do seu papel solidário. Na década de noventa, com a expansão das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), se diponibilizam uma série de dados e comportamentos, que transmitem a falsa impressão de liberdade, mas que na verdade geram uma condição alienada, sem sentido e direção de muita perplexidade. Os grandes discursos explicadores, como o Iluminismo, o Liberalismo e o Comunismo perdem sua força explicadora e direcional, cedendo diante de uma empiria contínua, que celebra um presente eterno e inescapável.

"A esse tempo agitado e confuso em que a informação nos entretém sem nos orientar, chamamos de “atualismo”. A capacidade de agitar, sem orientar ou desvelar, desse fluxo de notícias tem sido bem explorado pelas direitas globais." PEREIRA  e ARAÚJO 2019

No Brasil, o Estado tem suas especificidades, além da presença do patrimonialismo ibérico apontado acima por FAORO 2001, e outros autores, há uma clara violência naturalizada na sua tarefa primeira de legislar sobre a escravidão. Além disso, nossa independência da metrópole é proclamada pelo filho do rei de Portugal, decretando a instalação de um único e isolado regime monárquico na América. O príncipe, logo também abandona a nação, deixando o reino para seu filho de apenas cinco anos, que na verdade constituirá o Estado em acordo com as oligarquias agrário exportadoras.  Uma das mais violentas instituições da colonização europeia, a escravidão, que vai sendo extinta a medida que as nações americanas vão se constituindo como independentes, ou logo após do seu aprimoramento estatal; 1808 Perú, 1820 México, 1823 Chile, 1826 Bolívia, 1842 Paraguai, 1851 Colômbia, 1865 EUA. Apesar dessa onda, tão próxima, o Brasil libertará seus escravos apenas em 1888, num gesto da Princesa Isabel, deixando-os sem qualquer indenização, num confronto desigual com uma política do mesmo Estado de incentivo da imigração europeia e japonesa. O Brasil será o último país do complexo Atlântico Europeu a extinguir a escravidão, num gesto autocrático da sua monarquia, que logo depois perde o governo para uma quartelada militar, que também toma o poder sem qualquer participação popular. A conformação do Estado no Brasil, corrobora aquilo que o professor e historiador, Luiz Antonio Simas afirma;

"O Brasil é um empreendimento de ódio." Entrevista para a Gazeta de Vitória

Todo Estado encarna o monopólio da violência, no entanto o Brasil tem no seu Estado uma premissa indelével a exclusão de parcelas expressivas de sua população em nome de um desfrute privilegiado e exclusivo, que deve ser para poucos. A premissa primeira é a não inclusão de parcelas expressivas da sua população, condenando-as a viver numa linha abaixo da sobrevivência, sem direito sequer a um relato, que aponte sua redenção. Zumbi de Palmares no século XVII já sabia disso, sua história e luta foi apagada de forma violenta, impedindo em nossa contemporaneidade, que qualquer narrativa factual sobre o Quilombo comandado por ele chegasse a nós. Talvez a melhor explicação seja o sentido do seu nome, a palavra Zumbi, vem do termo zumbe do idioma africano quimbundo, e significa fantasma, espectro, alma de pessoa falecida. Hoje, apenas podemos percorrer o Parque do Quilombo de Palmares no Estado de Alagoas, supondo qual era a face desse aglomerado revoltoso, que resistiu as forças holandesas e portuguesas de 1580 a 1694. Como era sua ordenação espacial? Como eram suas casas? Como promoviam seu sustento e sobrevivência? Palmares se estemdia então da margem esquerda do Rio São Francisco até o cabo de Santo Agostinho, e tinha mais de 200 quilômetros de extensão. era uma república com uma rede de onze mocambos. O principal mocambo ficava na serra da Barriga e levava o nome de Cerca do Macaco, com duas ruas espaçosas com 1.500 choupanas, e umas 8.000 pessoas cercadas e protegidas por uma paliçada de madeira. Os outros mocambos eram; Amaro, Sucupira, Tabocas, Zumbi, Osenga, Acotirene, Danbrapanga, Sabalangá e Andalaquituche. A violência do apagamento de nossa memória negra e da profunda injustiça que a escravidão representa foi mais uma vez praticada, um ano após a Proclamação da República. Em dezembro de 1890, o então ministro da Economia, Rui Barbosa manda destruir os registros da escravidão no Brasil, com claro temor dos pedidos de indenização dos fazendeiros e das oligarquias agrário exportadoras;

"Obrigada a destruir esses vestígios por honra da pátria e em homenagem aos deveres de fraternidade e solidariedade para com a grande massa de cidadãos que a abolição do elemento servil entraram na comunhão brasileira." BARBOSA em 1890, ao mandar incinerar os registros de cartório da escravidão.

Enfim, o Estado no Brasil, que com a Constituição de 1988 parecia abandonar um pesado passado, que possuía um claro projeto de exclusão de amplas massas de sua própria população, parece agora diante de um imenso retrocesso autoritário querer restaurar suas raízes oligárquicas. A lógica miliciana, que atualmente nos governa quer recalcar a presença indígena e negra em nossa formação, se envolvendo mais uma vez num "empreendimento de ódio."

BIBLIOGRAFIA:

ABBAGNANO, Nicola - História da Filosofia Volume IX: Fichte, Schelling, Hegel Schopenhauer, A polêmica contra o idealismo, A esquerda hegeliana, Feuerbach - Editorial Presença Lisboa 1983

ARENDT, Hannah- Sobre  Revolução - Companhia das Letras São Paulo 2001

ARRIGHI, Giovanni - O longo século XX, dinheiro, poder e as origens de nosso tempo - Editora Unesp São Paulo 1996

FAORO, Raimundo - Os donos do poder, formação do patronato político brasileiro - Editora Globo Rio de Janeiro 2001

LIMA, Cinthia Almeida - O Jovem Hegel: escritos teológicos dos períodos de Stuttgart a Iena - O Jovem Hegel: escritos teológicos dos períodos de Stuttgart a Iena | Almeida Lima | Revista Diaphonía (unioeste.br) coletado em dezembro de 2020

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich - A ideologia Alemã - Civilização Brasileira Rio de Janeiro 2007

PEREIRA, Mateus e ARAÚJO, Valdei - Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI - Editora Milfontes Vitória 2019

SCHUMPETER, Joseph A. - Capitalismo, Socialismo e Democracia - Editora UNESP São Paulo 2017

SINGER, Paul -. Hegel - Coleção Mestres do Pensar. São Paulo: Loyola, 2003