sexta-feira, 11 de março de 2022

Os Tratados de Arquitetura e Urbanismo do Renascimento e do Maneirismo, ou a Arquitetura e o Urbanismo: arte ou ciência

 

Capa da Tradução portuguesa do Tratado Decem Libri
de Arquitetura de Vitrúvio, tradução do latim de M.
Justino Maciel

A autora Petra Lamers-Schütze em seu livro
Teoria da Arquitetura, do Renascimento até os nossos dias lista 13 Tratados sobre a arte de construir apenas na Itália, num período que parte do fundador Tratado do De re aedificatória de Leon Battista Alberti de 1452, até o Tratado de Guarino Guarini Architeture Civile de 1737. Se, levamos em conta apenas o período de vida dos escritores, e não a data da edição das diversas publicações o período reduz significativamente, pois parte de Alberti (1404-72) e chega a Guarino Guarini (1624-83). Mas, todos fazem alguma referência ao Tratado da antiguidade clássica escrito por Marco Vitrúvio Polião, Os dez livros da Arquitetura ou na acepção consagrada pelo Renascimento, De Architectura, do século II a.C. A grande contribuição do engenheiro militar Vitrúvio, que dedica seu tratado ao Imperador Augusto é a caracterização da arquitetura pautada entre três vertentes; firmitas (firmeza), comoditas (1) ou utilitas (comodidade e utilidade) e venustas (beleza). Interessante também assinalar que Vitruvio coloca entre seus axiomas a ideia de que; "Arquitetura é ciência", "architectura est sciencia". Danielle Bardaro (1514-70), um dos tratadistas renascentistas ou maneiristas desenvolve esse argumento no seu, I dieci libri dell´architectura di M. Vitruvio numa edição de Veneza de 1570, classificando a arquitetura nas ciências matemáticas, fazendo dela uma expressão da verdade. Mas, muito além desse debate o esforço de Vitrúvio me parece por caracterizar a arquitetura como uma linguagem construtiva, estruturada por um elemento fundamental na sua existência, a coluna. Os treze tratados de arquitetura do renascimento ao maneirismo mencionados por Petra Lamers-Schültze são:

1. Leon Battista Alberti (1404-1472) - De re aedificatória libri decem - Editado no Vaticano 1442-52

2. Antonio Averlino (Filareto) (1400-1465) - Codex Machliabechianus II, I, 140 - editado em Florença 1461-64

3. Francesco do Giorgio Martini (1439-1501) - Codex Ashburnham 361 - editado em Florença 1470-90 - Codex Saluzzianus 148 - editado em Turim 1482-86, e - Codex Machliabechianus II, I, 141 - editado em Florença 1489-92

4. Anônimo - Hypnerotomachia Poliphili, O sonho de Polifilio - editado em Veneza 1499

5. Fra Giovanni Giocondo da Verona (1433-1515) - M. Vitruvius per locundumsolito castigator factus, cum figuris et tabula ut iam legi et intellegi possit - editado em Veneza 1511

6. Cesare Cesariano (1476/78- 1543) - Di Lucio Vitruvio Pollione de Architetura - editado em Como 1521

7. Sebastiano Serlio (1475- 1553/55) - Tutte l´opere d´architettura et prospectiva - editado em Veneza 1619

8. Jacono Barozi da Vignola (1507-1573) - Regola delli cinque ordini d´architettura - editado em Roma 1562

9. Pietro Cataneo (1510 - 1571) - I quattro libri di Architettura - editado em Veneza 1554

10. Daniele Barbaro (1514-1570) - I dieci libri dell´architettura universale - editado em Veneza 1615

11. Andrea Palladio (1508 - 1580) - I quatro libri dell´architettura - editado em Veneza 1570

12. Vicenzo Scamozzi (1548-1616) - L´idea della architettura universale - editado em Veneza 1615

13. Guarino Guarini (1624 - 1683) - Disegni di architetura civile ed ecclesiastica - editado em Turim 1686 - Architetture civile 2 volumes - editado em Turim 1737

As chaves classificatórias do Tratado de Vitrúvio são muitas, mas todas pretendem reduzir o ato construtivo a uma língua manipulada pelos seres humanos na ordenação e constituição dos seus espaços construído. Vitruvio inaugura, ou melhor explicita a profunda dependência do ofício da arquitetura e do urbanismo ao poder; imperadores, reis, papas, patronato, etc precisam ser convencidos da justeza do construir. E, muitas vezes serem seduzidos, que essa adequação precisa ser cultivada pelo poder, fazendo uma demonstração de suas intenções cultas, justas e sofisticadas sem ostentação. Apesar dessa doutrinação com claros pressupostos civilizatórios, a arquitetura e o urbanismo demonstram em sua fundação, nesses posicionamentos, um claro vínculo com o poder instituído. Giulio Carlo Argan, o crítico de arte e arquitetura, que foi também prefeito de Roma destacava nos seus comentários do tratado dos Decem Libri;

“... distingue os tipos dos edifícios com relação as suas funções práticas e representativas; descreve até mesmo a figura moral e profissional do arquiteto, cuja a função é considerada essencial à estrutura do Estado. Demasiado romano para desaprovar a tradição pátria, reduz a “ordem” também a arquitetura etrusca, toscana, confirmando, assim, sua intenção de inserir a experiência estética grega na praxe construtiva etrusca e romana. Como gramático e filólogo, Vitrúvio deduz da viva linguagem da arquitetura grega uma morfologia e uma sintaxe, mas, exatamente porque as formas gregas se tornam uma espécie de léxico, podem adaptar-se a uma arquitetura que deseja ser sobretudo discurso, desenvolvimento articulado de elementos representativos e funcionais no contexto de uma cidade.” ARGAN 2003

Mas, o que cabe aqui também destacar é que, a revisitação promovida pelos humanistas do texto fundador de Vitrúvio aproxima e institucionaliza a teoria da Arquitetura da teoria da Arte, transformando-a de arte mecânica em arte liberal, destacando-a dos procedimentos das corporações de ofício medievais. Nesse sentido, a emblemática obra da Cúpula de Santa Maria del Fiori, na cidade de Florença, projetada e executada por Filippo Brunelleschi, e sobre a qual nunca escreveu uma linha de texto, mas que foi tema de uma pleiade de pensadores e críticos que o sucederam, demonstra-nos o potencial legitimador da reflexão textual no campo do espaço construído. A independência da proposição de Brunelleschi, com relação as determinações das corporações de ofício da construção é sublinhada pela articulação das duas cúpulas; uma interna, com dois metros de espessura, baseada nas formas de amarrar os tijolos das abóbadas persas, e outra externa, com oitenta centímetros de espessura, com clara inspiração nas abóbadas nervuradas da arquitetura gótica. Ambas articuladas, promoveram a realização da obra sem que fossem necessárias escoras e cimbramentos, que pré apoiariam a materialidade, antes de sua consolidação como corpo íntegro. Essa atitude nos mostram a emergência de um profissional que elege o desenho, proporções, materialidade e processos construtivos a partir da sua avaliação e juízo, e dita isso para o canteiro de obras, como um cientista isolado. Volta-se para o tema já mencionado de Bardaro, que vincula arquitetura à ciência e à verdade no exercício do plano ou do projeto, como ações intermediada pelas tecnologias, pelas artes, mas também pelas antropologias e sociologias do comportamento humano. O vínculo entre plano, projeto e procedimentos científicos não advém do isolamento e personificação da solução, como no caso de Brunelleschi, afinal é perfeitamente possível realizar, arte e ciência de forma coletiva. Mas, o vínculo com uma forma de proceder que pretende se antecipar e portanto prever e controlar os desenvolvimentos futuros das obras e da cidade, dirigindo-as no sentido do "Bem Viver". O que já foi destacado, na atitude de Brunelleschi é a sua subversão dos procedimentos instituídos para a construção de cúpulas, se arriscando numa nova forma de fazer, que avalia o contexto, os recursos disponíveis e o resultado a ser alcançado, num procedimento próximo ao científico.

" Se aceitarmos a tese de que o objeto arquitetônico é o mediador das relações sociais, além de ser uma totalidade de fruição, uso e construção, muitas perguntas teremos de fazer sobre o tempo e o mundo em que vivemos, para criarmos os seus objetos de mediação.[...] A sociedade da informação é algo que começamos a viver e que precisamos entender. Não sabemos como ela se espacializa, se é que ela se espacializa. A arquitetura não sabe mais o que ela vai mediar, pois ainda não criamos as formas que podem mediar as relações virtuais, se é que elas podem ser criadas. Não sabemos, ainda, quais são as espacializações da sociedade da informação, quais são os novos programas, se é que eles são realmente novos. O problema não está sequer formulado; portanto não pode ser resolvido." MALARD 2013 página260

O que nos coloca diante do vínculo da imagem arquitetônica aos procedimentos, processos e costumes de fruição, uso e construção da nossa sociedade contemporânea, baseada nas tecnologias de informação e comunicação (TICs). Mas, também nos revela num paradoxo, uma permanência dos desafios da arquitetura e da cidade com relação a um tempo de cinco séculos atrás, quando a totalidade de fruição, uso e construção delimitam nosso ofício, e deveriam sintetizar espacialmente nosso modo de ser. Os tratados renascentistas são uma antecipação do desenvolvimento teórico que a arquitetura e urbanismo demandam, não só dos profissionais, mas da sociedade como um todo. Num ofício marcado pela construção do espaço humano, que envolve a interação  intra humana, mas também com a natureza e o planeta. Nessas artes ou ciências se desenvolve uma interessante interação entre o construir do mundo humano, e a própria humanização do mesmo ser, como um ente dependente de sua coletividade, que nessa dependência engendra a superação das suas determinações naturais, pelo menos de forma parcial. A ideia de vínculo entre o "Bem Viver" individual e coletivo estão condicionados e se impulsionam mutuamente, gerando uma sinergia que precisa cuidar tanto do interesse público, quanto da comodidade individual, que quando se desenvolvem de forma conjunta nos demonstram a felicidade.

NOTAS:

(1) Alguns autores como BRANDÃO 2016, apontam a inserção do termo comoditas na tríade vitruviana ao tratado de Alberti, apontando que Vitruvio apontava apenas o termo utilitas

BIBLIOGRAFIA:

ARGAN, Giulio Carlo – História da Arte Italiana; da antiguidade a Duccio vol.1 - Editora Cosac & Naif São Paulo 2003

BRANDÃO, Carlos Antônio Leite - Arquitetura, Humanismo e República; a atualidade do De re aedificatoria - Editora UFMG Belo Horizonte 2016

BRANDÃO, Carlos Antônio Leite (org.) - Na gênese das racionalidades modernas; em torno de Leon Battista Alberti - , MALARD, Maria Lucia - Projeto Arquitetônico e Pensamento Científico - Editora UFMG Belo Horizonte 2013

LAMERS-SCHÜTZE, Petra - Teoria da Arquitetura, do Renascimento até os nossos dias - Editora Taschen Tóquio 2003

MACIEL, M. Justino - Tratado de Arquitetura de Vitrúvio - Editôra 1st Press Lisboa 2006