quarta-feira, 14 de setembro de 2016

O filme Aquarius e a cultura brasileira do bem viver

O edifício Aquarius do filme, tres andares de altura
O filme Aquarius vem conseguindo mobilizar uma quantidade excepcional de público, que invariavelmente se manifesta ao final da projeção, com pedidos de Fora Temer, que relembram as manifestações dos atores e da direção no último Festival de Cannes, quando abriram cartazes manifestando-se contra o golpe de estado, que então estava em curso, da presidente Dilma Roussef. Mas além dessas questões políticas importantes, o filme na verdade se concentra na discussão da opção cultural, que o país realizou com relação a construção de suas cidades, e o seu modelo cultural do bem viver. Afinal a câmera obessivamente detalha para a sua audiência uma maneira que acabou caindo em desuso em nossos empreendimentos imobiliários em nossas cidades, o edifício multifamiliar sem elevador, e portanto de baixo gabarito, que na verdade assume uma relação com o espaço público da rua muito mais amigável, que as enormes torres em altura. Hoje esse desenvolvimento em torre passou a ser o padrão do bem viver no Brasil, não existindo mais o empreendimento de pequena escala, que caracteriza o Edifício Aquarius.

No filme, essa forma de habitar arcaica é constantemente desdenhada pela familia de Clara, a personagem de Sonia Braga, como insegura, inadequada e ultrapassada pelos modernos empreendimentos das torres em altura, que povoaram a praia de Boa Viagem e o Brasil de maneira tão agressiva e especulativa. Invariavelmente, nossas frentes marítimas ou nossos bairros mais valorizados passaram a receber essas imensas torres isoladas, que acabaram por representar o padrão do bem viver de nossas elites endinheiradas. Além de seu desenvolvimento em altura excessiva, a estrutura funcional alardeada é a do condomínio clube isolado da urbanidade, que passa a representar o controle da exclusividade para o bem viver nacional. Os impactos sobre a vizinhança e o espaço público adjacente são enormes, determinando uma sensação de insegurança na rua, que também foi potencializado pelo rodoviarismo dominante.

Edifício no bairro de Botafogo na rua 19 Fevereiro
Importante registrar que as imensas torres com desenvolvimento em altura condicionam uma forma de promoção do adensamento imobiliário, que acaba dominada por grupos de empreendedores monopolistas, que não admitem mais o pequeno investidor, que promoviam nos anos cinquenta e sessenta uma infinidade de condomínios como o Edifício Aquarius nas cidades brasileiras. Basta circularmos por nossas metrópoles para constatar a presença de uma série de edifícios com as mesmas características do Edifício Aquarius, que também foram gerados pelo adensamento urbano. Isto é, nasceram também do lucro imobiliário e da intensificação do uso do solo urbano, que substituiu unidades unifamiliares por unidades de apartamentos, mas sobre a lógica de outra escala de investimento e de produção. O filme retrata de forma emblemática essa nova forma de fazer negócio, hiper especulativa e agressiva, por que promovida por grupos de negócios, que já não encontram concorrentes pois agem de forma monopolista, bloqueando de certa forma a opção de menor escala, que simplesmente não é mais oferecida.

Mas o filme vai além na sua abordagem sobre a situação urbana brasileira, trazendo reflexões importantes sobre a forma como nossas cidades vem se reproduzindo, e gerando um espaço segregado em extratos sociais, com ruas dominadas pelo automóvel e o pneu, condenadas a baixos indices de interação social. Em vários momentos as cenas nos mostram como a geração de Clara, a personagem de Sonia Braga, veneroou e ainda venera o automóvel, seu glamour, sua capacidade de nos transportar fazendo-nos ouvir boa música. Já nas cenas iniciais, na reconstrução dos anos sessenta somos confrontados como essas máquinas que violavam até o espaço noturno de nossas praias, num uso arrogante e exclusivista. Mais contemporaneamente a reunião da familia de Clara, mostra-nos como cada um de seus filhos requisita novos carros cada vez mais potentes e com equipamentos sonoros de última geração. Num determinado momento a sobrinha de Clara, procurando nos albuns de fotos antigas da família, pergunta a seu pai, o irmão da protagonista, porque nos anos passados as pessoas tiravam fotos juntas com seus carros? A resposta é que "eles (os carros) naqueles tempos faziam parte da constituição da personalidade dos seus proprietários", dando-lhes características próprias.

Por último, a questão da segregação urbana também está retratada no filme de forma notável. Num passeio pela praia da Boa Viagem, com a visitante carioca, que aliás mora no Largo dos Leões, na Rua Mario Pederneiras, uma rua de escala notável na sua relação entre espaços públicos e privados no Rio de Janeiro, Sonia Braga explica a subdivisão entre o bairro de classe média alta e a favela de Brasília Teimosa. A fronteira, o limite, a cisão entre a classe média próspera e a auto construção da favela, que fornece a mão de obra de porteiros, empregadas domésticas, babás, etc... é a vala negra de esgoto, que corta a areia da praia. A precariedade de nossas infraestruturas mais básicas é o sinal para a mudança do território. Logo após na sequência, mais uma vez aparece a tipologia habitacional e sua interação com a urbanidade, agora no espaço da precariedade, numa festa, um churrasco dada por uma ex empregada de Clara que mora na favela de Brasília Teimosa; a laje, o terraço, o pavimento mais afastado da rua e da viela, também reconstroe essa distância do burburinho inesperado da vida urbana.

Enfim, o filme Edifício Aquarius é uma reflexão importante sobre o processo de construção e reprodução da cidade brasileira, um processo que tende a radicalizar a separação entre espaços privados e públicos, determinados por uma série de costumes e culturas, que vão desde a celebração da intimidade, a negação da surpresa da rua, o culto exacerbado do automóvel particular, a segregação social, e a produção da intimidade entre precariedade ou auto construção e o distanciamento ou alheamento da urbanidade. Ao final o principal protagonista do filme é esse edifício - Aquarius -, que não se alienava da urbanidade.