domingo, 23 de setembro de 2018

Aonde anda a direita inteligente? Ou democrática do Brasil?

Ciro Gomes e Fernando Haddad opções democráticas
Com o anuncio no começo da semana do crescimento da tendência de votos em Fernando Haddad do PT, se colocando como segundo colocado para as eleições presidenciais de 2018, o campo da direita ou conservador começa a dar demonstrações de pouca inteligência, ou de pouco apreço pelo jogo democrático. Iniciando pelo candidato do governo do Estado do Rio de Janeiro, Indio da Costa, que declarou seu abraço a candidatura de Bolsonaro, o capitão do exército que celebra as soluções autoritárias e de exceção. O abandono da coalizão de Geraldo Alckmim do PSDB repete o gesto  do apoio dado ao bispo da Igreja Universal na eleição para a Prefeitura do Rio de Janeiro, apenas com a diferença, de que esse veio no segundo turno do pleito. Essa diferença substancial, apesar de todas as considerações, já apontava de forma clara o pouco apreço da direita pelo Estado Laico, um dos pilares do republicanismo.

Um pouco depois na quinta feira dia 20 de setembro, na mesma semana, o ex-presidente FHC volta a campo, com a versão de que as candidaturas de Bolsonaro e Haddad representam a radicalização, o extremismo, colocando-as no mesmo saco. O relato prega a união de candidatos, que "não apostam em soluções extremas" como se a proposta de Haddad fosse contra o Estado democrático de direito, como as do ex capitão do Exército Brasileiro.

"Sem que haja escolha de uma liderança serena que saiba ouvir, que seja honesto, que tenha experiência e capacidade política para pacificar e governar o país; sem que a sociedade civil volte a atuar como tal e não como massa de manobra de partidos; sem que os candidatos que não apostam em soluções extremas se reúnam e decidam apoiar quem melhores condições de êxito eleitoral tiver, a crise tenderá certamente a se agravar. Os maiores interessados nesse encontro e nessa convergência devem ser os próprios candidatos que não se aliam às visões radicais que opõem “eles” contra ”nós”." Fernando Henrique Cardoso - Carta aos eleitores de 20/09/2018


Definitivamente, para FHC a serenidade está com o PSDB, com o partido da justiça brasileira e com o patronato paulista, que mais uma vez, como em tantas outras ocasiões da nossa história prefere se encaminhar para uma solução autoritária a conviver com a escolha popular. Mais uma vez a história brasileira se repete, querendo nos convencer que não se trata de uma farsa. Choca a todos a menção a sociedade civil e a sua autonomia, que precisa voltar a atuar não mais "como massa de manobra de partidos", como se no jogo democrático nas organizações moleculares não se permitisse mais o posicionamento estratégico.  Se, a proposição de FHC tivesse uma efetiva honestidade e generosidade deveria pelo menos cotejar a candidatura de Ciro Gomes do PDT, não confundindo embate eleitoral com permanência das regras democráticas. Mais uma vez, o ex-presidente FHC se coloca como um pacificador interesseiro, que gerou uma crise sem prescedentes na nossa história, baseada num impeachment-golpe legislativo, que se apoiava no pior fisiologismo do PMDB, do Deputado federal pelo Rio de Janeiro Eduardo Cunha. Mais uma vez o PSDB repete a UDN na nossa história recente, com uma vontade de afastar a decisão popular, evitando analisar alternativas disponíveis, se aliando a um autoritarismo, que acabará por suprimi-lo, como na fábula do sapo e do escorpião.

Ainda bem que o campo democrático conta com Fernando Haddad(PT) e Ciro Gomes(PDT), que seguem querendo nos convencer de que a crise democrática que vivemos, só se resolve com mais democracia.

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

O Comum, uma nova abordagem crítica do nosso tempo

O comum, nosso patrimônio construído, aquilo que resiste
ao cercamento
"Aviso aos não comunistas:
Tudo é comum, até mesmo Deus." Charles Baudelaire, Mon Coeur mis à nu.

Diversos filósofos e teóricos apontam em suas reflexões uma esfera muito além do Estado e do Mercado, o Comum, uma entidade operante que ultrapassa os limites dessas duas instituições, e, que ganha relevância principalmente a partir da crise de consciência dos limites dos recursos naturais do planeta e da emergência da economia do conhecimento. A crise ecológica e as Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). A sustentabilidade, ou a consciência ecológica é uma típica emergência do nosso tempo, que conquista corações e mentes a partir dos anos cinquenta do século XX, quando os desequilíbrios no clima e nos biomas passam a gerar impactos concretos em todas as partes do planeta. O comum também emerge a partir da queda do muro de Berlim em 1989, quando o comunismo de Estado desmorona de forma definitiva. Não se trata mais de estatizar, pois o Estado está sempre capturado pelos interesses das grandes corporações, e pela expansão mercantilista, que promove o cercamento contínuo de bens comuns. A luta pelo comum envolve a compreensão de que existem bens como a água, o mar, o ar, o conhecimento, o patrimônio construído e genético, a cultura, a educação, a língua, os seres vivos, que ainda não foram privatizados pela expansão capitalista neoliberal. Em 2009 houve um manifesto declarado do Fórum Social Mundial de Belém do Pará no Brasil, em plena cidade de acesso a floresta e bacia amazônica, um dos comuns em disputa;


"A privatização e a mercantilização dos elementos vitais para a humanidade e para o planeta estão mais fortes do que nunca. Depois da exploração dos recursos naturais e do trabalho humano, esse processo se acelera e se estende ao conhecimento, à cultura, à saúde, à educação, às comunicações, ao patrimônio genético, aos seres vivos e a suas modificações. O bem estar de todos e a preservação da Terra são sacrificados pelo lucro financeiro de uns poucos. As consequências desse processo são nefastas. Elas são visíveis e notórias: sofrimento e morte dos que não têm acesso a tratamentos patenteados e são negligenciados pelas pesquisas voltadas para o lucro comercial, destruição do meio ambiente e da biodiversidade, aquecimento climático, dependência alimentar dos habitantes dos países pobres, empobrecimento da diversidade cultural, redução do acesso ao conhecimento e à educação em razão do estabelecimento do sistema de propriedade intelectual sobre o conhecimento, impacto nefasto da cultura consumista." FSM Belém, citado em DARDOT e LAVAL 2017 página117

Paradoxalmente foi o neoliberalismo, que acabou impondo a guinada do pensamento político para o comum, pois foi ele que contrariando o liberalismo tradicional, cada vez mais se associou ao Estado para buscar uma regulação, que resguardasse e ampliasse seus interesses, que claramente pretendiam expandir os cercamentos e a mercantilização. Afinal, quem foi o responsável por imensas privatizações de companhias estatais por valores subdimensionados, quem pretende regular a proteção a propriedade intelectual na internet, quem vem privatizando conhecimentos ancestrais preciosos para nossa saúde, quem pretende regular e cercar bens públicos como os oceanos, as águas de chuvas, ou o ar que respiramos. Enfim, o Estado, seja comunista ou liberal sempre atendeu as demandas de grupos minoritários de interesse, estando sempre privatizado, regulando para otimizar os ganhos particulares, longe portanto dos anseios do comum. O interesse do neoliberalismo foi sempre o da conquista do Estado para que esse regulasse a partir de suas pautas, que envolvem a ampliação da comercialização e financeirização do nosso cotidiano.


"A lógica predatória atua também por intermédio da ação governamental, quando sistemas de aposentadoria por repartição simples são substituídos por seguros privados ou quando universidades públicas perdem força em benefício de estabelecimentos privados...A acumulação por despossessão é um incremento de valor que se produz não por meio de mecanismos endógenos clássicos da exploração capitalista, mas do conjunto dos meios políticos e econômicos, que permite à classe dominante apossar-se - se possível sem custos - do que não era de ninguém ou do que era até então propriedade pública ou patrimônio cultural e social coletivo." DARDOT e LAVAL 2017 página137

A partir da década de oitenta, com a ascenção de Thatcher  (1979) e Reagan (1981) nas duas potências de cultura anglo-saxônica se ampliou um relato da privatização da moradia social, das telecomunicações, dos transportes  e da água, com promessas de que essa ampliação significaria aumento de prosperidade para todos. Esse discurso se dispersará pelo mundo, a partir da queda da União Soviética e do Muro de Berlim em 1989, produzindo a repressão de narrativas alternativas, que se articulavam a partir da ampliação da solidariedade e da repressão da concorrência. Nos últimos quarenta anos, as desigualdades se aprofundaram, o patrimônio dos mais ricos cresceu, a especulação imobiliária se generalizou, junto com a segregação urbana. De uma hora para outra, o raciocínio concorrencial se naturalizou, bloqueando as práticas de solidariedade em operação existente. Hoje, passados quase quarenta anos da instalação e ampliação desse discurso, já foi possível perceber, que essas práticas e procedimentos na verdade ampliam a concentração de renda, principalmente ao liberar a especulação financeira que se autonomiza em relação a produção. A partir disso, que alguns autores - ARRIGHI 1996 e HARVEY 2005 - caracterizam nossa era como a hegemonia do capital financeiro, onde o rentismo e os mecanismos especulativos não se referem mais ao financiamento da produção, se tornando autônomos. Tal conformação nos empurrou para a crise da quebra do Lehman Brothers e da securitização dos financiamentos imobiliários nos EUA e na Espanha em 2008, que claramente apontaram para a necessidade de regulação do sistema financeiro internacional. Essa crise assumiu proporções equivalentes a quebra da Bolsa de Valores de Nova York em 1929, representando um forte encolhimento dos investimentos produtivos no mundo todo, configurando um retrocesso produtivo sem paralelo. O Brasil e outras economias emergentes resistiram a essa crise até 2013, por conta da manutenção da forte demanda por commodities primárias, tais como; minério, soja, milho e outras vindas da China. Por conta disso, grande parte da mídia conservadora no Brasil continua colocando de forma equivocada a questão como uma polarização entre Estatismo e Mercado, quando na verdade o que está em jogo é o acesso amplo à produção.


"O que ganhamos com a compreensão do capitalismo contemporâneo, interpretando analogicamente seu desenvolvimento como a repetição histórica do grande movimento de despossessão iniciado no fim da Idade Média nos campos europeus? Trata-se também de saber se as práticas e os espaços dos comuns que caracterizaram as sociedades pré capitalistas podem nos ajudar a captar a originalidade de práticas e espaços novos como a internet." DARDOT e LAVAL 2017 página104

O que os autores pretendem deixar claro, com o texto acima é que os Estados de uma maneira geral sempre foram agentes ativos na construção e manutenção dos mercados, e que, a sua constituição, ao contrário do que prega um certo hegelianismo visava não o interesse comum, mas principalmente a ampliação da lógica da propriedade e da concorrência. Aliás essa foi a crítica mais contundente de Marx à Hegel, que enxergou no advento do Estado a emergência do interesse público, quando na verdade significava a ampliação dos interesses dos proprietários. E, aqui acontece uma diferenciação importante entre dois tempos e duas ampliações do cercamento; uma no pós Idade Média, que privatiza recursos naturais, tais como, terras, pastos, recursos de água, ou peixes, outra são na Idade Contemporânea é a particularização de recursos do conhecimento. Os recursos naturais são raros e esgotáveis, enquanto os recursos do conhecimento são em sua essência colaborativos, e impulsionados por seu compartilhamento, que na verdade aumenta e se potencializa na medida em que mais pessoas o alcançam. Quando o conhecimento fica restrito a poucas pessoas ou apenas a uma, ele tende a ser represado e inviabilizado no seu desenvolvimento, na verdade, a difusão e o compartilhamento potencializam o saber. Nesse sentido, os dois autores franceses, DARDOT e LAVAL 2017, levantam uma interessante citação de um dos father founding dos EUA, o terceiro presidente, Thomas Jefferson:


"Um indivíduo pode conservar a propriedade exclusiva da ideia enquanto a guardar para si mesmo; mas a partir do momento em que ela é divulgada, torna-se irresistivelmente propriedade de todos, e aquele que a recebe não pode desfazer-se dela. Seu caráter particular é que a propriedade de ninguém sobre uma ideia é diminuída pelo fato de outros a possuírem em sua totalidade. Aquele que recebe uma ideia de mim recebe um saber que não diminui o meu, do mesmo modo que aquele que ascende sua vela na minha recebe luz sem se deixar na escuridão." Thomas Jefferson, citado em DARDOT e LAVAL 2017 página171

Um dos exemplos mais recorrentes do comum do conhecimento é a internet, que nasceu nos anos 1960 a partir da Advanced Research Projects Agency Network (ARPANET), que fazia parte do Network Working Group, que mesmo restrita aos meio militares já afirmava; 


"Esperamos promover intercâmbio e discussão, em detrimento de propostas autoritárias." citado em DARDOT e LAVAL 2017 página175

Mesmo dentro da lógica hierarquizada militar já se acreditava fortemente que a colaboração era mais eficiente que a competição, para o partilhamento e desenvolvimento de pesquisas. O trabalho universitário impulsionou de forma definitiva a cooperação, pois nesse meio já se sabia de larga data, muito antes das TICs, que a interlocução e o intercâmbio de ideias impulsionava seu desenvolvimento. A velha tradição da ciência aberta enfatizava o caráter do conhecimento como um patrimônio comum e universal, que tinha como fundamento a autonomia da pesquisa com relação aos poderes econômicos e políticos. Nesse ambiente da autonomia universitária emerge um movimento denominado copyleft, que se distingue do copywright pela sua declaração de negar a exclusividade do conhecimento. Na verdade, o copyleft não é a negação da propriedade do seu criador, mas o reconhecimento de que sua ampla acessibilidade por diversas camadas impulsiona seu desenvolvimento de forma exponencial. O compartilhamento e a cooperação exigem apenas a citação, e mobilizam o movimento dos comuns criativos alcançando desenvolvimentos muito mais efetivos, do que as limitações exclusivas. Essa lógica parte da ideia de que o conhecimento não é um objeto fixo e limitável, mas um processo coletivo de desenvolvimento, que demanda livre acesso de todos. Os softwares e ações colaborativas disponibilizadas pela rede demonstram esses procedimentos de forma exemplar inclusive no campo jurídico, dentro dos esforços de um novo regime de propriedade comum e compartilhada. O sistema operacional GNU/ Linux*, que surgiu como alternativa ao Windows pretende disponibilizar mais do que uma articulação de software, mas uma plataforma colaborativa, onde o próprio usuário contribui e aprimora as rotinas. A enciclopédia livre e colaborativa do Wikipedia disponibiliza verbetes de forma ampla, e acaba questionando a concepção dominante de que o estímulo financeiro é o único capaz de incentivar a produtividade. A produção cada vez mais ampliada de relações horizontalizadas, e baseadas na igualdade absoluta dentro da rede acabam colocando em cheque a eficiência da propriedade privada, principalmente no campo da economia do conhecimento.

Enfim, a categoria do comum, ou dos comuns envolvem dinâmicas econômicas complexas, principalmente na lógica ambiental e na produção de conhecimento, essas, não são tendências inevitáveis, ou vetores inexoráveis, mas demandam da atividade política alinhamentos claros, onde o campo da esquerda e da direita se redefinem de forma mais clara, rompendo o maniqueísmo entre Estatismo e Mercado.

NOTAS:

*Desenvolvido por Richard Stallmann, após se demitir do cargo que ocupava no MIT, por ter que usar computadores e impressoras da Xerox em seu laboratório com sistemas operacionais próprios, que ele não podia divulgar. O sistema é denominado Unix, e é compatível com o utilizado nas Universidades

BIBLIOGRAFIA:

HARVEY, David - O novo imperialismo - Edições Loyola São Paulo 2005

ARRIGHI, Giovanni - O Longo Século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo - Editora Unesp Contraponto São Paulo 1996

DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian - Comum, ensaio sobre a revolução no século XXI - Boitempo,  São Paulo 2017

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Lula, Dilma, corrupção, republicanismo e demofobia no Brasil

"Esse é o cara.", teria sido a expressão de Barack Obama 
para Lula em 2009, acrescentada por; 
"É o político mais popular da Terra."
No início de 2009 Barack Obama declarara no encontro do G20 em Londres, que Lula era o político mais popular da Terra, em novembro do mesmo ano a revista inglesa The Economist colocara em sua capa um Cristo Redentor como um foguete, junto com a frase; "O Brasil decola". Na mesma ocasião do G20, Lula iria retribuir o afago de Obama, afirmando numa entrevista, que; "A gente olha para o Obama e pensa que ele é baiano. Trata-se de um cara tranquilo e humilde." Afinal, Lula contrariando as expectativas das elites brasileiras endinheiradas se movimentava no ambiente dos chefes de estado mundiais de forma natural, gerando empatia, e mais grave ainda para a nossa classe média, de forma mais eficiente que o presidente anterior, Fernando Henrique Cardoso, um professor universitário. Já tinha sido assim, nos anos oitenta quando um jovem sindicalista do ABC paulista, o mesmo Lula, surpreendera o mundo firmando um posicionamento inusitado diante das grandes montadoras da indústria automobilística, revertendo expectativas de docilidade dos trabalhadores brasileiros diante dos capitães das indústrias multi nacionais e da Ditadura Civil-Militar em curso no país. E, mais depois de dois mandatos como presidente da república do Brasil tinha mostrado uma capacidade ímpar de articular e cooptar agentes dos mais diversos posicionamentos;


"Em dezembro de 2010 os juros tinham caído para 10,75% ao ano, com taxa real de 4,5%. O superávit primário fora reduzido para 2,8% do PIB e, descontando efeitos contábeis, para 1,2%. O salário mínimo, aumentado em 6% acima da inflação naquele ano, totalizava 50% de acréscimo, além dos reajustes inflacionários, entre 2003 e 2010. Cerca de 12 milhões de famílias de baixíssima renda recebiam um auxílio entre 22 e duzentos reais por mês do Programa Bolsa Família. O crédito havia se expandido de 25% para 54% do PIB, permitindo o aumento de padrão de consumo dos estratos menos favorecidos, em particular mediante o crédito consignado...O crescimento do PIB em 2010 pulou para 7,5%... O índice de Gini, que mede a desigualdade de renda, foi de 0,5886 em 2002 para 0,5304 em 2010" SINGER 2012 página11 e 12


Mas, precisamos reconhecer, Lula e seu governo comandavam um reformismo conservador sem querer confrontar interesses arraigados nas elites brasileiras, se equilibrando entre um paternalismo que apostava no crescimento do consumo de massas, sem prejudicar o patronato produtivo e rentista cada vez mais próximo e articulado. Havia aí um claro abandono de um certo basismo, que caracterizou o primeiro PT. O velho líder sindical então, talvez se considerasse mais esperto do que o pesado jogo de interesses, que dominava a governamentalidade de pesados lobbyes intransparentes e não auto-declarados de Brasília. Uma hegemonia às avessas, ou uma pretensa supremacia, que conferia a falsa impressão de domínio, quando na verdade significava a domesticação dos movimentos sociais, que num passado remoto projetaram suas expectativas no carisma do líder. Essa metamorfose em direção a um pragmatismo da real politic mudou o PT, ao longo de suas tentativas de conquistar o governo federal em Brasília, que na primeira eleição presidencial de 1989 negava a necessidade e a tese do carisma. 


"Mas eu seria injusto se não reconhecesse os méritos da esquerda petista, a qual eu apoiei na maior parte de minha militância. Ela nunca deu muito valor para a “ética na política”, mas também pouco se envolveu em falcatruas, como alguns membros das correntes majoritárias. E muitas vezes ela impediu que o PT fosse ao centro do espectro político cedo demais. Ela foi vital na decisão de não apoiar o colégio eleitoral, de defender sempre candidatura própria para o PT e impedir alianças com a direita, o que teria descaracterizado o partido... A maioria do PT sempre desprezou a teoria. O PT foi muito obreirista porque a teoria que se lhe apresentava era um marxismo sem nenhuma incidência na realidade. E sejamos justos. Nós, que éramos marxistas no PT, não sabíamos o que fazer com temas concretos que desafiavam o partido, como a inflação. Tínhamos boas análises globais, sabíamos avaliar o papel que o Brasil estava assumindo na década neoliberal de 1990, impulsionamos a integração da esquerda no subcontinente latino-americano, entendíamos os contornos gerais das crises econômicas, mas nossa teoria não servia para um partido ao mesmo tempo militante e eleitoral. Ainda assim, o pouco que o PT teve em matéria de formação política deveu-se à pressão de suas alas esquerdistas." Entrevista de Lincoln Secco a Revista Fevereiro

De 2002 a 2010, Lula operou uma governabilidade sem qualquer diferenciação com o governo que o antecedera, apenas se destacando pelos altos índices de aprovação a sua gestão no seio da sociedade brasileira, no final dos dois mandatos. Essa situação acabou determinando aquilo que SINGER 2012 caracterizou como o Lulismo, um reformismo lento e gradual, articulado com um pacto conservador, que mantinha-se sobre o signo da contradição entre; conservação e mudança, reprodução e superação, decepção e esperança. O fato é que, no final do ano de 2009, Lula de cima de uma popularidade de 83% lançaria a economista Dilma Vana Roussef, sua ex-ministra-chefe da Casa Civil,  à Presidência da República do Brasil, uma candidata, que nunca tinha concorrido a um pleito eleitoral, que acabaria vencendo a eleição, configurando dentro do Partido dos Trabalhadores, ou do Petismo um fenômeno, que era uma antítese dos seus princípios fundacionais. A saber, uma forte crítica ao varguismo e ao populismo do antigo PTB, como tendências que condenavam a classe trabalhadora do país a uma eterna imaturidade, que a condenava a esperar benesses do Estado paternalista. E mais, um abandono da ortodoxia do velho PCB, que se mantivera durante nosso espasmo democrático entre o Estado Novo e a Ditadura Civil-Militar sempre sem direito de existir, mas com uma ampliação constante de suas influências e teses. O PT era enfim um partido de massas, que reafirmava a possibilidade de um socialismo democrático, não revolucionário, e anti-Stalinista, possível dentro de uma sociedade marcada pela presença próxima do escravismo. Mas dentro dos parâmetros pragmáticos da real politic, condicionado e vergado por uma governamentalidade, que lhe retirou as pretensões socialistas e de mudança nas formas arcaicas de operar da política brasileira.


"Teria havido, a partir de 2003, uma orientação que permitiu, contando com a mudança da conjuntura econômica internacional, a adoção de políticas para reduzir a pobreza - com destaque para o combate a miséria - e para a ativação do mercado interno, sem confronto com o capital. Isso teria produzido, em associação com a crise do mensalão*, um realinhamento eleitoral que se cristaliza em 2006, surgindo o lulismo." SINGER 2012 página13

O sociólogo e cientista político Francisco Oliveira, que fora fundador do Partido dos Trabalhadores (PT), mas que rompera com a agremiação logo no início do governo de Lula por conta da reforma na previdência, sempre defendeu que havia uma falsa dualidade na realidade brasileira entre um setor rico, dinâmico e moderno e outro pobre, lento e arcaico. Na verdade, a parte da sobrepopulação excluída, ligada ao setor pobre, lento e arcaico ajudava a canalizar riqueza para os extratos mais ricos, pois mantinha a expansão do consumo dos ricos, reforçando a tendência a concentração de renda, via achatamento geral dos salários. Existia e persistia a intuição de que o atraso segura e suga o setor moderno, quando na verdade é o oposto, ele justamente o potencializa e lhe dá dinamismo, viabilizando a super exploração. Outro sociólogo Jessé Souza, já havia apontado a especificidade da classe média brasileira, que desfrutava de uma oferta barata de mão de obra de serviçais, como empregadas domésticas, babás, motoristas, etc.. vindos dessa sobre população. Esse extrato garantia a classe média um sobretempo para estudo e trabalho, que não havia em outras partes do mundo, onde a reprodução da vida familiar e domiciliar dependia dos esus próprios membros. Paul Singer em 1981 identificou que a sobrepopulação superempobrecida no Brasil constituia 48% da população economicamente ativa do país, caracterizando-se como o subproletariado ou o precariado, que deprimia as expectativas não só salariais, mas também políticas. A eleição de Collor em 1989, segundo vários autores** foi fruto dessa sobrepopulação pobre, que sobrevive precariamente, e que identificava Lula e o PT com ameaças de desordem e ruptura. Mas em 2006, alguma coisa nessa realidade mudara, o subproletariado adere em bloco a Lula e a classe média ao PSDB, voltando a operar um sistema partidário análogo ao nosso intervalo democrático de 1945 a 1964. Isto é, um sistema de três partidos; um popular ou dos pobres (PTB e PT), um de classe média (UDN e PSDB), e um partido do interior e das relações clientelistas (PSD e PMDB).


"Parto da premissa de que o sistema partidário brasileiro só é compreensível se levamos em conta a dialética entre modernização e atraso. Minha hipótese é que os três maiores partidos reais, desde 1945, quando o Brasil passa a ser uma democracia de massa, até 2016, de um certo ponto de vista são os mesmos, embora os nomes tenham mudado. Eles cruzam o setor moderno e o atrasado, resultando numa oposição bipolar entre um partido popular e um partido de classe média, todavia mediada por um partido do interior, em que prevalecem relações de clientela... Por momentos, o embate entre capitalistas e trabalhadores, isto é, entre esquerda e direita, ganha centralidade, como ocorreu na década de reinvenção da política (1978-88), mas a forte presença do subproletariado tende a empurrar os atores para uma polarização entre ricos e pobres, a qual acabou se transfigurando em 2006, em lulismo e antilulismo." SINGER 2018 página23

Essa identificação e a realização de uma tímida mobilidade social para cima no precariado, durante os anos Lula e Dilma parecem ter assinalado um alerta no seio de nossas elites e da classe média, que passou a partir de 2013 a uma mobilização contra o lulismo, que desembocará no Golpe Parlamentar de 2016, a partir de argumentos anti-corrupção. A perda da eleição em 2014 pelo seu candidato Aécio Neves, por uma pequena margem de votos para Dilma Roussef determinou um rancor e uma mágoa, que levantava mais uma vez a argumentação de viéis autoritário, de que; "o brasileiro não sabe votar, falta-lhe educação". O argumento foi constantemente utilizado contra o eleitorado nordestino, que tinha feito a diferença para a eleição de Dilma, num pleito tão apertado. Passados dois anos, a destituição de Dilma com argumentos anti-corrupção não teve sequer a sutileza de buscar um paladino mais adequado para essa empreitada, se aliando ao Deputado Federal do RJ pelo PMDB - o partido do interior - Eduardo Cunha, um político de claras práticas clientelistas, que seria afastado do cargo dezoito dias depois do impeachment da presidenta, pelo STF. Mais uma vez, como em tantas outras ocasiões na nossa história emergia um sentimento de demofobia, que ficou muito claro na cobertura da grande mídia, no momento que os votos contabilizados no nordeste reverteram a eleição de Aécio Neves para Dilma Roussef***. Havia, pela eleição uma clara divisão do país, Dilma vencera em; Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Paraíba , Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Sergipe e Tocantins, enquanto Aécio foi o escolhido em; Acre, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima, Santa Catarina e São Paulo. Se destacavam as vitórias de Dilma na; Bahia (70,16%), Minas Gerais (52,41%), Pernambuco (70,20%), Rio de Janeiro (54,94%), enquanto Aécio vencia; no Distrito Federal (61,90%), Paraná (60,96%), Rio Grande do Sul (53,53%) e São Paulo (64,31%). A vitória em São Paulo de Aécio Neves, o maior colégio eleitoral do país, era compensada pelo maior número de votos no Nordeste, em Minas e no Rio de Janeiro. No final, Dilma fizera 51,64%, dos votos válidos, contra 48,36% de Aécio, aquela fora a eleição mais apertada depois da redemocratização. Mas essa configuração do segundo turno da eleição majoritária não se refletia na composição das bancadas, dos três maiores partidos,pois apenas o PSDB crescia ocupando mais dez cadeiras na Câmara dos Deputados, além das que conquistara em 2010, enquanto o PMDB perdeu cinco, e o PT dezoito, 20% da bancada eleita anteriormente.


"O caminho da criminalização parece ter se colocado, então, como via para o PSDB retornar ao governo. Talvez uma parte dos tucanos tenha se convencido de que, se mesmo com a economia estagnada, isolada em relação à burguesia, com uma classe média sublevada e um escândalo político midiático em curso, a candidatura do lulismo tinha vencido em 2014, seria difícil derrotar Lula em 2018." SINGER 2018, página168

O perfil do Congresso Nacional era claramente mais conservador, com ampliação do centrão, um bloco composto em sua maioria por representantes do PMDB, de perfil tipicamente clientelista, fortemente subordinado ao Deputado Eduardo Cunha. Tanto que logo em fevereiro de 2015, o Deputado carioca foi eleito presidente da Câmara, rompendo o acordo de rodízio dos partidos da coligação governista, na vez da eleição do PT. Mas aquela eleição, além de apertada, havia mexido com questões sensíveis ao desenvolvimento periférico do Brasil, ainda durante o primeiro turno, a campanha de Dilma tinha apresentado uma família, que perdia sua alimentação para o cumprimento da meta fiscal junto ao sistema financeiro, para combater a subida de Marina Silva, candidata do PSB. A peça de propaganda política fazia menção a necessidade de ajuste das contas públicas, cobrado por Marina Silva da coligação PT e PMDB, que era tida como inevitável, logo no início do novo governo. A morte de Eduardo Campos, um jovem e promissor político pernambucano, até então alinhado com Lula, que se lançara como uma terceira força, traz mais uma excepcionalidade a eleição de 2014. Mas o fato é que Dilma não honrará o discurso da campanha, buscando uma acomodação em direção ao PSDB, chamando Joaquim Levy, ex-vice presidente do BID e executivo ligado ao Bradesco, abandonando a matriz desenvolvimentista, e abraçando a doutrina do rigor fiscal. Na verdade, SINGER 2018 menciona no primeiro governo Dilma, um ensaio desenvolvimentista e outro republicano. No meu entender, o autor usa o termo ensaio no sentido da presença de uma superficialidade, sem a devida articulação e profundidade, pois a pauta do rigor fiscal nunca nos abandonou, e o republicanismo de Dilma apenas a isolou. A nova matriz econômica, que foi esboçada no primeiro governo Dilma, pelo ministro Guido Mantega pretendia cooptar o patronato produtivista, opondo-o ao rentista, diminuindo os juros para liberar a produção. Enquanto, que a nomeação de Graça Foster, ainda no primeiro mandato como presidente da Petrobrás desbaratou os esquemas do governo Lula na estatal. Mas hoje, com a perspectiva histórica fica cada vez mais claro, que não havia divergência, mas sim convergência entre os setores produtivos e rentista na economia brasileira, que acabaram através da FIESP se aliando ao processo de impeachment, pela via da supressão dos impostos. Por outro lado, hoje também fica cada vez mais claro, que o objetivo maior da Lava Jato era atingir Lula, mesmo que para tal fosse necessário usar Cunha.


"Talvez Dilma tivesse a crença secreta de que a Lava Jato, correndo por outro trilho, derrubasse Cunha da Presidência da Câmara antes que ele pudesse tirá-la do Planalto. Como tinha se adiantado à Lava Jato, desbaratando o centro nervoso da corrupção na Petrobrás, ela não percebeu que a operação liderada por Sérgio Moro objetivamente se concentraria no lulismo e Cunha seria preservado até que ela caísse. A possível confiança de Dilma na salvação via Lava Jato se apoiava também na rejeição de uma parte do empresariado a Cunha. Com efeito, quando Cunha rompe publicamente com Dilma, em julho de 2015, e passa a usar a Câmara para torpedear o ajuste fiscal, há um movimento da burguesia para sustentar a presidente, o que adia por quase um semestre o pacto fundamental entre PMDB e PSDB para derrubá-la." SINGER 2018 página294

Enfim, ao se olhar hoje o desenvolvimento desse processo fica cada vez mais claro, os interesses e intenções de uma série de agentes com relação aos parâmetros colocados no título; corrupção, republicanismo e demofobia. Nesse relato, a prisão de João Santana em fevereiro de 2016, envolvendo a campanha de Dilma com a alocação de recursos pouco republicanos sela a sorte da presidente, aproximando-a novamente de Lula, quando já era tarde. Lula foi chamado para assumir a Casa Civil de Dilma, e Moro ilegalmente divulgou a conversa entre os dois, deixando-a vazar para a grande imprensa. Aqui fica claro que a governamentalidade, e os recursos de campanha foram sempre operados no Brasil de maneira intransparente, isto é pouco republicana. A atenção com as eleições devem ir muito além das disputas majoritárias, procurando candidatos a Deputados Estaduais, Federais e Senadores do campo progressista, independentes dos pesados jogos de interesse. O pragmatismo do PT acabou também isolando-o das possibilidades de convocação de manifestações populares de apoio, que acabaram desde de 2013, antes da reeleição, canalizadas para o lado conservador. A articulação entre PMDB e PSDB no Congresso Nacional envolviam claramente o bloqueio a Lula, a partir de uma certeza da sua vitória, para que esse não pudesse ser candidato de maneira nenhuma em 2018, numa profunda desconfiança da capacidade de discernimento do povo. Por outro lado, a Lava Jato cada vez mais se mostra seletiva e sectária no seu combate a corrupção, incapaz de abandonar interesses e benefícios da corporação da justiça, demonstrando um único objetivo pouco republicano, condenar Lula. Nessa correlação de forças, tudo reforça a candidatura de Lula, que cada vez mais assume um traço carismático análogo ao getulismo personalista, que o torna imbatível junto ao precariado brasileiro. O brilhante cronista, Luiz Fernando Veríssimo volta e meia faz menção em suas crônicas a uma personagem denominada Dora Avante, com uma idade avançada e indefinida, e que pertence a um grupo "as Socialaites Socialistas", tratando com fino humor a demofobia generalizada na sociedade e nas esquerdas brasileira. Uma análise precisa e contundente de nossa realidade imediata e eternamente partida.

NOTAS:


* Escândalo do primeiro governo Lula, que envolve a compra de congressistas para operacionalizar seu funcionamento, que acaba determinando a queda de José Dirceu, chefe da Casa Civil.

** Os autores são Francisco Oliveira, Fábio Konder Comparato, Jessé Souza, André Singer, dentre outros

*** Na cobertura da Globo News em 26 de outubro de 2014, o ânimo dos comentaristas claramente decrescia, a medida que começavam a chegar os votos do Nordeste, que contrastavam com a apuração mais rápida dos votos de São Paulo e do sul do Brasil, e davam a vitória a Dilma.

BIBLIOGRAFIA:

Entrevista a Lincoln Secco, autor de SECCO, Lincoln - História do PT, -  Atelier Editorial, São Paulo 2011, a Revista Fevereiro, disponível em http://www.revistafevereiro.com/pag.php?r=04&t=05, acesso em 26/08/2018

SINGER, André - Os sentidos do Lulismo, reforma gradual e pacto conservador - Editora Companhia das Letras São Paulo 2012

SINGER, André - O lulismo em crise, um quebra cabeça do período Dilma (2011-2016) - Editora Companhia das Letras São Paulo 2018