quinta-feira, 7 de março de 2024

Antropoceno ou Capitaloceno, conceitos em disputa, ampliação ou redução das racionalidades


Afinal, vivemos uma nova era geológica denominada Antropoceno, na qual os impactos da atividade humana generalizada sobre o planeta atingem a dimensão de uma Era Geológica, fazendo-nos superar o Holosceno, decretando uma crise ecológica nunca vista. Ou, estamos diante do Capitaloceno, uma era na qual a produtividade capitalista, o extrativismo desenfreado, a expansão do imperialismo, a ampliação da mercantilização da vida atinge várias áreas do planeta, enfim uma ordenação social específica, que determina uma crise ecológica sem precedentes. As duas versões vem sendo debatidas, e trazem cada uma, um alinhamento ideológico, um critério de juízo sobre a Crise Ambiental que vivenciamos; o Antropoceno aparece como uma construção das ciências naturais, enquanto o Capitaloceno emerge de uma visão das ciências sociais. As duas conceituações não são excludentes, mas reforçam posicionamentos e alinhamentos ideológicos; o Antropoceno responsabiliza a humanidade como um todo pelo que alcançamos, enquanto o Capitaloceno responsabiliza os beneficiários de um sistema econômico, social e político, que emerge num determinado tempo histórico. As mudanças climáticas, a extinção de espécies animais, o advento de biomas naturais modificados e desequilibrados são frutos de um longo processo de autonomização da espécie humana em relação a natureza? Ou são produzidas por um desenvolvimento predatório, com excesso de desperdícios e não absorção de dejetos e subprodutos de um processo produtivo exponencial, cujo os beneficiários se restringem a uma minoria da humanidade? Há aqueles que se voltam contra a razão ocidental, eurocêntrica que a partir do século XV, se lançou a conquista do mundo, impondo uma lógica linear redutora, instrumental, incapaz de perceber a complexidade da vida. A modernidade, que frutificou no Renascimento, reconstruindo a ontologia da cultura greco romana que impulsiona uma racionalidade que se restringe a alcançar fins redutores e limitados. Que racionalidade é essa? A racionalidade é a mesma para toda a humanidade? Para Max Weber existiam dois tipos de racionalidades; uma mais completa ou integral era a ação racional valorativa, e outra mais limitada e restrita era a ação racional instrumental, o autor vinculava essa segunda racionalidade instrumental à modernidade. Há também em Jürgen Habermas, uma distinção importante entre razão instrumental e razão intersubjetiva; a primeira é dominada pela restrição individual ou interesses de grupos restritos e sua objetivação é ditada pela manipulação de meios adequados a fins. Enquanto, a segunda racionalidade contempla ou negocia com o coletivo e objetiva-se por valorizações morais e éticas, onde a gestão dos recursos disponíveis é problematizada e os benefícios são ampliados socialmente. Habermas ao contrário de Weber, se mantinha como defensor da racionalidade renascentista e iluminista da modernidade, partindo da ideia de Kant do universalismo da razão(1), além das identidades, e impulsionada pelo auto esclarecimento.

"Não podemos excluir de antemão que o neoconservadorismo ou o anarquismo de inspiração estética está apenas tentando mais uma vez, em nome de uma despedida da modernidade, rebelar-se contra ela. Pode ser que estejam simplesmente encobrindo com o pós esclarecimento sua cumplicidade com uma venerável tradição do contra-esclarecimento." HABERMAS, 2002, pág.8

Mas além, do Capitaloceno como expressão questionadora do Antropoceno, também surgiram outras expressões que além do Capitalismo localizam o problema em outras ordenações sociais como; o Faloceno (machismo), o Racismoceno (racismo), o Plantatioceno (colonialismo), ou ainda Necroceno (necrofilia). Enfim, o valor de todos esses termos emerge do mérito de identificar no conjunto da humanidade, os principais responsáveis ou beneficiários de uma racionalidade redutora instrumental de meios-fins, procurando distinguir em consequência, os principais prejudicados, a sub humanidade deixada ao largo pelo mesmo sistema produtivo. É claro as correspondências entre os impactos da crise climática e as atividades antrópicas principalmente as que decorrem da concentração de Gases do Efeito Estufa (GEE) na atmosfera, majoritariamente provenientes da queima de combustíveis fósseis, incrementados pelos processos históricos de industrialização decorrem ao final da distribuição desequilibrada de oportunidades fomentada pelo capitalismo, pelo machismo patriarcal, pelo racismo, pelo colonialismo, pelo imperialismo. No entanto, é necessário manter um certo cosmopolitismo da consciência humana geral, identificando que a maioria dos seres humanos são despossuídos e foram colocados à margem como uma sub espécie, que não desfrutou e segue sem desfrutar dos benefícios de uma ordenação sócio-cultural excludente, o capitalismo. É importante nesse contexto, a identificação do neoliberalismo hegemonizado pela globalização capitalista como promotor e responsável central dos riscos ambientais que corremos, de forma absolutamente diferenciada, pois são as populações do Sul Global que mais serão atingidas. O sistema de operação do neoliberalismo naturalizou, que um número pequeno de interesses particulares controle a maior parte da produção e reprodução da vida social no planeta, apurando benefícios individuais particulares, de maneira mais explícita a partir dos governos de Thatcher (1979) e Reagan (1981). Tudo isso fica atestado de forma clara pelo enorme crescimento da pobreza, da desigualdade social e econômica nas sociedades e entre nações, fruto da expansão capitalista, do imperialismo e da hegemonia financeira-produtivista. Enfim, é necessário reconhecer que as políticas de afirmação identitária não tem conseguido fazer frente, oposição consistente, ou construir alternativas ao módus operandi do neoliberalismo. A partir da perspectiva crítica da história é preciso começar a reconhecer que o mundo do trabalho - sindicatos, associativismo de categorias, partidos trabalhistas e ligas camponesas - eram mais eficientes na contenção dos interesses predatórios dessa minoria endinheirada, do que as políticas identitárias atuais. Será preciso combinar, com grande sensibilidade, uma convergência geral de revalorização do mundo do trabalho e das formas variadas de reprodução da vida, questionadoras do acúmulo desregrado de renda de uma minoria, e ao mesmo tempo, frutificar as lutas identitárias específicas dos subalternos do mundo. Uma busca aparentemente paradoxal, entre a homogenização dos despossuídos do mundo e a heterogenização das identidades variadas do mundo.

"0 neoliberalismo é o paradigma econômico e político que define o nosso tempo. Ele consiste em um conjunto de políticas e processos que permitem um número relativamente pequeno de interesses particulares controlar a maior parte possível da vida social com o objetivo de maximizar seus beneficios individuais. Inicialmente associado a Reagan e Thatcher, o neoliberalismo é a principal tendência da politica e da economia globais nas últimas duas décadas, seguida, além, da direita, por partidos politicos de centro e por boa parte da esquerda tradicional [...]. As consequências econômicas dessas políticas têm sido as mesmas em todos os lugares e são exatamente as que se poderia esperar: um enorme crescimento da desigualdade econômica e social, um aumento marcante da pobreza absoluta entre as nações e povos mais atrasados do mundo, um meio ambiente global catastrófico, uma economia global  instável e uma bonança sem precedente para os ricos. Diante desses fatos, os defensores da ordem neoliberal nos garantem que a prosperidade chegará inevitavelmente até as camadas mais amplas da população - desde que ninguém se interponha a política neoliberal que exacerba todos esses problemas!" CHOMSKY, 2002, p. 3.

A crença de que o modelo do neoliberalismo promoveria a distribuição de riqueza e um desenvolvimento mais equilibrado entre as nações, típica das décadas de 80 e 90, já se desfez pela recorrente emergência de crises financeiras, aumento da pobreza e da inequidade ao longo desse tempo. Mas, ainda nos confrontamos com agentes defensores dos paradigmas neoliberais, particularmente na grande imprensa, tais como; valorização da competição geradora de eficiência, a desregulamentação estatal do mercado, o fomento a iniciativa privada desvencilhada das externalidades, supervalorização do Mercado como reino da virtude, e subvalorização do Estado como reino da corrupção e da ineficiência. O sistema desconsidera de forma recorrente a manutenção das condições de vida, em nome de uma eficiência da competitividade, com a primazia da razão técnica, que não leva em conta as externalidades humanas ou ambientais. Será preciso superar o identitarismo branco e europeu, questionando a modernidade carregada de uma racionalidade redutora de meios e fins, rompendo com o colonialismo que dita verdades sem pensar e sentir os meios de produção e reprodução da vida. A própria compreensão da história da humanidade precisa ser ampliada, para envolver a todos da espécie, reconsiderando as relações entre centro e periferia. A clássica subdivisão entre História da Antiguidade Pré Clássica, Clássica, Idade Média e Modernidade, que carregam o eurocentrismo deve ser questionada. Apenas, no espaço do ocidente deve-se revalorizar as contribuições; Árabe para as ciências modernas e a própria preservação do Aristotelismo, a Epistemologia dos povos originários da América, com sua lógica cíclica centrada na reprodução da vida, e a Africana que rejeita o pathos da demolição e de não aceitação do outro e do diverso (2). A consideração reproduzida em compêndios de História da arte, arquitetura e urbanismo, que se apresenta como universal, mas que recalca o imenso período de 5 século e meio, que vai da Queda do Império Romano do Ocidente (476d. C.) até o século X (1.000d.C.) na Europa é um testemunho cabal da desconsideração com a expansão árabe no norte da África e na Península Ibérica, ocorrida nesse momento. Manifestações como a Alhambra em Granada, ou o Califado e a Mesquita de Córdoba são desconsiderados, por não pertencerem ao esquematismo colonizador da Europa hegemônica.

"O domínio epistemológico tem na razão instrumental sua fundamentação. A razão nessa perspectiva soberana, totalitária, tornou-se, no Ocidente, a racionalidade científica que, como modelo totalitário, nega o caráter racional de todas as outras formas de conhecimento que não tiverem como critério os princípios epistemológicos e regras metodológicas da epistemologia dominante. Funciona como um acontecimento apropriador, como diria Heidegger. Isso nos leva a crer que os processos de 
descolonização que se iniciaram, historicamente, como um processo de libertação das colônias formação de Estados-nacões independentes, hoje devem continuar com a libertação de uma colonização epistêmica que, se efetivada, abriria espaço para a concepção de outra razão, de outra racionalidade ou ainda de outras formas de operação humanas para produzir conhecimento científico e filosófico. A descolonização colocaria fim a um processo histórico de implantação de poder, ou ao menos o enfraqueceria." PIZA e LIMA 2023 pág.113

A modernidade carregada de colonialismo precisa ser superada, por uma modernidade sem colonialidades brancas, uma questão complexa, que não deve descambar para uma simplificação redutora, da mera desqualificação como um todo, da contribuição da Europa. A divisão pseudo científica da história "humana" em Idade Antiga (antecedente greco-romano), a Idade Média (preparatória ou crítica) e Idade Moderna (Renascimento Europeu) é uma ordenação ideológica redutora, que não corresponde a sua pretensão de ser "humana" ou universal. Uma parte dessa ordenação serve a reprodução da razão instrumental, com claras finalidades de reprodução do acúmulo do capital, do imperialismo e da concentração de renda. Há uma cruel lógica capitaneada pelo avanço tecnológico, que como assinalou Franz Hinkelammer opera como um bicicleta ergométrica, que independente da velocidade não sai do lugar. O ambiente no capitalismo globalizado e neoliberal transmite a impressão de mudança constante e inevitável, sem nada mudar, mantendo sempre a mesma catástrofe de exclusão e concentração de renda. O marco histórico das bombas de Hiroshima e Nagasaki em 1945, assinalam aquilo que alguns autores consideram como a ampliação da "natureza barata"(3) humana ou natural, quando se processa uma imensa expansão do capitalismo pelo mundo e da razão instrumental de meios e fins. A implantação de um raciocínio de guerra, afinal quanto custa a destruição da Amazônia? Segundo a racionalidade instrumental de meios e fins, apenas os custos da mão de obra, das serras elétricas, do transporte da madeira, e nada mais, pois a venda da madeira que consegue superar esses custos, se apresenta e mensura o lucro. Apenas, a partir daí, no segundo pós guerra (4), é que emerge a consciência dos limites dos recursos do planeta, da finitude da Terra, que apesar de já operar desde a exploração da prata em Potosí na Bolívia, ou do ouro em Minas Gerais no Brasil, nos séculos XVI e XVII, só alcançará nesse ponto a materialidade do estrago planetário, ou sua consciência. As consequências para o campo da arquitetura e do urbanismo são notórias e incontornáveis, pois fica claro a relação entre realidade e projeção, entre contexto e formulação do devir, entre terreno e projeto, entre cidade e plano, agora condicionada pelo "automatismo do mercado". Já não se fala mais em corrigir o mercado, em respeito a satisfação das necessidades humanas, na lógica neoliberal deve-se agora adaptar a "realidade" às imposições do mercado, como algo automático, insuperável e repetido ao infinito. Com isso, parece que estamos indo rapidamente em direção a um suicídio coletivo, dado por essas condições de operação pouco sustentáveis ambiental e socialmente. Afinal, o que será das próximas gerações? O esloveno Slavoj Zizek tem uma irônica e trágica colocação assinalando nossa corrente atitude suicida; 

"a nós nos parece muito mais fácil imaginar o fim do mundo do que uma pequena mudança do sistema político. A vida na terra possivelmente vai acabar, mas o capitalismo de algum modo continuará." DUAYER 2023 pág.89

NOTAS:

(1) Imanuel Kant escreveu em 1784 um opúsculo denominado "Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolta", no qual se contrapõe a ideia de "sujeitos singulares" e o "conjunto da espécie" para a determinação de uma "liberdade da vontade", que acaba por conformar as disposições naturais para o uso da razão na humanidade.

(2) As epistemologias decoloniais do Sul Global, fomentadas por autores como; Enrique Dussel, Juan José Bautista, Franz Hinkelammert, Henry Mora Jiménez e Achille Mbembe.

(3) Jason Moore se refere a "Cheap Natures" para se referir a forma de apropriação do colonialismo, que explora naturezas humanas e naturais na periferia do mundo de baixo custo, numa atitude predatória de segregação.

(4) O primeiro autor a se referir ao Antropoceno no início dos anos 2000 foi o prêmio Nobel de Química, Paul Crutzen, segundo MOREIRA e GARRIDO, 2024 pág140. Os mesmos autores fazem referência  a "Grande Aceleração", ocorrida após a década de 50, após as bombas atômicas como uma época de aceleração da industrialização e urbanização.

BIBLIOGRAFIA:

BAUTISTA, Juan José - Hacia la descolonización de la Ciencia Social Latinoamericana - La Paz, Rincón Ediciones, 2012

CHOMSKY, Noam - Como parar o relógio do Juízo Final? - São Paulo, Instituto do Conhecimento Liberta (ICL), 2023

DUAYER, Mario - Teoria Social, Verdade e Transformação: ensaios de crítica ontológica - Editora Boitempo, São Paulo 2023

__________, Noam - O lucro ou as pessoas - Rio de Janeiro, Bertrand Russel, 2002

DUSSEL, Enrique - 1492; el encobrimiento del otro - La Paz, Plural 1994

________, Enrique - Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão - Petrópolis, Editora Vozes, 2000

HINKELAMMERT, Franz e JIMÉNEZ, Henry Mora - Hacia una economia política para la vida - Costa Rica, San José, UNA Economía y Sociedad n.21 2005

MBEMBE, Achiles - Necropolítica: biopoder, soberania, Estado de exceção, política da morte - São Paulo,  N-1 Edições, 2016

MOREIRA, Danielle de Andrade e GARRIDO, Carolina de Figueiredo - Uma nova época: Antropoceno ou Capitaloceno? Contexto histórico e desafios contemporâneos da crise climática - São Paulo, ICL, 2023

PIZA, Suze e LIMA, Bruno Reikdal de - Racionalidade e economia no fim dos tempos - São Paulo, Instituto do Conhecimento Liberta, 2023

HABERMAS, Jürgen - O discurso filosófico da modernidade - São Paulo Martins Fontes 2002

sexta-feira, 1 de março de 2024

As origens da arquitetura, um livro notável

Figura 1: Cronologia da Pré História, com a distinção entre
o Paleolítico (200.000 a.C. até 18.000a.C.),  o Neolítico
(18.000a.C. até 5.000a.C.) com a Revolução Agrícola e a
Idade dos Metais (5.000a.C. até 4.000a.C.) com a Metalurgia
e a Rev. Urbana

O texto a seguir é fruto da leitura do livro de Leonardo Benevolo e Benno Albrecht, que tem como título; "As Origens da Arquitetura", uma obra notável impulsionadora de questões fundamentais para operação da projetação contemporaneamente. Já, há alguns anos sou responsável pela cadeira de Teoria e História da Arquitetura 1 (THArq1) na Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU-UFF), que abarca um período longo, entre o advento da espécie humana, ou das primeiras manifestações de expressão pictórica nas cavernas ou de marcação territorial no Paleolítico (2,5 milhões de anos antes de Cristo), até o Renascimento Italianos nos séculos XIV, XV e XVI na era cristã. Um período extremamente extenso e complexo, no qual a humanidade constrói, transmite, apaga, recupera e retoma técnicas construtivas diversificadas, que interagem com várias formas de organizações sociais, constituindo o patrimônio da humanidade. Essa noção de Patrimônio Construído Comum, que perpassa esse longo período carrega a ideia de que a experiência humana em sua auto construção, ou na ampliação de sua humanização é um processo contínuo compartilhado, onde as tecnologias são apropriadas pela ideia kantiana de História Comum da Humanidade. Essa disciplina THArq1 era ministrada pelo Professor Juarez Duayer, que gentilmente forneceu me todo seu material didático e de trabalho, e a quem, sou extremamente grato por seus apontamentos, bibliografia e conceituação. Aqui nesse texto, pretende-se abordar o grande período da Pré História, que se refere ao tempo anterior a Idade Antiga, quando ainda não há escrita. Já houve aqui no blog, uma abordagem desse período no texto de 13 de outubro de 2021; "O filme a Guerra do Fogo e a disciplina de  Teoria e História da Arquitetura 1 (THArq1)", que aborda o citado filme do diretor Jean Jacques Annaud de 1981. Esse imenso período, conforme mostra a cronologia de 200.000a.C até 4.000a.C., que está subdividido em três partes. O primeiro período, o Paleolítico quando a espécie humana é caracterizada pelo nomadismo e por atividades extrativistas como a caça e a pesca e pelo aparecimento dos primeiros utensílios de pedra. O segundo trecho é o período do neolítico, quando ocorre a revolução agrícola, quando se desenvolve o início da fixação dos grupos humanos em sítios específicos em assentamentos classificados como aldeias. O terceiro período nomeado como Idade dos Metais, quando aparecem os primeiros utensílios de ferro e cobre, a metalurgia, e a Revolução Urbana, que determina uma aceleração incrível da apropriação de tecnologias pela humanidade, até alcançar o advento da escrita, que determina o final da pré história e o início da História. Esse período, apesar de distante é de suma importância para a arquitetura, o urbanismo e o paisagismo, por representar o advento da modificação do meio natural e o desenvolvimento da construção do abrigo, da casa, da cidade e da paisagem humana. É o período de artificialização ou da desnaturalização do humano, tanto pela confecção de utensílios, como pela formulação do abrigo, como um lugar que se constrói. Inicia-se aí a humanização do homem, que se manifesta na sua autonomização com relação ao meio natural, uma diferenciação que não mais reconhecerá na natureza a capacidade de abrigar e acolher a sua espécie. Começa um processo de acumulação contínua de tecnologias, saberes e pensamentos, que produz uma capacidade crescente de compreensão do mundo natural que passa a ser manipulado para seu próprio proveito e conforto. Emerge a arquitetura, o urbanismo, o paisagismo e a manipulação territorial em benefício do grupo humano, que pelas Revoluções Agrícola e Urbana materializam uma fenomenologia humana, parcialmente destacada da animalidade. Nesse sentido, em 1881, o arquiteto William Morris nos forneceu uma das mais precisas definições do que é a arquitetura, o urbanismo e o paisagismo, numa palestra intitulada, "The Prospects of Architecture in Civilization".

"Arquitetura é uma concepção ampla, pois abarca todo o ambiente da vida humana. Não podemos subtrair-nos a ela enquanto fizermos parte da sociedade civil, porque a arquitetura é o conjunto das modificações e alterações introduzidas na superfície terrestre como vistas as necessidades humana, com a única exceção do deserto puro [...]  citação de William Morris em BENÉVOLO e ALBRECHT 2002 pág.7

A ideia de constituição de uma sociedade colaborativa humana, que desemboca numa sociedade civil regrada e pautada por princípios de convivência, que garantem, e ao mesmo tempo promovem a autonomização do homem frente ao natural, identificando aí uma força diferenciadora. E, que concentram nessa atitude, nesse ambiente construído, modificado e adequado a sua existência, a seu comportamento diferenciado com relação ao natural, o próprio fator de uma reprodução da espécie autonomizada. E, prosseguem Leonardo Benévolo e Benno Albrecht, destacando o afastamento da tradição de certas definições culturais arraigadas da arquitetura, que destacaram a diferenciação entre necessidade e contemplação estética, como fenômenos distintos. E, mais ao fato de que as transformações humanas do meio natural estão carregadas de um espírito empreendedor impossibilitado de distinguir necessidade e arte no fazer humano.

"[...]A uma ideia restrita de arquitetura, historicamente qualificada, continua ser fiel, como se sabe, um grupo ínfimo de arquitetos contemporâneos, por um intuito programático preciso" BENÉVOLO e ALBRECHT 2002 pág.7

Essa definição materialista da arquitetura, de William Morris, que é compartilhada por alguns profissionais e pensadores do século XIX, e que questiona claramente a postura idealista, que encara o ofício como uma manifestação cultural compartilhada pela humanidade como um todo. E, que se distancia do posicionamento mais corriqueiro, idealista, que considera arquitetura e as transformações "introduzidas na superfície terrestre", apenas aquelas, que possuem intencionalidade estética, longe do império da necessidade. Nessa visão, necessidade e intencionalidade estética se misturam, mantendo-se a utilidade operacional e contemplativa dos objetos num interação dialética. Instrumentação e contemplação se somam a partir da capacidade de pré imaginar ou pré figurar - planejar e projetar - antes de realizar, como uma forma de problematizar as escolhas e assim refletir sobre o sentido. Liberdade e necessidade interagem de forma contínua e progressiva, gerando a auto problematização de sua própria existência, das tecnologias já inventadas e as que ainda devem ser inventadas para seu benefício próprio e do seu grupo. Há aqui, um embrião do desenvolvimento futuro da cultura arquitetônica, que se materializará na exposição do Museum of Modern Art (MOMA) de 1964, com curadoria de Bernard Rudovski, denominada "Architecture without Architects", que demonstra o vínculo intrínseco entre construção e cultura pulverizada e compartilhada. Um dos méritos dessa exposição do MOMA foi a apresentação de conjuntos construídos, como determinados vilarejos nas Ilhas Gregas ou em vilarejos africanos, que demonstravam uma profunda interação entre meio ambiente natural e humano, onde a parte e todo conformavam uma expresividade integral. Essa posição, me parece derivar da atitude romântica que nasce da crítica a razão universalista do Iluminismo francês, que resistia a reavaliação do gótico, da Idade Média ou do particular, como uma expressão única de um gênio espontâneo, muito além dos cânones. 

"O estudo da arquitetura passada serviu sempre para estimular a criatividade contemporânea. Basta recordar, no passado próximo, a redescoberta do gótico pelas vanguardas inglesas - John Ruskin, William Morris - da segunda metade do século XIX a releitura do classicismo nas universidade americanas - Rudolph Wittkower, James S. Ackermann, Joseph Rykwert - e por Loui I. Khan e seus discípulos; a reavaliação das vanguardas no início do século XX pelos movimentos revisionistas europeus; a curiosidade omnívora de James Stirling por qualquer achado do passado." BENÉVOLO e ALBRECHT 2002 pág.9

São atitudes que comprovam a permanência do romântico de forma trans temporal, como um posicionamento humano, que muito além de estar localizada num determinado espaço, a Europa Central, o mundo Germânico, ou num determinado tempo, o último terço do século XVIII até a primeira quadra do século XIX perpassa ou corresponde a um estado de espírito da humanidade. O espírito romântico seria a negação da possibilidade de um pensamento absoluto, simétrico, bem arranjado e comportado, que criasse uma ordem racional universalmente inteligível. Esse seria por excelência o mundo do longo período do Paleolítico, quando os padrões estão por ser estabelecidos e a humanidade não tem consciência de si própria. Quando olhamos para nossa cronologia, na Figura 1, percebe-se que os acontecimentos figurativos que chegaram até nós estão concentrados nos períodos; Finais do Paleolítico, a partir de 40.000a.C., Neolítico e na Idade dos Metais, quando a atividade humana ganha capacidade de representar o mundo exterior. Pinturas rupestres nas cavernas, em Lascaux na França, na serra da Capivara no Piauí, Ordenações de Menires em Carnac, Dólmens variados pelo mundo, Stonehenge na Inglaterra, dentre outros, testemunham uma vontade de marcar o território, de domínio sobre a caça, ou de controle do tempo. Nessa observação, há uma clara aceleração da História Comum da Humanidade, chegando até a passagem entre a aldeia e a cidade, da Revolução agrícola à Revolução urbana, como entidades conceitualmente muito diferentes quantitativa, mas principalmente qualitativamente. Na cidade, que difere da aldeia por sua ruptura com o provincianismo das famílias próximas, nasce um cosmopolitismo de convivência entre a diversidade de humanos, propiciando um incrível desenvolvimento tecnológico, pela aceleração do compartilhamento entre diferentes. Emerge uma didática da cidade, que impõe a convivência com a diversidade, a ampliação do respeito a uma certa privacidade única e particular, obtida a partir do anonimato da grande cidade. Um aprendizado com a presença da diversidade entre seres humanos; de crenças, costumes e tecnologias, que é gerador de curiosidades e portanto de um intenso desenvolvimento científico, artístico, poético e político para a humanidade. Mas sigamos com calma;

"Os artefatos físicos arquitetados pelo homem e ainda visíveis compreendem aquilo que não desapareceu no naufrágio das esperanças passadas, consumidas pelo tempo e pelo acaso. Permitem-nos a nós, descendentes afastados, um contato direto, face a face, com os nossos antepassados, transpondo o abismo do tempo. A partir de uma certa época, os artefatos são acompanhados de monografias, que, do ponto de vista histórico geral, estabelecem a diferença entre pré história e história. Mas os objetos construídos tem uma eloquência direta própria, que impressiona de igual modo os olhos de todas as gerações, e que pode passar por cima de qualquer diferenças de culturas e tradições." BENÉVOLO e ALBRECHT 2002 pág.9

A presença silenciosa, sem uma base textual explicativa das Pinturas Rupestres nas cavernas, em Lascaux na França, na serra da Capivara no Piauí, Ordenações de Menires em Carnac, Dólmens em partes variadas do mundo, Stonehenge na Inglaterra, dentre outros, aparecem como enigmas, que nos desvendam a nós mesmos como humanos. Elas parecem ser possíveis através de um longo desenvolvimento, que se processa no Paleolítico e nos marca a morfologia corporal, a configuração atual da mão humana, a postura ereta e a adaptação das cordas vocais marcam o longo processo da transformação e do alcance da condição humana. Emergem três limiares importantes da condição humana. O primeiro, a capacidade de se colocar a si próprio e os objetos exteriores num espaço unitário, compreendido pelos limites da visão humana e por sua possibilidade de ser descrito e apropriado, seria a consciência de si e sua localização espacial. O segundo, a capacidade de denotar simbolicamente os objetos, as coisas e a vida de uma maneira geral, indicando e nomeando aos outros próximos a localização e o tipo. E, o terceiro a capacidade de colocar sobre um suporte qualquer - grutas, pedras, areias, e outros - a representação imagética de qualquer objeto visível, como sustentação e comprovação de seus relatos particulares. Esses limiares são compartilhados e trocados entre os grupos humanos, iniciando um processo infindável de acumulação de experiências e vivências particulares, que vão se desenvolvendo em técnicas, poéticas e abstrações, que explicam o mundo. Essas experiências transcendem o indivíduo, ganham o grupo e passam a ser compartilhadas por gerações, que se sucedem e compartilham técnicas e relatos que sempre são aprimorados ou eleitos; objetos cortantes, objetos que apiloam, objetos que armazenam, vestimentas, etc... O desenvolvimento de trabalhos coletivos, onde as capacidades, as características etárias, sexuais e morfológicas de cada um são medidas e avaliadas, iniciando o processo de divisão social do trabalho. A comunidade ganha em coesão e interação, a medida que alcança objetivos e fins compartilhados de forma comum, realizados a partir do esforço conjunto, muitas vezes realizados em torno de ritmos e cantos, a partir de uma divisão social do trabalho embrionária, medindo e avaliando os potenciais particulares de cada um.

"Ao longo deste caminho entrevê-se uma história relativamente recente, diferente de qualquer outra, que se liga ao presente imprime a todo o percurso intermédio um carácter unitário: o aparecimento da espécie atual, o Homo sapiens sapiens, que substituiu em toda a parte as espécies anteriores. Este resultado parece apontar para a dependência de um acontecimento único e não repetível, e para esta conclusão convergem, até agora, tanto as provas arqueológicas como os estudos feitos ao DNA dos grupos humanos vivos (foi demonstrado que os grupos não africanos têm uma historia que não ultrapassa os 100.000 anos). A espécie atual, nascida provavelmente em África, propagou-se durante o
último período glaciar em todas as terras que emergiram nos dois hemisférios, muitas vezes ligadas entre si pelo abaixamento do nível dos mares, substituindo ou absorvendo os grupos humanos precedentes. Nenhuma particularidade anatômica relevante distingue os nossos antepassados de então dos seis bilhões de descendentes que hoje povoam a Terra. No que respeita aos equipa-
mentos técnicos e culturais tudo mudou, mas não a marca comum, reconhecível nos desempenhos fundamentais. Esta observação é particularmente importante no campo que estamos a tratar, A história geral da arquitetura não se apresenta como um feixe de experiências separadas, mas sim como uma
árvore de experiências conexas e comensuráveis." BENÉVOLO e ALBRECHT 2002 pág.24

É a esse patrimônio comum, que a partir dos 40.000 anos do Paleolítico aparecem para nós hoje em dia, como uma capacidade de abstração e representação, nos mais diferentes substratos como uma arte, tal qual a nossa. Como bem enfatizaram vários críticos, como Giulio Carlo Argan, Ernst Fischer, Bruno Zevi dentre outros, esse fenômeno - a Arte - não nasce primitivo, como esperando evoluir, onde não há possibilidade de qualquer juízo evolucionista. Ela nasce nos maravilhando, como que carregando uma euforia identitária, que invade todos os campos da experiência humana afirmando para todos o advento de algo específico do humano. As interpretações funcionalistas reduzem a sofisticação das representações, a uma necessidade do ganho de coragem para enfrentar feras e manadas que precisam ser caçadas. Ou a entonação de ritmos e cantos, a música primitiva, que suavizavam as tarefas a serem realizadas para se alcançar um maior conforto, mas que já nascem com essa capacidade de gerar empatia dos trabalhos comuns. Certamente, ela também está presente, mas também não se restringem a esse ganho de coragem, ou de entorpecimento há nessas manifestações um compartilhamento de uma capacidade já consciente dos mistérios da vida, da morte, da luz, das trevas, do medo, da coragem, do amor, do ódio. Enfim, uma síntese descritiva feliz dos dramas humanos diante do mundo, no qual o olhar aparece como sentido privilegiado, que nos indica ou permite conhecer melhor, nunca inteiramente mas sempre com um reconfortante sentido de progresso. Nessas representações planares começa a emergir um controle embrionário do espaço e a compreensão de sua capacidade de nos transmitir um sentido. Elementos como uma montanha, um riacho, uma árvore e uma vegetação começam a criar conjuntos, que nos conferem uma compreensão do caminho, uma legibilidade, a identidade de um lugar, que passam a ser valorados. A movimentação passa através desse patrimônio descritivo que identifica particularidades e valores a ser feita com maior segurança, mapeia-se a água, as manadas, os frutos, as ervas, os perigos e os confortos. Logo, já no neolítico emerge a vontade de interferir nesse território formulando a construção de cenários humanizados, marcas na paisagem que assinalam o cemitério das saudades dos antepassados queridos e venerados, pois a morte sempre nos relembra de nossa origem animal, cíclica e misteriosa.

"A modificação do terreno, sobre o qual o homem tem caminhado há centenas de milhar de anos é, por sua vez, rica em implicações intelectuais e emocionais. A imutabilidade da paisagem é um atributo divino, cuja lembrança sobrevive frequentemente nas tradições religiosas subsequentes. Perturbá-la não pode ser um ato desencantado, mas tem um duplo valor: de transgressão de uma ordem existente e de imposição de uma nova ordem. Assim como a referência constituinte dos objetos construídos, é a linha vertical, a referência constituinte do que está agarrado à terra é o plano horizontal. Todos os projetos devem transformar a complexidade tridimensional da superfície de apoio na simplicidade de uma série de planos horizontais, separados por paredes verticais no escarpadas inclinadas. A dialética entre planos horizontais colocados a alturas diferentes põe em evidência um principio importante para toda a história da arquitetura que se segue: as medidas em elevação - as alturas -tem um peso diferente das medidas horizontais - comprimentos e larguras - e atraem uma vez mais a força da gravidade, que dificulta os movimentos em subida e facilita os movimentos em descida. Uma pequena distância entre SO níveis em elevação origina um efeito grandioso, em comparação com as distâncias existentes no terreno plano. A arquitetura das movimentações de terras adquire assim um papel central nos novos cenários inventados pelo homem, e, sobretudo, regula a colocação das construções de todos os tipos em relação ao suporte territorial. Para qualquer construção, pode escolher-se entre três situações, mantê-la ao nível do terreno circundante, elevá-la a um nivel superior ou encaixá-la um nível inferior; para realizá-las é preciso recorrer a três operações diferentes: aplanar o terreno, juntar material para obter uma elevação, ou retirar material para obter uma escavação. Se for possível, essas três operações tornam-se complementares, de modo a compensar entre si as movimentações de terras." BENÉVOLO e ALBRECHT 2002 pág.24

Essas operações correspondem a grande maioria dos sítios arqueológicos encontrados e pesquisados hoje em dia, nas mais variadas culturas e quadrantes do planeta no neolítico, cumprindo segundo teorias recentes; formas de contar o tempo para ordenar a colheita, tais como o nascer do sol, ou o por do sol, ou o solstício de inverno, ou solstício de verão. Arranjos articulados construtivos, paisagísticos em pedras, que muitas vezes envolvem territórios extensos e variados, tais como os túmulos sepulcrais na Dinamarca, ou os menires de Carnac na França, ou Stonehenge na Inglaterra, ou o sítio arqueológico em Caçuenes no estado do Amapá no Brasil. Enfim, antes de produzir sua própria habitação o homem do neolítico desenvolve implantações paisagísticas notáveis que permanecem para nós como enigmas, que são reduzidas por nossa razão instrumental; a formas de contar o tempo.

BIBLIOGRAFIA:

BENEVOLO, Leonardo e ALBRECHT, Benno - As Origens da Arquitetura - Edições 70 Lisboa, 2002