terça-feira, 8 de dezembro de 2020

O Estado, o plano, o projeto sua construção e a ansiosa percepção do real

"Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder detenha o poder. " MONTESQUIEU citado em ARENDT 2011 página 368

A escravidão, instituição fundadora do Estado no Brasil

Um dos mais complexos conceitos em nossa contemporaneidade é a ideia do Estado, como uma ordenação burocrática constituída, que deveria se pautar pelo atendimento do interesse público geral, evitando ser capturado por lógicas particulares de grupos de pressão. Mas, o aparecimento do Estado na história humana contraria de antemão essa afirmação, pois ele aparece invariavelmente a partir dos interesses de estamentos, que se articulam em cima de claras e objetivas ações, que servem para estruturá-lo. Portugal, que segundo FAORO 2001 se constitui como primeiro Estado Nacional, no distante século XI dentro da história da Europa, vai ter como interesse a guerra ao inimigo comum; o "sarraceno e o espanhol". Aqui, aparece uma vertente muito presente na contemporaneidade, a presença de uma ameaça externa ou de uma luta moral que deve ser empreendida, para que o grupo se auto denomine, se articule e se reproduza. O plano-projeto do Estado católico e papista português é a vitória sobre os árabes e os espanhóis. Esses últimos ainda na verdade não constituídos plenamente, mas o Estado português se materializa nas fortificações de cidades do norte para o sul, a medida que se configuram como aglomerações de matriz cristã. A auto definição do estamento é determinada ´pela própria constituição e organização do Estado, como num processo de auto determinação, ou como aglutinação em torno de interesses. Com tão antiga articulação, o Estado português não co-existe com a esfera da secularização, típica do Iluminismo que distingue o poder civil do eclesiástico. Igreja e Estado se confundem, determinando uma divisão de trabalho e de responsabilidades, que representará uma importante característica do Estado Ibérico. Os grupos de interesse se auto definem a partir das suas próprias lutas, ganhando e construindo sua própria identidade, um processo contínuo de reunião e definição. Interessante notar, que o assenhoramento do território ou da terra é o motivo num tempo distante, aonde a renda provinha do solo, típica do feudalismo, e ainda não da mercadoria e da produção, que viriam a ser instituídas e desenvolvidas no capitalismo. Portanto, antes do aparecimento e ascensão da burguesia, o pioneiro Estado Português se estrutura em torno do rei, o chefe da guerra, que subordina os senhores feudais a uma federação de condados. E, também não distingue o poder civil e eclesiástico, mantendo-se como um Estado vinculado aos interesses da Igreja Católica, articulando sua expansão à ampliação da fé cristã pelo mundo. Tais premissas construirão características, que segundo FAORO2001 definirão o Estado Patrimonnial Ibérico, que terá grande influência sobre a formação brasileira dos nossos aparatos estatais.

"Dos fins do século XI ao XIII, as batalhas, todos os dias empreendidas, sustentadas ao mesmo tempo contra o sarraceno e o espanhol, garantiram a existência do condado convertido em reino, tenazmente... No topo da sociedade, um rei, o chefe da guerra, general em campanha, conduz um povo de guerreiros, soldados obedientes a uma missão e em busca de um destino...
Ao príncipe, afirma-o prematuramente um documento de 1098, incumbe reinar (regnare), ao tempo que os senhores, sem a auréola feudal, apenas exercem o dominam, assenhoreando a terra sem governá-la. Ainda uma vez a guerra, a conquista e o alargamento do território que ela gerou, constitui a base real, física e tangível, sobre que assenta o poder da Coroa. O rei, como senhor do reino, dispunha, instrumento de poder, da terra, num tempo em que as rendas eram predominantemente derivadas do solo." FAORO 2001 página 02

Nesse contexto emerge um Estado de urgência da guerra, aonde o sistema de contrapesos e auto controle apontado por Montesquieu não existe, há uma ansiedade autoritária, que se recusa a aceitar o contraditório e as vozes discordantes. Daí a complexa equação de Montesquieu, que pretende com um sistema de compensações de interesses, chegar a um poder impessoal, que só poderá ser auto regulado, na medida em que há conflito e dinamismo de mútua vigília, pois apenas o poder regula o poder. Seria como um sistema, de interesses diversificados, que acabaria por se auto controlar a partir do mesmo sistema de grupos de desejos e pré concepções conflitantes. Ao final, as instituições humanas assim como o Estado, no seu cotidiano são constituídas por pessoas e grupos, que operam seu dia a dia, com seus despachos e decisões, que na verdade espelham lógicas morais e éticas dessas mesmas pessoas e grupos. O gerenciamento de planos e projetos de todo Estado-Nação e do próprio sistema global Inter-Estatal também está gerido por esses grupos de pressão e interesses, que alcançam e monopolizam o poder. A representação e a introjeção de papéis por cada agente, que ao mesmo tempo, que espelham também forjam os mencionados desejos e interesses. Daí o questionamento do materialismo histórico, que identifica no Estado, a operação e os interesses de uma classe, e que a verdadeira liberação e representação universal significa fazer seu desvencilhamento do aprisionamento a um único grupo. Num mundo global, esse sistema de compensações e contra pesos está carregado de injustiças, é também incompleto e inacabado, apesentando uma graduação entre "Estados-de-fato" e "quase-Estados". Um desenvolvimento diferenciado da estruturação Estatal, aonde a constituição jurídica das nações ainda apresenta deficiências, que se mostram ainda incompletas apesar das ondas de descolonização. A governança mundial e o sistema de relações inter nações também estão perpassadas por esses desequilíbrios e incompletudes.

"O avesso desse processo de formação de um governo mundial é a crise das nações territoriais como instrumentos efetivos de governo. Robert Jackson cunhou a expressão "quase-Estados" para se referir aos Estados aos quais foi concedido o status jurídico de nações, e que com isso se tornaram membros do sistema interestatal, mas aos quais falta a capacidade necessária para exercer as funções de governo historicamente associadas à condição de Estado. Nessa visão, os exemplos mais claros de tal situação são fornecidas pelas nações do Terceiro Mundo que emergiram da onda de descolonização pós-Segunda Guerra Mundial..." ARRIGHI 1996 página76

Mas, não há como falar de Estado sem mencionar o filósofo alemão do fim do século XVIII e início do século XIX, Hegel, que desenvolveu seu complexo sistema de pensamento de forma concomitante com as Revoluções Americana e Francesa. Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 Stutgart - 1831 Berlim) foi amigo e conviveu com o poeta Friedrich Hölderlin, e com o também filósofo romântico Joseph Von Schelling, participando, na ainda não unificada Alemanha, dos acontecimentos da Revolução Francesa (1789). Estudou no seminário teológico e protestante de Tubingen (1788-1793) na região de influência de Stutgart, no que era o Ducado Würtemberg. Depois, foi preceptor na cidade de Berna na atual Suíça, mantendo-se mobilizado pelos tema religiosos,  principalmente a partir do texto de Kant; A religião nos limites da simples razão. Na qual, a determinação ética do pensamento segue uma trilha entre a moral e a religiosidade, na mesma linha da humanização do sagrado, encarnado na figura de Jesus Cristo e nos questionamentos de Lutero, expressos no drama entre a doutrina eclesiástica e a fé do sujeito. Há uma distinção importante, nesses escritos da juventude, entre a religião estatutária e a popular e da comunidade, sendo essa última, para Hegel a que sintetiza a racional e universal vontade do sagrado. Hegel foi um entusiasta dos princípios revolucionários do Iluminismo, no que concerne a liberdade, fraternidade e igualdade. Quando, Napoleão entrou em Iena, em 13 de outubro de 1806, Hegel escreveu uma carta enaltecendo aquilo que considerava como sendo; "o Espirito do mundo." Ou, quando da derrota napoleônica em 1814, que descreveu como um acontecimento trágico, "o espetáculo de um gênio grandioso destruído pela mediocridade" (SINGER, 2003. p. 12). Nessa admiração, alguns críticos apontaram uma antecipação da crença no poder autocrático do Estado, que sem dúvida terá sua adesão, quando da restauração da Prússia, no qual via a encarnação da razão absoluta. Diferentemente de Rousseau e de toda tradição filosófica francesa, o centro racional aqui não é o indivíduo isolado, mas a reunião e o esforço empreendido pela história para a emergência de formas de aglutinação de indivíduos em comunidades.

"Vi o imperador - essa alma do mundo - cavalgar através da cidade em missão de reconhecimento: é deveras um sentimento maravilhoso contemplar um tal indivíduo que, concentrado em determinado ponto, sentado num cavalo, abarca e domina o mundo." ABBAGNANO 1983 página77

Sua juventude (1788-1800) é dominada por escritos e reflexões religiosas como; Religião do povo e cristianismoA vida de Cristo (1795) e Sobre a relação da religião racional com a religião positiva (1795-96), aonde se afasta do anti clericalismo do iluminismo, mas ao mesmo tempo demonstra uma vontade de conciliação entre o divino e o terreno. Na verdade, a geração de Hegel está profundamente envolta por linhas do pensamento complexas e amplas, que envolvem em termos esquemáticos; o helenismo, o cristianismo, o protestantismo, o iluminismo, e a modernidade. Todas envoltas pelo espectro de Kant (1724-1804), que ainda está vivo no espaço temporal da geração de Hegel, e determina um pressuposto básico da teoria do conhecimento ou da representação do real presente nas três críticas - A crítica da Razão Pura (1781), Crítica da Razão Prática (1788) e a Crítica do Juízo (1790). No pensamento kantiano há um gradiente, uma complexidade e ao mesmo tempo uma interação multi direcionada, entre três conceitos fundamentais de percepção do que existe de fato; a ética, a ciência e a arte, ou os correlatos; o dever ser, o ser e o sensível. Um processo complexo, que envolve aproximações sucessivas sobre o real, a partir; das possibilidades do futuro, do que é, e do jogo lúdico da experiência, ou ainda; a reflexão, o reflexo e o juízo. Os escritos da juventude de Hegel só serão editados depois de sua morte, já no século XX, possibilitarão uma visão mais compreensível de uma reflexão tão árdua, entre o infinito e o finito, ou o universal e o particular. Para Hegel, o real é racional, ou não poderia se substanciar, ou ser palpável, numa unidade entre subjetivo e objetivo, que se constroe na história da humanidade e do indivíduo, se refletindo em etapas da auto consciência, que se localizam; no universal, no particular e no pessoal. A fórmula tão repetida da filosofia hegeliana pensa e objetiva fazer o infinito superar o finito, identificando esse último com a idealidade, enquanto o primeiro é o real.

"Aquilo que é racional é real; e aquilo que é real é racional" Hegel citado em ABBAGANO 1983 página82

Essa identidade de realidade e razão, como uma defesa quase apaixonada mostra-nos a tenaz oposição de Hegel à Kant, que tinha pretendido construir uma filosofia do finito, ou do particular a partir da antítese entre o dever ser e o ser. Em Kant, as ideias da razão são meros ideais. Hegel quer arrancar a razão do domínio da moral, ou da vontade desfazendo-a na realidade, como se fossem uma identidade inseparável. Para Hegel, os conceitos de finito e infinito, particular e universal, relativo e absoluto não podem ser definidos de forma absoluta, mas serão sempre relacionais, como "determinações reflexivas", aonde a compreensão de um pólo depende do outro extremo.  Uma pretensiosa aventura da racionalidade, uma certeza da consciência de ser toda a realidade, quase absoluta, talvez só explicável em Hegel por sua relação de desdém com a natureza, que no seio do romantismo alemão parece se rebelar contra o seu próprio tempo. Assim, o que importa não é a percepção imediata e empírica da árvore isolada, mas a sua multiplicidade que efetivamente configura o real, na totalidade da floresta. Alguns, críticos que consideram toda a filosofia ocidental, como uma nota de rodapé das reflexões de Platão, que também coloca a ideia, assim como Hegel, no ápice da compreensão humana. Um ápice, que pela enorme complexidade do infinito ou universal pretende que a razão dê conta dele, numa arrogância só possível num intelecto muito além do individual. E aqui, a reflexão ou racionalidade hegeliana ganha um caráter absoluto, como o Espírito, que seria como um dever ser de um determinado tempo, que emerge a partir de uma acumulação de experiências, típica da infância da modernidade. O tempo do século XIX, que testemunha imensos progressos, rupturas e desenvolvimentos inusitados é encarado de forma positiva e otimista. Na verdade, Hegel enxerga a história da humanidade como uma positividade, uma evolução redentora, imbuída de uma teleologia em direção a fortuna e a felicidade, aonde o Estado é sua encarnação. Um otimismo, que contrasta de forma definitiva com nosso niilismo contemporâneo.

"A separação entre realidade e a ideia é especialmente cara ao intelecto, que assume os sonhos das suas abstrações como algo de verídico e sente-se orgulhoso pelo seu dever ser, que até no campo político vai pregando com a melhor vontade: como se o mundo tivesse esperado tais ditames para aprender como deve ser e não é; mas onde estaria portanto a presunção desse dever ser, se o mundo fosse como deve ser?... A razão é a certeza da consciência de ser toda realidade: assim o idealismo exprime o conceito de razão" Hegel (Fenomenologia do Espírito), citado em ABBAGANO 1983 página83

Tudo, na verdade se refere a aventura do conhecer, como podemos garantir que nossa compreensão não está sendo enganada pelas sombras e os espectros, que nos impedem de efetivamente formular o real em toda sua complexidade. A verdade está portanto no todo, que não pode ser colocado como ponto de partida, mas de chegada, que para Hegel é sempre resultado de etapas do desenvolvimento histórico do pensar humano. Na Filosofia do Direito (1821), Hegel identifica três momentos na escalada de compreensão do mundo, o primeiro; a família, o segundo a sociedade civil burguesa, e o terceiro; o Estado. No primeiro momento, o indivíduo ainda não se autonomizou, estando vinculado ao clã, a família, isto é numa esfera ainda muito próxima da natureza, seus desejos e interesses encontram-se desorganizados e recalcados. No segundo momento, o indivíduo se confronta com o mundo, enfrentando a competição do mercado, testando sua capacidade de fazer prevalecer seus desejos e interesses, num confronto de todos contra todos, sua razão planeja e opera sua independência. No terceiro momento, finalmente o indivíduo reconhece seu pertencimento à comunidade, completando sua liberdade com a necessidade da cooperação fundada na razão, que se encarna no Estado como sua realização universal. Para Hegel, "O Estado é um hieróglifo da razão", os sujeitos singulares devem aprender a decifrá-lo para ultrapassar os limites da própria consciência, que corresponderiam aos limites da bürgerliche Gesellschaft, ou sociedade burguesa. Aqui o plano e projeto parecem envolver uma pretensiosa premissa de abarcar a totalidade - identidade redutora do real ao racional, e vice-versa, - fazendo sínteses e acomodando contradições, num movimento de ascensão à perfeição. 

"A ideia especulativa , a opção abstrata é transformada em força propulsora da história e, com isso, a história é transformada em mera história da filosofia. Mas nem mesmo esta é compreendida conforme ela - segundo as fontes existentes - de fato aconteceu, quanto menos conforme de fato se desenvolveu através das influências das relações reais e históricas, mas sim conforme é compreendida e apresentada pelos mais novos filósofos alemães, especialmente Hegel e Feuerbach." MARX e ENGELS 2007 página 149

A denúncia crítica do idealismo alemão será empreendida, na sequência da segunda metade do século XIX, por Marx e Engels que identificam nesse idealismo absoluto a face perversa do interesse da ordenação do Estado-Nação pela burguesia, em torno da propriedade privada. Nesse contexto, o plano e o projeto é a ampliação total da lógica da propriedade privada, que cerca e particulariza tudo, ampliando a competição e determinando a monetarização do todo. Marx e Engels observarão na Manchester de meados do século XIX, uma competição de todos contra todos, contraposta a solidariedade dos grupos trabalhadores, que migravam da Irlanda em levas atrás de seu sustento. Interessante assinalar, que Hegel já aponta, nas três fases - Família, Mercado e Estado - um pretenso aprimoramento no sentido da superação da competição pela solidariedade interpessoal, localizada no Estado racional. Mas afirma essa tendência como natural do desenvolvimento humano, como um objetivo inexoravelmente imposto pelo desenvolvimento histórico da humanidade. Por outro lado, o materialismo histórico pensa e engendra que a transformação deverá ser produzida e formulada pelos prejudicados da ampliação da lógica proprietarista nos mundos da vida. Marx e Engels se manterão no mesmo otimismo, típico do século XIX, que se maravilhava com a sinergia das descobertas humanas, que pareciam colocar a existência em outro patamar de esperança.

"Das passagens anteriores pode-se concluir também que Hegel: (1) compreende a Revolução Francesa, como uma fase nova e mais completa desse império do espírito; (2) vê nos filósofos os imperadores universais do século XIX; (3) afirma que agora apenas pensamentos abstratos têm validade entre os homens; (4) que já nele casamento, família, Estado, aquisição própria, ordem burguesa, propriedade, etc são entidades compreendidas como "Divinas e Sagradas", como "o Religioso"; e (5) que a moralidade é representada como santidade essencial ou mundanismo santificado, como a forma maior e última do império do espírito sobre o mundo..." MARX  e ENGELS 2007 página200

O século XX se desenvolverá a partir das lutas de narrativas, em torno ao Estado, duas guerras mundiais, que certos historiadores descrevem como; a primeira como confronto entre Impérios-Estados coloniais, e a segunda, como confronto entre Estados do totalitarismo e da liberdade. Na segunda guerra, a aliança pela liberdade incluiu o Império Soviético, o Estado do Socialismo real, que fora na verdade o grande confronto do nazi-fascismo, que mobilizava 10 divisões do exército alemão na frente oriental (Rússia), em contraposição com apenas 3 divisões para a frente ocidental (França e Mar do Norte). A segunda guerra assistirá a aliança de Churchil (Inglaterra), Roosevelt (EUA) e Stálin (União Soviética) contra o nazi-fascismo, que ao final será derrotado de fato pelo exército soviético, primeiro a chegar em Berlim. Na derrubada de Hitler, a União Soviética de certa forma emerge como o Estado racional de Hegel, planejado de forma centralizada, parecendo demonstrar uma operatividade superior. No segundo pós guerra, com a hegemonia EstadoUnidense verifica-se nos Estados centrais ocidentais dois grandes eixos de regulação, de um lado, o keynesianismo e do outro, o Fordismo. O Keynesianismo irá promover a regulação do crescimento da economia, a partir da enorme capacidade presente no Estado de gerar e pensar regulações anti-cíclicas, que eram identificadas como ajustes na tendência inexorável do sistema capitalista de permanecer prisioneiro nas práticas especulativas. A materialização do lucro se faz por sua conversão em base monetária, em si improdutiva, e, com tendências inevitáveis em direção a sedução especulativa, aonde dinheiro produz dinheiro, sem passar pela produção. A outra forma reguladora dos Estados centrais era o Fordismo, a garantia de um grau de consumo razoável para a classe trabalhadora, impulsionando a compra generalizada de bens e serviços, numa ampliação inusitada do bem estar. A grande crise de 1929, da Bolsa de Nova York havia gerado uma grande instabilidade no sistema, gerando consequências em cascata como o advento do nazismo na nação mais alfabetizada da Europa, e com maior população universitária. Era na verdade, como já mencionado aqui, um grande baque para o otimismo do século XIX, alicerçado na expansão contínua do Iluminismo. 

"Muitos fatos mostram que, independentemente do elemento russo no caso os efeitos da Segunda Guerra Mundial sobre a situação social da Europa serão parecidos com os da Primeira Guerra Mundial, só que mais fortes. Ou seja, estamos presenciando a aceleração da tendência existente à organização socialista da produção no sentido definido nesse livro. O mais importante desses fatos é o sucesso do Partido Trabalhista inglês... O tempo do liberalismo acabou, é claro, mas até mesmo os doze membros liberais sobreviventes represetam mais votos que 72 membros trabalhistas tomados a esmo. SCHUMPETER, 2017 página 506

A crise do final dos anos setenta e começo dos anos oitenta foi determinada por aquilo que vários teóricos apresentam como um tendência natural do sistema, ao declínio das taxas de lucro, e, pela Crise do Petróleo, de meados da década. De um lado, o poder dos monopólios, e de outro a exaustão dos dois modelos de regulação do sistema capitalista; o keynesianismo e o fordismo. Alguns historiadores e cientistas sociais identificam nas pautas das manifestações de 1968, aonde o quadro da distinção entre esquerda e direita se desvanece, numa luta contra a burocratização geral do Estado, seja ele capitalista ou socialista. A emergência da contra cultura desvenda a pluralidade e multilateralismo, determinando a consciência da diversidade do desenvolvimento, que passa a ser medido por uma infinidade de índices. Uma perplexidade geral será capitalizada pela nova direita, que com a eleição de Thatcher (1979), e Reagan (1981) conquistam o poder, iniciando o desmonte do Wellfare State, ou Estado de Bem Estar Social, nos países centrais. Um desenvolvimento, que fora conquistado pelos sindicatos a partir de lutas e greves, mas que declinara da solidariedade internacional, impondo muitas vezes um fardo pesado para a mesma categoria na semi-periferia do sistema, nos países em desenvolvimento. Desde então, o discurso da responsabilidade fiscal e da necessidade do Estado gastar apenas aquilo que arrecada, se generaliza, impondo a revisão das políticas anti-cíclicas do keynesianismo. A obsessão pelo controle de despesas do Estado é determinada ´por uma clara vertente conservadora; diminuição das taxas de tributação dos mais ricos, e desmonte das políticas de âmparo social. De uma hora para outra decrescem os empregos industriais, e as grandes concentrações fabris que se robotizam, os serviços financeiros e de seguros se ampliam como grandes contratadores. A empresa e sua racionalidade operativa são celebradas, conquistando a administração pública, que envereda pelos seus padrões de funcionamento, esquecendo-se do seu papel solidário. Na década de noventa, com a expansão das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), se diponibilizam uma série de dados e comportamentos, que transmitem a falsa impressão de liberdade, mas que na verdade geram uma condição alienada, sem sentido e direção de muita perplexidade. Os grandes discursos explicadores, como o Iluminismo, o Liberalismo e o Comunismo perdem sua força explicadora e direcional, cedendo diante de uma empiria contínua, que celebra um presente eterno e inescapável.

"A esse tempo agitado e confuso em que a informação nos entretém sem nos orientar, chamamos de “atualismo”. A capacidade de agitar, sem orientar ou desvelar, desse fluxo de notícias tem sido bem explorado pelas direitas globais." PEREIRA  e ARAÚJO 2019

No Brasil, o Estado tem suas especificidades, além da presença do patrimonialismo ibérico apontado acima por FAORO 2001, e outros autores, há uma clara violência naturalizada na sua tarefa primeira de legislar sobre a escravidão. Além disso, nossa independência da metrópole é proclamada pelo filho do rei de Portugal, decretando a instalação de um único e isolado regime monárquico na América. O príncipe, logo também abandona a nação, deixando o reino para seu filho de apenas cinco anos, que na verdade constituirá o Estado em acordo com as oligarquias agrário exportadoras.  Uma das mais violentas instituições da colonização europeia, a escravidão, que vai sendo extinta a medida que as nações americanas vão se constituindo como independentes, ou logo após do seu aprimoramento estatal; 1808 Perú, 1820 México, 1823 Chile, 1826 Bolívia, 1842 Paraguai, 1851 Colômbia, 1865 EUA. Apesar dessa onda, tão próxima, o Brasil libertará seus escravos apenas em 1888, num gesto da Princesa Isabel, deixando-os sem qualquer indenização, num confronto desigual com uma política do mesmo Estado de incentivo da imigração europeia e japonesa. O Brasil será o último país do complexo Atlântico Europeu a extinguir a escravidão, num gesto autocrático da sua monarquia, que logo depois perde o governo para uma quartelada militar, que também toma o poder sem qualquer participação popular. A conformação do Estado no Brasil, corrobora aquilo que o professor e historiador, Luiz Antonio Simas afirma;

"O Brasil é um empreendimento de ódio." Entrevista para a Gazeta de Vitória

Todo Estado encarna o monopólio da violência, no entanto o Brasil tem no seu Estado uma premissa indelével a exclusão de parcelas expressivas de sua população em nome de um desfrute privilegiado e exclusivo, que deve ser para poucos. A premissa primeira é a não inclusão de parcelas expressivas da sua população, condenando-as a viver numa linha abaixo da sobrevivência, sem direito sequer a um relato, que aponte sua redenção. Zumbi de Palmares no século XVII já sabia disso, sua história e luta foi apagada de forma violenta, impedindo em nossa contemporaneidade, que qualquer narrativa factual sobre o Quilombo comandado por ele chegasse a nós. Talvez a melhor explicação seja o sentido do seu nome, a palavra Zumbi, vem do termo zumbe do idioma africano quimbundo, e significa fantasma, espectro, alma de pessoa falecida. Hoje, apenas podemos percorrer o Parque do Quilombo de Palmares no Estado de Alagoas, supondo qual era a face desse aglomerado revoltoso, que resistiu as forças holandesas e portuguesas de 1580 a 1694. Como era sua ordenação espacial? Como eram suas casas? Como promoviam seu sustento e sobrevivência? Palmares se estemdia então da margem esquerda do Rio São Francisco até o cabo de Santo Agostinho, e tinha mais de 200 quilômetros de extensão. era uma república com uma rede de onze mocambos. O principal mocambo ficava na serra da Barriga e levava o nome de Cerca do Macaco, com duas ruas espaçosas com 1.500 choupanas, e umas 8.000 pessoas cercadas e protegidas por uma paliçada de madeira. Os outros mocambos eram; Amaro, Sucupira, Tabocas, Zumbi, Osenga, Acotirene, Danbrapanga, Sabalangá e Andalaquituche. A violência do apagamento de nossa memória negra e da profunda injustiça que a escravidão representa foi mais uma vez praticada, um ano após a Proclamação da República. Em dezembro de 1890, o então ministro da Economia, Rui Barbosa manda destruir os registros da escravidão no Brasil, com claro temor dos pedidos de indenização dos fazendeiros e das oligarquias agrário exportadoras;

"Obrigada a destruir esses vestígios por honra da pátria e em homenagem aos deveres de fraternidade e solidariedade para com a grande massa de cidadãos que a abolição do elemento servil entraram na comunhão brasileira." BARBOSA em 1890, ao mandar incinerar os registros de cartório da escravidão.

Enfim, o Estado no Brasil, que com a Constituição de 1988 parecia abandonar um pesado passado, que possuía um claro projeto de exclusão de amplas massas de sua própria população, parece agora diante de um imenso retrocesso autoritário querer restaurar suas raízes oligárquicas. A lógica miliciana, que atualmente nos governa quer recalcar a presença indígena e negra em nossa formação, se envolvendo mais uma vez num "empreendimento de ódio."

BIBLIOGRAFIA:

ABBAGNANO, Nicola - História da Filosofia Volume IX: Fichte, Schelling, Hegel Schopenhauer, A polêmica contra o idealismo, A esquerda hegeliana, Feuerbach - Editorial Presença Lisboa 1983

ARENDT, Hannah- Sobre  Revolução - Companhia das Letras São Paulo 2001

ARRIGHI, Giovanni - O longo século XX, dinheiro, poder e as origens de nosso tempo - Editora Unesp São Paulo 1996

FAORO, Raimundo - Os donos do poder, formação do patronato político brasileiro - Editora Globo Rio de Janeiro 2001

LIMA, Cinthia Almeida - O Jovem Hegel: escritos teológicos dos períodos de Stuttgart a Iena - O Jovem Hegel: escritos teológicos dos períodos de Stuttgart a Iena | Almeida Lima | Revista Diaphonía (unioeste.br) coletado em dezembro de 2020

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich - A ideologia Alemã - Civilização Brasileira Rio de Janeiro 2007

PEREIRA, Mateus e ARAÚJO, Valdei - Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI - Editora Milfontes Vitória 2019

SCHUMPETER, Joseph A. - Capitalismo, Socialismo e Democracia - Editora UNESP São Paulo 2017

SINGER, Paul -. Hegel - Coleção Mestres do Pensar. São Paulo: Loyola, 2003

sábado, 29 de agosto de 2020

Apontamentos da Aula 1: Arquitetura, Cidade, Subalternidade, Filosofia no IAB Compartilha

 

A Redenção de Cam, retrata o processo de
embranquecimento da população brasileira, pintor
espanhol Modesto Broco 1895
Nos dias 24 e 26 de agosto de 2020, ministrei  duas aulas sobre as conexões existentes entre o espaço construído pelo homem (cidades e sua arquitetura), a filosofia contemporânea, e o termo Subalternidade, como um termo marcante da cultura brasileira. Essas anotações foram das pesquisas, da apresentação disponibilizadas para os alunos e de uma série de manuscritos que todo processo de montar uma aula disparam no seu professor. Aqui vão, as relativas a primeira aula de 24 de agosto de 2020, na série de cursos IAB Compartilha, que pretende oferecer uma formação continuada para os profissionais que militam no campo do abrigo e da cidade. Pretendo disponibilizar, logo em seguida a segunda aula dessa série de cursos, que representam a sua quinta versão, a segunda oferecida de forma remota, em função da Pandemia de Covid-19. Todas as outras aulas dessa série de cursos estão disponíveis aqui no blog e compõem um conjunto de reflexões e questionamentos sobre as formas de desenvolvimento e reprodução da cidade brasileira, que derivam de um projeto exclusivista, que está no cerne da sua própria sociedade. A acepção da Subalternidade, parte do nosso maior dramaturgo, Nelson Rodrigues, que num de seus lampejos críticos-provocativos determinou num sensível diagnóstico da alma brasileira;

“Por "complexo de vira-lata" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima.” RODRIGUES, https://pt.wikipedia.org/wiki/Complexo_de_vira-lata

O curso como um todo, parte do filósofo marxista e italiano Antônio Gramsci, que nasceu na Sardenha em 1891 e morreu em Roma em 1937, com apenas 46 anos, e, que apesar da pouca idade possui potentes reflexões para o nosso mundo contemporâneo sobre a Subalternidade, notadamente no Quaderni 25, que recebe o título; "Às Margens da História (História dos Grupos Sociais Subalternos)". Além dele apresento os desdobramentos de seu pensamento, que chegaram a nós pelas reflexões de diversos pensadores atuais, que se auto denominaram como subaltern studies, e que ancoram suas teorias nos pensamentos de Antônio Gramsci. Sua biografia apresenta um vínculo forte com os grupos sociais subalternos, uma vez que nasce na rural, arcaica e pobre Ilha da Sardenha, migrando em 1911 para a desenvolvida, industrializada, urbana e rica Turim, no norte da Itália. Além disso Gramsci era filho de pais muito pobres, teve de trabalhar desde criança, seu pai foi preso ainda na sua infância, tendo a família que se sustentar com os trabalhos de costura de sua mãe. Ainda muito cedo teve um problema de saúde muito sério, que foi uma tuberculosa óssea, que representou uma fragilidade física para toda sua vida. Turim era um local que concentrava fábricas como a FIAT e a LANCIA, que atraiam imensos contingentes de operários e nos primeiros anos do século XX concentrou importantes movimentos dos Conselhos de Fábrica, que lutava pela auto-gestão dessas industrias. O sistema de pensamento de Gramsci terá sempre um sentido articulador das lógicas espaciais, econômicas, sociais e culturais, que se articulam numa complexidade. Num sistema de centros hierarquicamente articulados, numa estrutura de dependências mútuas, aonde a relação entre hegemonia e subalternidade embasa e organiza processos complexos de auto-identidade, que partem de centralidades e periferias interdependentes. A subalternidade da Itália nesse sistema mundial, a minoridade da burguesia italiana frente as burguesias; inglesa, americana e francesa, sua declaração de dependência do Estado Nacional, a fraqueza do liberalismo italiano frente a essas outras três nações. A posição da Sardenha e a parte meridional da Itália agrária, católica e arcaica, frente ao norte industrializado, urbano e moderno. O marco referencial será sempre a história particular desses diferentes lugares, que a partir da transformação moderna da constituição da Unidade Nacional inclui ou exclui uma participação maior das suas populações, que assumem um caráter conformador de completude ou incompletude.

“Da Sardenha, metade agrária, camponesa e pobre do Piemonte ao Mezzogiorno todo colonizado e feito periferia do norte do reino da Itália. Mas, a rigor, toda a Itália já era periferia da França, pois o Risorgimento italiano, como revolução burguesa com participação difusa das massas, como revolução passiva, fez da Itália uma região periférica e subalterna, de resto como toda a região mediterrânea. Em outro círculo, a própria Europa corre o risco sério de se tornar um centro periférico diante da ascensão dos Estados Unidos.” ROIO, Marco del 2017 página10

Nesse desenvolvimento, a busca por um desenvolvimento justo e equilibrado, que distribua benesses de forma mais equânime entre precariados e empoderados é o objetivo da estruturação do pensamento gramsciano. Uma forma,  que entende a auto-expressão de cada cidadão como um processo de alcance da maioridade enquanto a capacidade de auto-determinação, e questiona a fórmula extratificada do status quo atual, cindido entre representantes e representados. O desenvolvimento histórico dos objetivos a serem alcançados, nesse sistema de pensamento, possui um profundo vínculo com o cotidiano prático e efetivo - filosofia da práxis - dos subalternos, que precisam ser levados a se diferenciar como os grandes prejudicados, pelo funcionamento geral da sociedade. A concentração de renda contínua na minoria da população, que desfruta da exclusividade da propriedade e a partir daí opera sua manutenção deve ser justificada por uma narrativa ou "ideologia". Para Gramsci, o termo "ideologia" assumirá um caráter mais neutro, como um sistema de pensamento que estrutura o agir de qualquer pessoa, havendo ideologias progressistas e conservadoras, que lutam pela conquista do metabolismo social, na medida em que recebem a adesão por um maior número de defensores. No entanto, não significa que ela possa ser livre das determinações e interesses sociais dos diferentes grupos sociais, que sempre desenvolverão vínculos profundos com sua forma de pensar. A perspectiva de Gramsci é a de impossibilidade de libertação de qualquer agente das amarras ideológicas, estando todos os grupos sociais condicionados por suas determinações.

“Desse modo, toda época produz um conjunto de discursos e ideologias contraditórios que visam legitimar a desigualdade tal como ela existe ou deveria existir e descrever as regras econômicas, sociais e políticas que permitem estruturar o todo.” PIKETI, 2020 pág.11

Esse tipo de pensamento, que não se conforma com a forma de operar do status quo, do poder instituído, produzindo de forma contínua uma massa de excluídos, que precisa ganhar consciência de sua condição de subalterno. Em 1919, Gramsci funda com Palmiro Togliatti a Revista L´Ordine Nuovo, um periódico que discute política, cultura e sociedade pretendendo o didatismo de atingir os temas e as preocupações desse mesmo precariado. Em 1926, logo após ser eleito deputado pelo Partido Comunista Italiano (PCI) pelo Vêneto é preso pela polícia de Mussolini, que havia tomado conhecimento da capacidade do jovem sardo, quando ainda militava no Partido Socialista Italiano (PSI). Gramsci ficará preso nos cárceres do fascismo, legando uma reflexão importante para nossa contemporaneidade, nos seus apontamentos nos Quaderni di Carceri. Apesar de marxista, Gramsci critica fortemente o positivismo do marxismo, que desde o advento da Revolução Russa de 1917 havia se restringido a um economicismo redutor, se aproximando muito dos questionamentos de Rosa Luxemburgo, a líder polonesa fundadora da Liga Spartakus na Alemanha, de então. O questionamento de Gramsci envolve sempre uma complexa interação dialética entre; Revolução-Ruptura, Reforma-Gradualismo, diferenças históricas entre Oriente e Ocidente, Estado e Sociedade Civil, Ideologia e Hegemonia. Por exemplo, a construção da hegemonia envolve um complexo gradualismo entre Coerção e Convencimento, aonde existiria na relação entre representados e representantes um movimento que partia da submissão unilateral até a legítima aceitação da representação. Um movimento entre a opressão supressora da identidade e a aceitação participativa da representação, nessa última condição se localizava a legitimidade efetiva da democracia. Questões como a centralidade e a subalternidade eram trespassadas por discursos, persuasão e convencimento dos diversos atores, que atingem a maioridade como representados, na medida em que controlam seus representantes. Há implicações claras nessa forma de raciocínio em todos os relacionamentos que envolvem o poder e seu exercício, aonde se concebe a História, como ciência de aprendizado contínuo. Há também no campo da conformação do plano e do projeto, uma possível analogia entre as condições de usuários e desenhistas, que na medida que se posicionam de forma equânime desenvolvem os desejos de forma madura e adequada. Na Itália, com a presença indelével da Igreja, a política como participação e construção coletiva era no tempo de Gramsci bloqueada pela orientação do abstencionismo por parte do catolicismo.

“Escreve Gramsci no Caderno25, que em seguida ao abstencionismo dos católicos da vida política, podia nascer entre os camponeses uma tendência subversiva-popular-elementar as massas rurais na ausência de partidos regulares, cercavam-se de dirigentes locais que emergiram dela própria, misturando a religião e o fanatismo ao conjunto das reinvindicações...” 
ROIO 2017 página28

A consciência de Gramsci do desenvolvimento capitalista, sempre nos remete ao confronto entre o arcaico e o moderno, o subalterno e o dominante, aonde as duas condições não são apenas polos antagônicos, mas realidades que tomam conhecimento mútuo, e muitas vezes exploram sua proximidade de forma complementar. Mas logo após sua chegada a Turim, Gramsci circulava no meio sindical, como produtor de ensaios e textos para jornais ligados ao Partido Socialista Italiano (PSI), ao mesmo tempo, era demandado pela Faculdade de Letras de Turim para temas acadêmicos, como os estudos de glotologia(1) do professor Matteo Bartolli, uma referência dos neolinguistas. Também a língua, sua evolução e seu desenvolvimento irão sempre constituir para Gramsci como um ordenamento estruturado de forma molecular e dispersa, e de baixo para cima, com transformações contínuas, que lhe permitiam analogias com a política. Além disso, a questão da língua sempre esteve nas reflexões de Gramsci relacionada à organização da cultura e à função dos intelectuais orgânicos das diferentes classes sociais. Foi exatamente essa celebração do acaso no devir histórico, que sempre mobilizou a curiosidade de Gramsci, e sua capacidade de pensar estratégico, aonde a pretensão ao controle total, já denotava sua crítica aos processos revolucionários violentos. E, as formulações posteriores da distinção entre guerra de posição e guerra de manobras, e o próprio conceito de hegemonia, que dinamiza a ideologia como instrumento efetivo de ação no cotidiano. Mas, outro professor, que incentivou também Gramsci ao ensaísmo foi Umberto Cosmo, livre-docente de Literatura Italiana, que incentivou-o a escrever sobre Maquiavel desde 1917, buscando uma ponte entre a cultura e a política, que tanto seduzia o jovem sardo. Nesse sentido, sua simpatia pela ação de ruptura das vanguardas culturais, que contaminavam o ambiente italiano do início do século XX é apontado sempre com destaque de sua vivacidade intelectual, além de um traço de pertencimento geracional. A revista La Voce de caráter burguês e L´Ordine nuovo fundado em 1919, da qual fazia parte mostram esse esforço de tentar dar agilidade e vivacidade à acadêmica e "balofa cultura italiana", nas palavras do próprio Gramsci. Percebe-se nas posições do filósofo da Sardenha, já na sua juventude um profundo vínculo com a cultura humanista italiana, que muito além da política constroe uma conexão entre vida cotidiana e estratégia de construção socialista. Uma continuidade didática, e que celebra na atividade política uma capacidade pedagógica de constante aperfeiçoamento, cada vez mais distante do idealismo, fazendo um enorme esforço em direção ao pragmatismo.

"Em 1913, nos meses de interrupção da atividade universitária, Gramsci pode assistir na sua ilha à campanha para as primeiras eleições com sufrágio semiuniversal (2) e dela retirou uma impressão muito viva da eficácia da política como fator de mobilização e transformação das massas camponesas, admitidas pela primeira vez ao exercício do voto. Em setembro, na esteira das eleições, realizou seu primeiro ato político público, aderindo ao grupo de ação e propaganda dos interesses da Sardenha, de inspiração antiprotecionista, que se constituira no verão. São particularidades de certa importância, porque nos conduzem ao tema da desprovincialização e nos ajudam a entender a natureza do processo que se realizou no espírito do jovem sardo. A inscrição de Gramsci no PSI é parte integrante de sua nacionalização; com tal ato Gramsci não cortava as raizes territoriais, mas especificava a dimensão intelectual e política na qual buscaria a explicação e perseguiria a solução para as angústias e os problemas específicos da Sardenha, lugar originário e indelével da sua tomada de consciência dos antagonismos sociais." RAPONE 2014 páginas63 e 64 

Gramsci também construirá um forte vínculo entre linguagem e forma de estruturar o pensamento, negando de forma enfática o naturalismo, o economicismo e o mecanicismo, que imperava nos meios marxista do início do século XX. Mas ao mesmo tempo valorizando de sobremaneira a forma como a linguagem se estrutura, possibilitando a criação, a reformulação e a revolução dentro de parâmetros e regulações socialmente introjetadas em cada indivíduo. Para Gramsci, o estudo e o aprofundamento no fenômeno da linguagem sempre será proveitoso, reunindo criatividade e compreensão socialmente compartilhada, que na verdade impulsionam um devir histórico real e apartado do idealismo. Na questão da lingua internacional, o Esperanto, Gramsci sem dúvida já celebrava a internacionalização da solidariedade entre despossuídos, mas reafirmava a presença da necessidade pulverizada e molecular, que criaria as condições para a emergência da nova língua a partir do cotidiano, e não por decreto. Há nas referências linguísticas de Gramsci uma constante menção às energias sociais livres, que nunca irão parar de se desenvolver, fazendo pouco caso das narrativas que pensavam num estágio último e definitivo das contradições sociais, que para ele jamais cessariam. 

Gramsci sempre irá celebrar esse caráter indomável e avesso ao autoritarismo, que a língua carrega, como no caso da unidade linguística da Itália, proposta em seu tempo a partir do dialeto da toscana, proposta por Manzoni, ou no caso da adoção do Esperanto como facilitador da comunicação internacional. O linguista e filósofo sardo irá repelir com veemência a imposição de cima para baixo, sobre o argumento de que "a linguagem, ainda antes de mecanismo comunicativo, é produto em contínuo devir." RAPONE 2014 página56. 

Assim como, a linguagem, a arquitetura, que é uma necessidade humana difundida e presente em toda a humanidade, afinal o homem em suas diversas culturas produz seu próprio abrigo, e não reconhece no planeta e no seu ambiente, tal qual está constituído, um acolhimento adequado. Afinal, existe a produção da arquitetura culta dos arquitetos, e aquela produzida pela auto construção, pela necessidade do abrigo, aonde as referências construtivas estão presentes, assim como na língua. Essa condição, de auto reprodução das técnicas de construção da sua própria sobrevivência se dissemina entre as pessoas conforme o vocabulário, que dominam, seja na materialidade disponível, ou na parcela aonde estão autorizados a realiza-la, o que vincula de forma definitiva, a linguagem à cultura do construir, que sempre tem profundos vínculos com o lugar e com o tempo. O que também está constituído na cidade, que nunca é a mesma, justamente em função das variações dessa linguagem do construir, tanto no espaço, como no tempo.

"Mas aqui quem se pronuncia não é só o discípulo de Bartoli: é também o militante político para o qual opor-se ao esperanto equivale a declarar-se 'revolucionário' e 'historicista': de fato, significa afirmar que na base do devir histórico está 'a atividade das energias sociais livres', excluindo as utopias - isto é, a pretensão de buscar projetos abstratos, ao mesmo tempo arbitrários e ilusórios, sobrepostos ao agir dos homens - e combatendo a ideia de que o movimento da vida e da história, entendido por Gramsci como perpétuo 'fluir de matéria vulcânica liquefeita', possa atingir um estágio último e definitivo, porque hipoteticamente perfeito: 'Por isso abaixo o esperanto, tal como abaixo todos os privilégios, todas as mecanizações, todas as formas definitivas e enrijecidas de vida, cadáveres que empestam e agridem a vida em devir’” RAPONE 2014 página57

Aqui há uma profunda vinculação entre espaço nacional, esforço particular e individual, construção de uma mentalidade coletiva solidária, identidade linguística e cultural, consciência e determinação, particularidades que também estarão presentes na arquitetura. Cosmopolitismo e Localismo. O sistema gramsciano de pensamento está fortemente estruturado em torno das dimensões da linguagem, do conceito de centro e de hierarquia, bem como a ideia de espacialidade e temporalidade diversificadas, que geraram especificidades, que precisam ser estudadas e entendidas. Tudo isso configura um instrumental importante para a compreensão da cidade e da arquitetura no nosso mundo contemporâneo.

"O povo italiano, há cinquenta anos, não existia, era só uma expressão retórica, Não existia nenhuma unidade social na Itália, existia uma unidade geográfica. Existiam milhões de indivíduos dispersos no território italiano, cada qual vivendo para si mesmo, preso no seu torrão particular; ninguém sabia da Itália, cada qual falava um dialeto particular, acreditava que todo mundo estava limitado ao horizonte de sua aldeia. Conhecia o coletor de impostos, conhecia o carabineiro, conhecia o juiz e o tribunal: sua Itália. E, no entanto, esse indivíduo, muitos destes milhões de indivíduos superaram este estágio particularista, formaram uma unidade social, sentiram-se cidadãos, sentiram-se colaboradores de uma vida, que saia do horizonte da sua aldeia, que se estendia por espaços cada vez mais amplos do mundo, que se estendia ao mundo inteiro.... Ele fez com que um camponês da Puglia e um operário de Biella falassem a mesma língua, passassem, tão distantes, a se expressar de modo igual em relação ao mesmo fato, a dar um juízo igual sobre um acontecimento, um homem..." RAPONE 2014 páginas 66 e 67

Assim, nessa condição de subalterno no espaço social da Itália, Gramsci construirá uma das reflexões mais potentes do nosso tempo, aonde o sistema hierárquico de dominação é uma presença indelével, mas também uma possibilidade de transformação. Sua quase veneração pelo “Americanismo” e “Fordismo”, como inovações do capitalismo nos EUA, reconhecendo ao mesmo tempo maior liberdade das amarras da história européia, e mais dominação e exploração por sua eficiência de contornar o enfrentamento de classe. A minoridade da burguesia italiana frente a inglesa, americana e francesa, sua declaração de dependência do Estado Nacional, a fraqueza do liberalismo italiano frente a essas outras três nações vem da incompletude da sua reunificação (Risorgimento), sem a participação popular, numa transformação feita por cima com as elites temendo sempre a explosão das massas. A posição da Sardenha e a parte meridional da Itália agrária, católica e arcaica, frente ao norte industrializado, urbano e moderno. A reflexão de Gramsci terá sempre esse componente histórico espacial e cultural, que identifica especificidades, mapeia suas potencialidades e problemas, buscando sempre a estratégia da transformação. Mantendo sempre um otimismo propositivo; “Pessimismo da crítica e otimismo da práxis.” Há uma consciência do desenvolvimento capitalista, que sempre nos remete ao confronto-complementariedade entre o arcaico e o moderno, aonde as duas condições não são apenas polos antagônicos, mas realidades que tomam conhecimento mútuo, e muitas vezes exploram sua proximidade de forma complementar. A questão dos intelectuais orgânicos, que nascem das condições objetivas da existência do precariado, e que conseguem superar a sobrevivência, relativizando as razões de sua existência precária. Capacidade de formulação de uma narrativa auto-descritiva; Identidade e Representação. No campo do debate dos intelectuais orgânicos e dos intelectuais tradicionais, que no Brasil podem ser representados pelas trajetórias; de Marielle Franco, uma liderança orgânica da Favela da Maré, e a de Antônio Cândido, um intelectual paulista de grande abrangência e de cultura universalista. 

“...processo histórico de formação das diversas categorias de intelectuais, que é observado em todo grupo social, por nascer na base originária de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe conferem homogeneidade e consciência de sua função no campo econômico.” GRAMSCI 1934 Q4

A questão das vivências como construtoras de narrativas, auto descritivas, das políticas de identidades do mundo contemporâneo possuem um grande vínculo com a ideia de intelectual orgânico de Gramsci. No sentido que a tarefa inicial de todo pensador seria a capacidade de se auto-representar, como uma experiência, que é também um saber a ser compartilhado por todos. Nesse sentido, o conhecimento assume uma outra dimensão, que considera as diversas vivências como saber, que ao ser compartilhado ilustra a todos. A humanidade se esclarece na medida em que toma conhecimento de sua diversidade e mistura, fazendo-nos relativizar nossos valores e crenças. Gramsci mantém viva a ideia advinda do marxismo do cosmopolitismo a ser compartilhado por todos que se ilustram com a inserção das novas narrativas, no entanto ele reconhece a presença do pensamento hegemônico, que é sempre o da classe dominante. A capacidade de superar esse estágio não é encarado como um momento único e definitivo, mas um processo contínuo de afirmação de um conflito inacabável no seio da humanidade. A auto-organização da própria cultura é função dos intelectuais orgânicos das diferentes classes sociais, que conferem a auto-construção de sua própria identidade.. 

“Mas todo grupo social ao emergir da história da estrutura econômica, encontra, ou encontrou na história que desenvolveu até então, categorias intelectuais pré existentes, as quais se apresentam como figuras de uma continuidade histórica ininterrupta, não posta em discussão nem pelas mais complexas mudanças sociais e políticas. Desde os eclesiásticos, monopolizadores por longo tempo de alguns serviços essenciais até Croce que se percebe mais ligado a Aristóteles do que a Agnelli.” GRAMSCI 1934 Q4

Gramsci entenderá como a função central do intelectual orgânico; organizar e conectar formas peculiares e historicamente determinadas nas próprias narrativas do grupo, superando a aparência dos interesses corporativos e se mimetizando com aspirações gerais humanas para ter sucesso nos processos de produção da hegemonia. A pergunta de Gramsci é; “quais são os limites máximos dentro dos quais é possível compreender e colocar a noção de intelectual?” Reconhecendo a dificuldade para se identificar um critério certo e eficaz, Gramsci identifica o erro metódico mais difuso, que busca no intrínseco da atividade do intelectual, isto é em sua qualidade de pensamento. Quando na verdade, tal caráter deve ser buscado no agrupamento que o personifica, que desvenda seus interesses práticos e objetivos, sua própria auto-construção como sujeito. Tal perspectiva aponta para a possibilidade de universalização para toda humanidade do trabalho intelectual, a qual deveria ser acessível a todos, humanizando nossas existências. O exemplo clássico foi a superação pela burguesia da argumentação instituída no mundo de então da representação da nação pelo rei, ou por uma linhagem familiar, que passa a ser substituída pela competição eleitoral, que para não representar uma mudança ampla se restringiu aos critérios de eletividade do voto, sempre bloqueando a universalização do sufrágio ( apenas para: proprietários, alfabetizados, homens, etc...).

“A relação entre intelectuais e produção não é imediata, como acontece para os grupos sociais fundamentais, mas é mediada, e é mediada por dois tipos de organização social; a) pela sociedade civil, isto é, pelo conjunto de organizações privadas da sociedade, b) pelo Estado.” GRAMSCI 1934 Q4

O Caderno 25 faz uma reflexão sobre um período da História Italiana, da sua unificação tardia no século XIX, denominado o Risorgimento da Itália, no qual Gramsci claramente compara o processo de emergência do Estado Nacional no seu país, com as revoluções na Inglaterra (1688), EUA (1775-83), e França (1789-99), identificando uma reparação conservadora entre as massas e as lideranças. Na verdade Gramsci identifica uma minoridade nas massas italianas, que ao serem simplesmente conduzidas não haviam feito o esforço de auto identificação, que ele percebera nos casos da Inglaterra, EUA e França, que portanto se auto-responsabizaram e ganharam visibilidade. Desenvolvendo uma relação complexa (histórica e geográfica) em relação ao par; hegemonia/subalternidade, não apenas econômica, mas também cultural e social.

“Nós não conhecemos a Itália. Pior ainda: faltam-nos os instrumentos adequados para conhecer a Itália como ela realmente é. Portanto, nos encontramos na quase impossibilidade de fazer previsões, de nos orientarmos...Não existe uma história da classe operária italiana. Não existe uma história da classe camponesa...” GRAMSCI 1934 Q25 

Nesse sentido, o pensamento gramsciano gera em nossa contemporaniedade uma série de pensadores atuantes, que assumem sua filiação de forma explícita, pensando a partir de periferias diversas, que produzem uma grande variedade de construções. O primeiro a ser mencionado é o historiador Indiano Ranajit Guha (1923-), que estabelece na Universidade Sussex, na Inglaterra um grupo de pesquisadores em 1959, denominado Subaltern Studies. No qual desenvolve uma abordagem anti essencialista e multi polar, claramente baseada em Gramsci. A segunda menção é a pesquisadora indiana, Gayatri Chakravorty Spivak (1942-) desenvolve nos EUA, na Universidade de Columbia, associada ao grupo do Subaltern Studies, escrevendo em “Pode o subalterno falar?” (versão em inglês 1988 e português em 2010-UFMG), usando Gramsci e o filósofo franco-magrebiano, Jaques Derrida (1930-2004). Ela é crítica literária, sendo sua tese de doutorado sobre o poeta irlandês Yeats, orientada pelo renomado Paul de Man. SPIVAK 2010 diferencia; o falar por, do representar alguém. Essas propostas partem do Caderno 25 dos Quardeni. di Carcieri de Gramsci, um dos poucos com título, que recebe clara denominação de; “Às margens da História: História dos Grupos Sociais Subalternos”

"Sua crítica [de Spivak], de base marxista, pós-estruturalista e marcadamente desconstrucionista, frequentemente se alia a posturas teóricas que abordam o feminismo contemporâneo, o pós-colonialismo e, mais recentemente, as teorias do multiculturalismo e da globalização.“ ALMEIDA, Sandra Regina Goulart (UFMG – tradutora) 

No Brasil, há uma grande diversidade de gramscianos, começando por; Carlos Nelson Coutinho (1943-2012), tradutor dos Quaderni di Carceri e formulador de um dos mais importantes artigos para a esquerda brasileira; “A democracia como valor universal” no final dos anos 70, que se afastava das formas de conquista violenta do poder, e é fortemente influenciado pelas posturas do PCI de Enrico Berlinger. Outro pensador brasileiro, de vertente gramsciana é Leandro Konder (1936-2014) filósofo e professor da UFF e da PUC-Rio, escreveu a “Questão da Ideologia”, no qual percorre a abordagem de uma série de pensadores sobre a estruturação da compreensão do real, e desse tema tão complexo, que envolve a auto justificação de nossas práticas particulares. Além desses, Luiz Werneck Vianna (1938-), sociólogo e professor da Puc-Rio, que escreve a “Revolução Passiva, iberismo e americanismo” no Brasil, analisando a transformação da sociedade brasileira de escravista e agrário-exportadora, em competitiva, urbano e industrial, numa transição acomodada e articulada de forma autoritária entre as elites apenas, sem envolvimento popular. E, por último, Marcos del Roio (1954-) professor da UNESP no campus de Marília SP, que organizou o livro Gramsci, Periferia e Subalternidade em 2017 e escreveu Gramsci e Emancipação do Subalterno em 2018, destacando a identidade sarda, e seu combate ao positivismo e ao economicismo. É atuamente presidente da International Gramsci Society do Brasil, defende a tese de que o movimento operário no Brasil era americanista, e com uma visão maior de resultados para a categoria.

A partir desse momento passei a listar movimentos históricos, que estão invizibilizados, principalmente na perspectiva nacional do Brasil, mostrando como grupos sociais subalternos ainda permanecem sem identidade. O primeiro é o movimento de 1695 do Quilombo de Palmares; em 20 de novembro com a morte de Zumbi, após uma série de expedições sobre um território de 27 mil M2, 1/3 do Reino de Portugal, com 10 aldeias em permanente luta com as forças coloniais no século XVII. Houveram 17 missões (2holandesas e 15portuguesas) que pretenderam suprimir a Rebelião do Quilombo de Palmares, na Serra da Barriga no Estado de Alagoas, que chegou a ter 11mil pessoas. Palmares era uma monarquia eletiva nos moldes do que existia na África de então foi dizimada pelas forças coloniais, há uma descrição sobre o Quilombo numa carta de 1687; “São muitos em número, e cada vez mais. Não lhes falta destreza nas armas, nem no coração ousadia.” GOMES 2019 página411

“Por força da lei 12.519, de 2011, a data se transformou no Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra...Em 2018, apenas 1047 municípios, de um total de 5561 optaram pelo feriado. Em alguns estados, como Rio Grande do Norte, Ceará, Pernambuco, Pará e Rondonia, nenhuma cidade se animou a celebrá-lo como um dia de descanso... Os historiadores, Jean Marcel Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira, professores da UNESP... Afirmam que traçar a biografia de Zumbi seria hoje uma tarefa impossível.” GOMES 2019 página422

O segundo, que mencionei foi o de 1791 - Revolta do Haiti; A grande revolta negra contra a escravidão se iniciou em agosto, dois anos após a Revolução Francesa, após a Cerimônia de Bois-Caiman, na Planície Norte, que contou com a participação de milhares de marrons (escravos fugitivos). O Haiti tinha 120mil escravos, 77% da população total da ilha, no Brasil em 1750, os escravos eram 50% da população. Sobre a qual destaquei uma citação de Thomas Piketi, que demonstra claramente como as narrativas centrais contemplam os grupos subalternos numa condição periférica, mesmo àquelas que defendiam a tese do abolicionismo;

“Alexandre Moreau de Jonnès – conhecido pelos muitos materiais estatísticos sobre os escravos e seus donos que compilou em diversas colônias a partir dos recenseamentos e pesquisas administrativas realizados desde o século XVII e abolicionista convicto – propõe em 1842, que os escravos ressarçam o valor total da indenização realizando “trabalhos especiais” não remunerados pelo tempo que for necessário. Ele insiste no fato de que isso também ensinará aos escravos o significado do trabalho.” PIKETI 2020 página210

É interessante mencionar como Gramsci destaca aspectos sobre as complexas interações dos movimentos sociais subalternos, que envolvem; o espontaneísmo e a direção racional. Uma tendência de considerá-los como movimentos folclóricos, aonde sua apropriação social, pela historiografia hegemônica invariavelmente como; bizarros, desequilibrados, curiosidades, localizados na periferia da cultura e da Política. Um dos movimentos destacados pelo próprio intelectual sardo foi sobre Davide Lazzaretti (1834-1878); um pregador do Monte Amiata na Toscana Itália, chamado do Cristo dell´Amiata, personagem do Teatro Pobre de Montichiello e cantatas folclóricas, republicano, anti clerical, luta pela unificação da Itália contra as forças do pontificado de Roma.

“...Este era o costume cultural do tempo: em vez de estudar as origens de um acontecimento coletivo, e as razões de sua difusão, de seu ser coletivo, isolavam o protagonista e se limitavam a fazer sua biografia patológica, muito frequentemente partindo de motivos não comprovados ou passíveis de interpretação diferente: para uma elite social, os elementos dos grupos subalternos têm sempre algo bárbaro ou patológico” GRAMSCI 1934 Q25

Outro movimento, que destaco no Brasil foi o de Antonio Conselheiro (1830-1897); um conselheirista, firma um povoado no sertão da Bahia (1874) denominado Canudos (Arraial do Bom Jesus - 5 mil domicílios e 20 mil pessoas), caixeiro viajante, órfão de mãe aos 6 anos, gostava de ler, dava aulas numa fazenda no sertão do Ceará (Quixeramobim), abandonado pela mulher. Estabelece no Arraial de Canudos uma resistência aos Coronéis do Nordeste, sendo também monarquista, anti clerical e religioso. Atualmente, há no local o Parque Estadual de Canudos, um sítio notável no sentido de deixar registrado esse movimento, que ainda não teve sua narrativa inteiramente esclarecida.

“...todo traço de iniciativa autônoma por parte dos grupos subalternos deve ser de valor inestimável para o historiador integral.” GRAMSCI 1934 Q25

Mais um momento invisível em nossa historiagrafia foi o de 1904, denominado como; A Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro e em Niterói, em 9 de novembro foi aprovada pelo Senado Federal a lei da obrigatoriedade da vacina da Febre Amarela. Em março de 1904, uma lei já havia regulamentado o serviço de profilaxia na cidade, concedendo poderes arbitrários ao Prefeito Pereira Passos nomeado pelo Presidente Rodrigues Alves, dentre eles o de demolir as edificações consideradas insalubres. Em novembro de 1904, a cidade era um verdadeiro canteiro de demolições e desalojamento do seu precariado que habitava os cortiços e outras edificações precárias, que recebiam ordem de abandonar suas habitações, nas quais eram locatários, sem qualquer compensação. As rebeliões e trincheiras se estenderam do dia 9 ao dia 15 de novembro, tendo os rebeldes se apoderado do Quartel da Polícia na Rua Frei Caneca, depredando edificações e o serviço de bondes da cidade. No dia 16, O Governo Federal decreta Estado de Sítio na cidade.
“Ela (Revolta da Vacina) sacrificou grupos subalternos em proveito dos interesses mais gerais das classes dominantes, sob a hegemonizada burguesia cafeeira paulista...Ao mesmo tempo foi proveitosa aos interesses particulares do capital privado...desde o capital bancário internacional, de onde provieram os empréstimos...passando pelas grandes companhias empreiteiras, especuladores e construtores, até as diversas frações do capital comercial, financeiro e industrial que puderam permanecer ou vieram se instalar nas áreas remodeladas.” BENCHIMOL 1992 página328

Outro movimento sobre o qual ainda existem muitas lacunas de relatos é o da Escravidão no Brasil 1500 a 1888, estruturado a partir da colonização portuguesa (1500-1822), mas mantido após a libertação do julgo colonial. O Brasil é o último país da unidade econômica do Atlântico Europeu a decretar seu fim, essa instituição marca o perfil do Brasil até hoje. Em 1808, quando a corte portuguesa se transfere para o país, o Brasil tinha cerca de 3milhões de habitantes, dos quais cerca de 50% eram escravos. No ano de 1850, a cidade do Rio de Janeiro contava 250 mil habitantes, dos quais 110mil ou 44% da sua população era escrava. Em 1865 é decretada a Lei do Sexagenário, libertando os escravos com mais de 60 anos, em 1871, a Lei do Ventre Livre, na qual os proprietários das mães dos escravos libertos, denominados “ingênuos”, deveriam cria-los até os 6 anos, para receber do Estado uma indenização, ou então mantê-los até os 21 anos fazendo-os trabalhar em troca de salários. Fato, que certamente determinava uma super exploração dessa mão de obra, beneficiando práticas patriarcais e senhoriais de nossa elite agrário-exportadora. Em 1888, na libertação se intensifica a política da imigração europeia e japonesa, o que certamente se constitui numa crueldade, numa falta de solidariedade com a massa de população negra existente no país, que então, se pautava por um claro desejo de embranquecimento de sua população, emblematicamente expresso no quadro A redenção de Cam. Em 2010, no último censo do IBGE; 48% da população se declarou branca, 43% mestiça, 8% negra, e 1% asiática e indígena.

“Não fazia muito tempo, Rui Barbosa, Ministro da Fazenda do Governo Provisório, mandara queimar toda a documentação relativa a escravidão existente no ministério, alegando que o fazia para apagar a mancha negra das páginas da nossa história.” BENCHIMOL 1992 página311

Por último, identifiquei no Colonialismo Europeu 1500-1850 um cruel movimento de subalternização de um amplo contingente populacional que habitava a América pré-colombiana. Um movimento que se pautou pela supressão da identidade local e imposição de uma identidade externa, católica ou protestante, que promoveu o maior holocausto do Ocidente. Esse movimento foi responsável pela geração de sociedades desigualitárias e de grande concentração de renda, aonde muitas vezes há uma sacralização do direito de propriedade. As sociedades pré-colombianas foram destruídas por detalhes de acesso diferenciado a tecnologias de grande poder destrutivo - a pólvora - que passam de maneira excluídora a representar a civilização. Hoje em dia já se reconhece a maior adequação de muitas culturas pré-colombianas, na sua manipulação de tecnologias agrícolas e ou de contagem do tempo, que foram soterradas e esquecidas. Há ne verdade diferenciadas matrizes e tipologias a serem estudadas e elucidadas, como; a) Ibérica (católica e patrimonialista); a.1) Portugal (miscigenada), a.2) Espanha (anti-miscigenação, grandiloquente). b) Inglesa: b.1) Norte dos EUA (ocupação, perseguição religiosa), b.2) Sul dos EUA (senhorial, escravocrata), b.3) India (minoritária, super exploração). c) Holandesa: c.1) Expansão Judaica, c.2) Eficiência Comercial. d) Francesa: d.1) Maioria escravocrata (Haiti), d.2) Maior contigente de ocupação nas Cidades (Argélia) 

Ao final, tentei contrapor a esses exemplos de estudos pós coloniais, o relato da historiografia hegemônica, usando um livro notável, já destacado aqui no blog; O Longo Século XX, de Giovanni Arrighi, que destaca as diversas supremacias que operaram no sistema capitalista. Primeiro, as Cidades Estado Italianas no século XIV, que de forma pioneira viveram o processo de descoberta de que o poder não está na posse de mercadoria-propriedade, mas na sua base monetária-financeira, da concentração de moedas. Cidades como Gênova e Veneza, que concentraram os primeiros banqueiros da história descobriram a contabilidade cruzada, se beneficiando muito mais das descobertas Ibéricas do que Espanha e Portugal, que promoveram as grandes viagens, mas acabaram endividados, com essas cidades. O segundo exemplo, foi a Holanda, ou a Liga Hanseática, que descobriu e desenvolveu, na época do capitalismo mercantil, o potencial especulativo do armazenamento de especiarias e mercadorias e sua articulação numa bolsa de valores, que promete lucros no futuro, a partir da lógica dos negócios e promessas especulativas.

“Permitam-me enfatizar aquilo que me parece ser uma aspecto essencial da história do capitalismo; sua flexibilidade ilimitada, sua capacidade de mudança e adaptação. Se há, segundo creio, uma certa unidade no capitalismo, da Itália do século XIII até o Ocidente dos dias atuais, é aí, acima de tudo, que essa unidade deve ser situada e observada... Em certos períodos, inclusive períodos longos, o capitalismo de fato pareceu especializar-se, como no século XIX, quando se deslocou tão espetacularmente para o novo mundo da indústria.” ARRIGHI 1996 página4

“...quando os agentes capitalistas não têm expectativa de aumentar sua própria liberdade de escolha, ou quando essa expectativa é sistematicamente frustrada, o capital tende a retornar a formas mais flexíveis de investimento – acima de tudo sua forma monetária. Em outras palavras, os agentes capitalistas passam a preferir a liquidez, e uma parcela incomumente grande de seus recursos tende a permanecer sobre forma líquida.” ARRIGHI 1996 página5
 
Logo depois da Liga Hanseática, a Inglaterra assume a supremacia no sistema capitalista internacional, com a retirada dos holandeses do comércio internacional para se transformarem nos banqueiros da Europa. A Inglaterra nos primeiros sinais da Revolução Industrial assume uma concentração de riqueza sem par, demonstrando inicialmente uma capacidade ímpar de super explorar seu entorno imediato (irlandeses) e depois o resto do mundo. Num segundo patamar, mas também de forma sincrônica com a Inglaterra, a França desenvolve uma forma particular de acumulação primitiva que é específica, na sua histórica beligerância com o Reino Unido, desde a guerra dos 100 anos. Sua inserção internacional será ideologicamente central com a Revolução Francesa, mas fomentará um capitalismo mais artesanal, agrário, disperso e qualitativo que investirá fortemente numa super exploração de suas colônias. 

“...as sociedades de proprietários que prosperavam na Europa no século XIX e início do século XX se caracterizavam por uma concentração extrema de propriedade. Na França, no Reino Unido e na Suécia os 10% mais ricos detinham durante a Belle Époche (1880-1914) entre 80% e 90% de tudo que havia para ser possuído (terras, imóveis, ativos profissionais e financeiros, líquidos de dívidas) e o 1% mais rico detinha, sozinho entre 60 e 70% de tudo o que havia para ser possuído.” PIKETI 2020, página247

Gráfico que mostra a apropriação da renda nacional, pelos
10% mais ricos no mundo, mostrando como Brasil e 
Índia são países desiguais

Em seguida a hegemonia inglesa emerge os EUA, uma nova base do domínio capitalista mundial, inicialmente no segundo pós-guerra, com um discurso anti-colonial no Oriente Médio, numa aparente domesticação do imperialismo inglês. Mas em seguida usando-se de expedientes de contra espionagem determina uma nova forma de dominação, realizada pelas suas grandes corporações e multi nacionais. Os EUA também hierarquizam as nações pelo mundo exercendo sua supremacia de forma diferenciada; nos paises mais desenvolvidos como na Europa e Japão a partir do soft power. E, nos países da periferia e semi-periferia do capitalismo, na América Latina, África e Oriente, a partir do hard power, ou da utilização de tropas ou promoção de golpes de Estado. Por fim, mencionei a China, nova potência mundial, que vem dominando os ativos financeiros estadunidenses, território de atração do capitalismo de acumulação primitiva, combinado com Planejamento Estatal, mas sem poder bélico para se contrapor aos EUA. Mas assim como os BRICs; Brasil, Russia, India, China e África do Sul se apresentam como promotores de um desenvolvimento de grande concentração de renda, que na verdade atraem desenvolvimento a partir de sua capacidade de super explorar seus precariados, a partir da desarticulação do fordismo-keynesianismo, que se inicia no final dos anos setenta, com as eleições de Margareth Thatcher na Inglaterra (1979) e Ronald Reagan nos EUA (1980). 

“Desde então, (final dos anos setenta) todas as nações tem estado a mercê da disciplina financeira, seja pelos efeitos da fuga de capitais, seja por pressões institucionais diretas; “Sempre houve, é claro, um equilíbrio delicado entre os poderes financeiros e estatais no capitalismo, mas a desarticulação do fordismo-keynesianismo significou uma evidente guinada para um aumento de poder do capital financeiro frente ao Estado nacional.”” ARRIGHI 1996, página03


NOTAS:

(1) Glotologia, ciência que estuda comparativamente as diversas línguas, considerando suas origens e formação. (Sin.: glossologia, glótica.)
(2) O sufrágio universal masculino foi decretado em 1912, e apenas em 1945 admitiu a participação das mulheres. 

BIBLIOGRAFIA:

ADORNO, Theodor e HOCKHEIMER, Max – A Dialética do Esclarecimento, fragmentos filosóficos – Jorge Zahar Editores Rio de Janeiro 1985 

ALEXANDER, Christopher – Una Linguagen de patterns – Editorial Gustavo Gilli 1987 

_____________________ - Ensayo sobre la Sintesis de la forma – Editorial Gustavo Gilli 1976 

ARRIGHI, Giovanni - O longo século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo - editora Unesp São Paulo 1996 

BACHELARD, Gaston - A formação do espírito científico, contribuição para uma psicanálise do conhecimento - Editora Contraponto Rio de Janeiro 1999 

BENCHIMOL, Jaime Larry - Pereira Passos: um Haussmann Tropical - Biblioteca Carioca Rio de Janeiro 1992

BRAUDEL, Fernand - The Wheels of Commerce - Harper & Row, Nova York 1982 

DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian – A Nova Razão do Mundo, ensaio sobre a sociedade neo-liberal – Editora Boitempo São Paulo 2016 

DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian – O Comum, ensaio sobre a revolução do século XXI– Editora Boitempo São Paulo 2017 

FIORI, Pedro Arante - Arquitetura na era digital e financeira – Editora 34 letras São Paulo 2017 

FRAMPTON, Kenneth - Studies on Tectonic Culture – MIT Press Nova York 2002 

FRAMPTON, Kenneth – História Crítica da Arquitetura Moderna – Editora Martins Fontes São Paulo 1997 

FUKUYAMA, Francis – O fim da História – Edição Vozes Petrópolis 1989

GABRIEL, Mary - Amor e Capital, a saga da família de Karl Marx e a história de uma revolução - editora Zahar Rio de Janeiro 2013 

HABERMAS, Jürgen – Arquitetura Moderna e Pós Moderna – Revista CEBRAP 1989 

__________, Jürgen – O Discurso filosófico da modernidade – Editora Martins Fontes São Paulo 2002 

HOBSBAWM, Eric - Como Mudar o Mundo, Marx e o marxismo de 1840-2011 - Editora Companhia das Letras São Paulo 2011 

JAMESON, Frederic – A Cultura do Dinheiro, Ensaios sobre a globalização; O Balão e o tijolo, arquitetura, idealismo e especulação imobiliária – Editora Vozes Petrópolis 2001 

KANT, Immanuel - Duas introduções à crítica do juízo - Editora Iluminuras São Paulo 1995 

KHOURY, Ana Paula – Arquitetura moderna brasileira, uma crise em desenvolvimento textos Rodrigo Lefèvre – FAPESP São Paulo 2019 

KING, Ross – O Domo de Brunelleschi, como um gênio da Renascença reinventou a arquitetura – Editora Record Rio de Janeiro 2013 

LYNCH, Kevin – A Imagem da Cidade – Editora Martins Fontes Rio de Janeiro 1991 

LYOTARD, Jean Françoise – A Condição pós Moderna – Editora José Olympio Rio de Janeiro 1986 

KONDER, Leandro - A questão da ideologia - Companhia das Letras São Paulo 2002 

LAGO, Ivann - O Jair que há em nós - artigo publicado em carta maior coletado em maio de 2020 em https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Sociedade-e-Cultura/O-Jair-que-ha-em-nos/52/47388

LÊNIN, Vladimir Ilitch Ulianov - O estado e a Revolução, a doutrina do marxismo e as tarefas do proletariado na revolução - Editora Boitempo São Paulo 2017 

LIGUORI, Guido e VOZA, Pasquale (orgs.) – Dicionário Gramsci 1926-1937 – Editora Boitempo São Paulo 2017

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich - A Ideologia Alemã: Crítica da novíssima filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Brauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas, 1845-1846 - Civilização Brasileira Rio de Janeiro 2007 

MONEO, Rafael - Inquietação Teórica e Estratégias Projetuais – Editorial Cosac Naif São Paulo 2002 

MOREIRA, Pedro da Luz – Projeto, Ideologia e Hegemonia; em busca de um conceito operativo para a cidade brasileira – Tese de doutorado de 2007 do PROURB FAU-UFRJ 

_______, Pedro da Luz - O espaço da Europa em 1848, e o nosso tempo contemporâneo - Dezembro de 2018, em www.arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com coletado em 05/06/2020 

_______, Pedro da Luz - A mudança, o Estado e a Sociedade Civil - Fevereiro de 2018, em www.arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com coletado em 05/06/2020 

PIKETI, Thomas – Capital e Ideologia – Editora Intrínseca Rio de Janeiro 2020 

PULS, Mauricio – Arquitetura e Filosofia – Editora Anablume São Paulo 2006 

ROLNIK, Raquel – A Guerra dos Lugares, a colonização da terra e da moradia na era das finanças – Editora Boitempo São Paulo 2015

RAPONE, Leonardo - O jovem Gramsci, cinco anos que parecem séculos, 1914-1915 - Editora Contraponto, Brasília 2014

ROIO, Marco del – Gramsci e a Emancipação do Subalterno – Editora UNESP São Paulo 2018 

_____________ (org.) – Gramsci, Periferia e Subalternidade – EDUSP São Paulo 2017 

ROSSI, Aldo – A Arquitetura da Cidade – Editora Martins Fontes São Paulo 1997 

SANTOS, Carlos Nelson dos – A cidade como um jogo de cartas – Editora Projeto Rio de Janeiro 1989
SCHUMPETER, Joseph A - Capitalismo, socialismo e democracia - Editora UNESP São Paulo 2017

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

REUNIÃO DO CVI SOBRE "CUIDANDO DE QUEM CUIDA"


Cartaz do Evento do Centro de Vida Independente (CVI)
Ontem, dia 06 de agosto de 2020 o Centro de Vida Independente (CVI), uma instituição da sociedade civil, sem fins lucrativos, que atua há mais de 25 anos em prol da pessoa com as mais diversas necessidades especiais, realizou um encontro com mães e pais com filhos excepcionais que recebe o nome de "Cuidando de quem Cuida", que se constitui como uma série. Um nome incrível e muito bem escolhido, sintetizador de uma realidade inexorável, que faz menção aos parentes mais próximos, que lidam no dia a dia com essas especialidades. Falaram nessa ocasião dessa data; Andrea Apolônia mãe da Rafaela, que possui uma síndrome rara, Paulo Rodrigues pai do Yuri que tem Síndrome de Down, eu, Pedro da Luz Moreira pai do Felipe que é um autista não verbal, e Suélen Alexander, mãe da Stela que tem paralisia cerebral. O encontro reuniu em torno de 15 pessoas ligadas ao CVI, portadores de necessidades especiais, e pais e mães diferenciados, e, particularmente para mim, me emocionou profundamente. A presença dessa neuro-diversidade nos depoimentos esclareceu e iluminou como o cuidado dessa alteridade é didática e fundadora de um outro módus operandi diferenciado, que elucida para os neuro-normais nossas próprias limitações em entender o humano em sua integridade. A oportunidade que essa vivência proporciona aos envolvidos envolve uma potência, que se afasta de uma celebração simplista, mas que demanda a convivência com frustações diversificadas, sucessos momentâneos e episódios emocionantes. A busca pelo diagnóstico correto, a interação com a ciência médica, os mistérios que ainda envolvem nosso cérebro, os preconceitos da sociedade em geral com o neuro especial em geral foram os temas que dominaram os depoimentos.

Tela capturada do meu computador na reunião do CVI; Cuidando de que Cuida
No meu depoimento, procurei enfatizar o importante retorno que a convivência com Felipe me proporciona, procurando me afastar das visões romantizadas e mistificadoras, que recalcam as profundas frustrações e ansiedades que permeiam essa convivência  num mundo do autismo, aonde a comunicação é sempre um fio tênue e muito delicado. Apesar disso tudo, reconhecia de forma categórica como essa experiência de ser pai do Felipe havia mudado minha existência e meu cotidiano de forma sensível, num processo de auto aprendizado que revolucionou minha forma de interação com o mundo de uma maneira geral. Essa mudança impactou toda a família - imediata e expandida - de forma clara e indelével, tornando-nos a todos outras pessoas. De certa forma, uma maior abertura para as especiais necessidades e comportamentos de todo ser humano, que na verdade está sempre distante do que se convencionou categorizar, como neuro normalidade. Considerei também, em minha fala a importância da ampliação da visibilidade do neuro especial no seio da sociedade, que denota uma atitude política no enfrentamento dos pré conceitos arraigados em todos. A luta pelo acolhimento de instituições do Estado, que garantam o resguardo, a convivência e o acompanhamento dos neuro especiais, que no meu entendimento representam um grande ganho para qualquer sociedade no mundo. Enfim, foi uma experiência notável, que deveria ser compartilhada por todos, fazendo com que a sociedade tivesse mais empatia com a neuro diversidade, que representa na verdade um ganho.



sábado, 13 de junho de 2020

Aula 2: Arquitetura, Cidade, Filosofia, Pandemia (apontamentos)

Na segunda aula de Arquitetura, Cidade, Filosofia, Pandemia reforcei a presença da importância do debate e do encontro do contraditório para ampliação do conhecimento, no esforço da rede do IAB para organização do Congresso UIA 2021Rio, no qual a cidade e a ocupação humana do território estará sendo pensada e problematizada. Foi também recordado alguns pontos da Aula 1, tais como;
  • A epidemia do Covid-19 radicaliza uma presença constante da era moderna e contemporânea, o impulso de conhecer e problematizar a sociedade em que vivemos, na sua operação, principalmente no que se refere a sua capacidade de distribuir felicidade e bem estar entre todos.
  • Esse desejo de transformação se aglutina em dois pontos. Um lado progressistaluta contra a manutenção de sua forma operativa; alienada, competitiva e repetitiva, bloqueadora da felicidade, da solidariedade e do bem estar. E o outro lado, conservador, que celebra a atual forma de ordenação social, alienada, competitiva e repetitiva, considerando que essa manutenção garantirá o alcance da felicidade e do bem estar. 
Uma clara disputa de narrativas, discursos ou ideologias que se sobrepõe, repetindo como será nosso "novo normal". Há um paradoxo, nessa expressão "novo normal“. Pois, se verdadeiramente "novo" deveria não ser "normal". Será, já um direcionamento em favor do conservadorismo? No Brasil, o discurso conservador ganhou terreno a partir de uma série de acontecimentos desde o processo de redemocratização, que podem ser resumidos em quatro pontos; 
  • as tradições estruturais do autoritarismo brasileiro,
  • a longa recusa do enfrentamento em nossa história desse mesmo autoritarismo,
  • o capital rentista que apura valores exorbitantes sem produzir nada e
  • a curta conjuntura de emergência de grupos milicianos e para militares, a partir de 2013, que endemonizaram a política pós constituinte de 1988.
Tais pontos estão de certa forma naturalizados em nossa sociedade, em uma série de comportamentos e atitudes cotidianas, que estão presentes no nosso dia a dia, como na citação presente na primeira aula, que localiza a presente recorrente do autoritarismo entre nós. Relembramos também, que desde tempos imemoriáveis a filosofia se dedica a Teoria da descrição do real, como podemos nos apropriar do que existe, vê-lo de forma precisa e convincente, descrevê-lo de forma aceitável e persuasiva. Narrativas ou Lugares de Interpretação ou Discursos Explicadores;
  • O que é exatamente conhecer?
  • O que me autoriza a afirmar que realmente conheço um assunto?
  • Quem me garante que o que sei, ou acho que sei, corresponde ao real?
Foi dado o exemplo, de que coisas banais como uma cadeira podem ser conhecidas pela experiência ou pela empiria; sua cor, a maciez do assento, sua solidez, seu espaldar, sua materialidade de madeira, seu desenho, e sua estrutura. Para ir além da empiria precisamos trilhar caminhos, que nos exigem mais abstração teórica; como ela se relaciona com outras cadeiras, sua concepção, seu estilo, sua técnica produtiva, qual sua conexão com o tempo que a concebeu, etc...Há portanto, duas grandes vertentes aparecem de forma clara, de um lado a empiria ou o conhecimento da experiência imediata com o objeto, de outro, a base da abstração teórica que demanda leitura e pesquisa.


Arcaico e Moderno, dimensões que se aproximam e se juntam
na exploração mútua. Favela e Condomínios de Luxo
Logo após essas recordações abordamos o filósofo italiano Antônio Gramsci (1891-1937), que nasceu em Ales na Ilha da Sardenha em 1891, junto do sul da Itália, e morreu em Roma em 1937, tendo uma vida trágica marcada pelo cárcere do fascismo de Mussolini. Em 1911, Gramsci sai da Sardenha e vai estudar Linguística na Faculdade de Letras em Turim, proveniente de uma família pobre, de uma área agrícola do sul, ele chega ao norte industrializado e desenvolvido como um imigrante precarizado. Nesse tempo, se dedica a trabalhos na imprensa de Turim, primeiro do Partido Socialista e depois do Comunista, a partir de 1919, funda com Palmiro Togliatti a Revista L´Ordine Nuovo, que se posiciona não só politicamente, mas também no campo cultural. Se dedica ao estudo de linguística de forma sistemática, escrevendo textos de solidariedade ao mundo cultural da Sardenha se aprofundando nos estudos de glotologia (1) do neo linguista Matteo Bartoli. Em1922, Gramsci foi à Rússia representando o Partido Comunista Italiano e lá conheceu sua esposa, Julia Schucht (1896 - 1980), uma jovem violinista, com a qual teve dois filhos Delio (1924 - 1982) e Giuliano (1926 - 2007). Em 1924, foi eleito Deputado Federal pelo PCI pela região do Venetto, dois anos depois em 1926 é preso pela polícia de Mussolini, que declara "É preciso calar a mente brilhante desse deputado." Nos cárceres do fascismo irá construir uma reflexão importante no marxismo, criticando o modelo centralizado e autoritário da União Soviética e de Stálin. A crítica gramsciana aponta a presença de uma vertente positivista no marxismo, considerando que esse muitas vezes se restringe a um economicismo reducionista, que não considera os aspectos culturais da transformação revolucionária. As reflexões serão manuscritas nos Cadernos do Cárcere, uma fragmentária abordagem de uma série de problemas, que partem de problemas cotidianos próximos e corriqueiros para amplas abstrações. Gramsci, terá uma importante reflexão sobre as formas de alcançar o poder pela esquerda, não de forma violenta mas pelo voto, sem que isso signifique um declínio da qualidade da mudança, ou da radicalidade revolucionária. Há em Gramsci o início de uma certa melancolia, em função da derrota da Revolução na Alemanha e na própria Itália, bloqueando a ideia da internacionalização do processo de mudança. A ascensão de regimes totalitários, o nazismo na Alemanha, e o fascismo na Itália foram exatamente movimentos que responderam ao perigo dessa internacionalização. Gramsci constroe uma argumentação, que identifica um centro, Inglaterra, França e EUA, uma periferia imediata no sistema capitalista, Alemanha, Itália, Espanha, Grécia, e uma periferia distante, dando um caráter espacial, geográfico e dinâmico. No qual, a subalternidade e a centralidade de determinadas burguesias ou da classe operária, dentro de uma concepção da história como uma ciência. A relação entre representantes e representados é problematizado, com base na força da organização das sociedades civis e da democratização das práticas cotidianas, operadas por sindicatos, associações e organizações de aglutinação de solidariedades. Ideologia e Hegemonia seguem uma relação dinâmica e dialética aonde discursos, falas apontam para um esforço de persuasão e convencimento. 
Um gradiente da presença de autoritarismo, a partir do centro e da periferia do sistema capitalista, contrapõe um padrão ou modelo do oriente ao ocidente, que desembocam em transformações violentas ou graduais. A fragilidade das burguesias é avaliada a partir dessa capacidade de persuasão passiva do conjunto de suas ideias na sociedade, numa poderosa analogia com a língua, molecular e permeada, como estrutura compartilhada bloqueadora do autoritarismo. A condição de subalterno de Gramsci, no espaço social da Itália será uma das fontes mais profícuas do seu pensamento, a noção de um certo centro impulsionador do capital, constituído primeiro pela Inglaterra e depois pelos EUA. A subalternidade da Itália nesse sistema mundial, a minoridade da burguesia italiana frente a inglesa, americana e francesa, sua declaração de dependência do Estado Nacional, a fraqueza do liberalismo italiano frente a essas outras três nações. A posição da Sardenha e a parte meridional da Itália agrária, católica e arcaica, frente ao norte industrializado, urbano e moderno. A reflexão de Gramsci terá sempre esse componente histórico espacial e cultural, que identifica especificidades, mapeia suas potencialidades e problemas, buscando sempre a estratégia da transformação. Mantendo sempre um otimismo propositivo. Sua consciência do desenvolvimento capitalista, sempre nos remete ao confronto entre o arcaico e o moderno, aonde as duas condições não são apenas polos antagônicos, mas realidades que tomam conhecimento mútuo, e muitas vezes exploram sua proximidade de forma complementar. Também a língua, sua evolução e seu desenvolvimento irão sempre constituir para Gramsci como um ordenamento estruturado de forma molecular e dispersa, e de baixo para cima, com transformações contínuas, que lhe permitiam analogias com a política. Além disso, a questão da língua sempre esteve nas reflexões de Gramsci relacionada à organização da cultura e à função dos intelectuais orgânicos das diferentes classes sociais. Um conceito fundamental para a compreensão da forma de pensar o poder em Gramsci, a pulverização da língua como patrimônio comum compartilhado por todos, e completamente avessa ás determinações centralizadas do poder institucionalizadoGramsci também construirá um forte vínculo entre linguagem e forma de estruturar o pensamento, negando de forma enfática o naturalismo e o mecanicismo, que imperava nos meios marxista do início do século XX. Mas ao mesmo tempo valorizando de sobremaneira a forma como a linguagem se estrutura, possibilitando a criação, a reformulação e a revolução dentro de parâmetros e regulações socialmente introjetadas em cada indivíduo. De baixo para cima. Para Gramsci, o estudo e o aprofundamento no fenômeno da linguagem sempre será proveitoso, reunindo criatividade e compreensão socialmente compartilhada, que na verdade impulsionam um devir histórico real e apartado do idealismo.
Na verdade, nos ensinamentos de Gramsci considero importante fixar e reforçar os seguintes conceitos, que estruturaram minha reflexão de doutorado, Projeto, Ideologia e Hegemonia; em busca de um conceito operativo para a cidade brasileira, no PROURB da FAU-UFRJ;
  • Ideologia: uma concepção mais neutra que negativa, quando comparada com a construção de Marx. Distinção entre Ideologias progressistas (socialista) e Ideologias conservadoras (burguesa). Visão dialética entre estrutura- superestrutura. Consciência da parcialidade da classe, superação do interesse corporativo, atingindo interesse universal. Analogia com a conquista do direito de voto da burguesia, contraposto a sucessão dinástica.
  • Hegemonia: Ideologia, que ganha supremacia junto ao tecido social, sendo compartilhada pela maioria, superação dos interesses econômicos corporativos atingindo valores universais. Coerção e Aceitação. Estado e Sociedade Civil. Hegemonia é política e cultural, importância dos meios de comunicação; jornal, rádio, etc... “Todos os homens são intelectuais, embora nem todos tenham na sociedade essa função.” GRAMSCI
  • Previsão (Plano e Projeto): Ausência de previsibilidade é associada a precariedade da vida cotidiana, na dissolução dos fundamentos sociais das formas tradicionais de expectativa. “A história é uma comparação implícita entre o passado e o presente...E por que seria ilícita a elipse quando a comparação é feita com uma hipótese futura, ao passo que seria lícita se feita com um fato passado?” GRAMSCI Q 10 página 311


A Industria cultural do cinema, crítica a alienação do
precariado
Theodor Adorno (1903-1969) e Max Hockheimer (1895-1973), dois filósofos da Escola de Frankfurt, um centro universitário da Alemanha, que se dedica a crítica cultural identificando assim como Gramsci a necessidade de transformação, a partir dos comportamentos do cotidiano. O tema de Adorno e Hockheimer se concentra na indústria cultural do cinema e da música identificando nela uma supremacia do entretenimento e da superficialidade, frente a um aprofundamento crítico. O livro, A dialética do esclarecimento, fragmentos filosóficos foi escrito por Theodor W. Adorno e Max Hockheimer em pleno exílio nos EUA, nos anos da ascensão do Partido Nacional-Socialista, que impediu as atividade do Instituto de Pesquisas Sociais (IPS), a Escola de Frankfurt, dentro da Alemanha de 1933 a 1945. Os dois filósofos alemães escrevem o livro exilados na costa oeste americana, na cidade de Berkeley próxima a San Francisco, convivendo com a emergência do modelo de uma cidade espalhada e de baixa densidade, dominada pelo automóvel e o pneu, que assiste ao surgimento da moderna indústria da cultura de massas, representada pelo cinema e pela música. Na Alemanha, o nazismo fora eleito determinando a perseguição aos judeus e aos intelectuais de esquerda, na União Soviética, Stálin havia assumido o controle do Partido Comunista calando vozes de diversos opositores. Mesmo nos EUA e na Califórnia, distantes das terríveis convulsões da Europa e iniciava a perseguição aos comunistas, que impuseram aos dois filósofos alemães uma série de constrangimentos. Adorno por exemplo, que não possuía o visto americano permanente, não podia se afastar mais de cinco quilômetros da Universidade e de sua casa, sem comunicar a polícia da Califórnia, o que já denotava o surgimento do Macarthismo (2), e da perseguição ao pensamento de esquerda. Por tudo isso, aqui emerge um marxismo desconfiado da coletividade e mesmo do proletariado, que radicaliza um discurso vanguardista e isolacionista, que Horkheimer já prenunciava no livro A teoria tradicional e teoria crítica de 1937;

"...a verdade buscará refúgio entre pequenos grupos de homens admiráveis." HORKHEIMER, citado por MERQUIOR 1987 página160 

Há uma desconfiança continuada sobre a ampliação do consumo das classes precarizadas, que efetivamente não representaram uma efetivação do esclarecimento, mas um entorpecimento e uma alienação generalizada. O discurso estadunidense de que no país não havia uma classe trabalhadora, mas apenas uma classe média consumidora, que desfrutava de bens e confortos permitidos pela ampliação contínua de sua economia é questionado contrapondo-se a ampliação da alienação do divertimento e do consumismo.


"Numa situação injusta, a impotência e a dirigibilidade da massa aumentam com a quantidade de bens a ela destinados. A elevação do padrão de vida das classes inferiores materialmente considerável e socialmente lastimável, reflete-se na difusão hipócrita do espírito." ADORNO e HORKHEIMER 1985 página14


O Mito de Ulysses na travessia do mar das sereias
O livro é composto por um Prefácio, que sistematiza a ideia de esclarecimento como destruidor dos mitos e ritos explicadores e instrumentador de uma ciência desmemorizada, simplificadora e unilateral. Já há nele um embrião de uma ideia importante para a Escola de Frankfurt a distinção entre duas racionalidades; a instrumental, e outra desinteressada e especulativa. Seguido por O conceito de Esclarecimento, no qual a razão instrumental e tecnológica é vista como legitimadora da dominação e do poder sobre a natureza ou outros seres humanos, que passam a ser objetivados. Seguido por dois excursos, um sobre o mito de Ulisses na Odisséia grega: 

  • Excurso (3) I: Ulisses ou Mito e Esclarecimento - visto como um testemunho precoce da civilização burguesa, onde sacrifício e renúncia prenunciam o domínio total da natureza humana e não-humana. E, o segundo excurso sobre Kant, Sade e Nietzche.
  • Excurso(3) II: Juliete ou Esclarecimento e Moral - onde emerge um sujeito autocrático, que descamba para uma objetividade cega, não admitindo mais o contraditório. A industria cultural e Elementos do Anti-semitismo.
Que são seguidos por, Notas e Esboços, que anunciam pesquisas futuras. Por essa estrutura, o livro denota uma certa processualidade inconclusa, ou uma perplexidade diante da transformação do esclarecimento em barbárie, a sombra do nazismo e de suas atrocidades domina a reflexão, sinalizando que o aumento do consumo de bens materiais não elevou o padrão da sociabilidade. Nesse curso, a abordagem da Escola de Frankfurt se ressente da ausência de Walter Benjamim, um pensador com uma abordagem mais positiva com relaçao a industria cultural de massa, notadamente no seu texto A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica

Michel Foulcault (1926-1984), aborda a crise da razão ocidental, identificando um profundo vínculo entre razão e poder, partindo do pressuposto da não existência de um pensamento desinteressado, e mais contemplativo. Suas teorias abordam a relação entre Poder e Conhecimento e sua vinculação com o controle social por meio de instituições sociais, que seriam como aparatos de vigilância. Foucault é considerado um pós estruturalista, e por muitos um pensador pós moderno. Foucault acabou rejeitando esses rótulos, preferindo classificar seu pensamento como interessado na formulação de uma história crítica da modernidade ou do presente. Seu pensamento foi muito influente tanto para grupos acadêmicos, quanto para ativistas nos movimentos de 1968 em Paris, e possui ligações com o niilismo (4) de Nietzche. Se Kant era entendido como Federdenker, alguém que escreve pensando, Foucault será um litero-filósofo, alguém que torna a filosofia pela linguagem mais acessível e compreensível ao grande público, atuando como grande produtor de polêmica. Suas principais contribuições escritas são;
  • História da Loucura (1961), 
  • A Palavra e as Coisas (1966) 
  • História da Sexualidade (1976-1984)
Em 1949 ingressou no PCF, rompendo com o partido em 1951, em sua obra são constantes a identificação de dominações e coerções a partir do diálogo interpessoal, mesmo entre duas pessoas próximas, apontando a presença da impossibilidade de interação social desinteressada. Há um certo culto a radicalização da alteridade, o reconhecimento de que cada indivíduo é uma ilha, o que exclui a possibilidade da razão genérica. A cognição desinteressada é uma constante na sociedade explicada pela recusa da possibilidade do nivelamento hierárquico entre pensadores e debatedores. Apesar de todas as classificações e enquadramentos Foucault sempre se afastou das definições comportadas de seu pensamento;

“Nunca fui freudiano, nunca fui marxista e nunca fui estruturalista.” FOUCAULT

Como grande polemista, Foucault já esteve mais na moda nos círculos arquitetônicos ou intelectuais, basta ver sua presença em livros na década de setenta, oitenta e noventa, tais como; A cidade como um jogo de cartas de Carlos Nelson dos Santos, ou o Declínio do homem público de Richard Sennet, ou mesmo Tudo que é sólido desmancha no ar ou Towards a New Architectural de Marshal Bermann. Todos citavam as interligações feitas pelo filósofo francês entre dominação e ordenamento do espaço, ou entre poder e arquitetura ao longo da história humana. Muito do pensamento de Foucault sobre arquitetura foi publicado numa entrevista que levou o título de O Olho do poder, como destaca Mauricio Puls em seu livro Arquitetura e Filosofia. Talvez o conceito caro a Foucault de Sociedade da Vigilância Contínua (1984) esteja sendo substituído pelo de Sociedade do Cansaço (2016) de Byung Chul Han. Aonde a vigilância foi substituída por uma ansiedade produtivista da sociedade concorrencial capitalista, que pelas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) nos mantém em estágio constante de trabalho, presos a racionalidade instrumental 24 horas por dia. Nesse sentido,  o Panóptico projetado por Jeremy Betham (1785), a prisão ideal, como arquétipo que otimiza a vigilância sobre o cotidiano humano contemporâneo, e que será aplicado como uma tese ao ordenamento da fábrica e do escritório burocrático modernos. Uma analogia entre o espaço da prisão, onde a torre de controle vigia os presos, e, estes últimos não sabem o que ocorre dentro dela. Foucault aponta este procedimento como a emergência da sociedade disciplinar, onde o indivíduo é isolado em sua cela, sente a vigilância de todos, mas não consegue saber se na torre de controle o vigia está presente ou não. Um estado consciente e permanente de visibilidade, onde a sociedade como um todo se torna espionável. Hoje tão recorrente em nossas vidas pela presença dissimulada e recorrente das redes sociais, tais como; Facebook, Instagram, Twitter, etc...

Palácio do Escorial, Espanha Felipe II
A pergunta colocada por Foucault para os arquitetos e os profissionais vinculados ao espaço permanece relevante; o poder pode declinar em sua tirania, ampliando sua representividade, mas a arquitetura e a ordenação do espaço permanecem uma arte aprisionada por ele? Pois apenas nele, se encontram os recursos para sua realização. Foucault menciona, que a história dos espaços é a história dos poderes, desde as pirâmides do Egito, passando pela acrópole da Grécia Antiga, a Praça de São Pedro em Roma, ou ainda Washington e Brasília, há sempre uma profunda vinculação entre arquitetura e poder. Sem dúvida, o vínculo entre construção e poder é real e inafastável, uma vez que construir demanda recursos, que apenas o poder e os possuidores de bens usufruem; mas e a previsão ou o projeto? A questão colocada por Foucault nos leva a uma reflexão sobre o sentido de planejar e projetar; Haveria possibilidade de gestão de um contra plano ou projeto? A construção é cara e vinculada ao Poder, mas e o Plano e o Projeto? O desafio nesse começo do século XXI seria franquear o acesso ao plano e projeto a parcelas da população, que nunca tiveram essa possibilidade em toda a existência humana.

Por último abordamos Jürgen Habermas (1929-), o último representante vivo da Escola de Frankfurt, que irá trabalhar sobre a diferenciação entre razão instrumental e razão comunicativa, dando a primeira uma restrita dimensão operativa, enquanto a segunda desfrutaria de uma maior legitimidade. Habermas é membro da Escola de Frankfurt, o Instituto de Pesquisas Sociais (Institut fur Socialforschung) tendo sido assistente de Adorno coopera com este na crítica ao positivismo lógico. Desenvolve sua teoria dos interesses cognitivos, em sintonia com o pensamento de Herbert Marcuse, e com a didática de Piaget especialmente em relação ao interesse emancipatório. Desde o início, sua obra transita ao redor da categoria da interação. O trabalho de Habermas trata dos fundamentos da teoria social, no qual a racionalização do mundo da vida ocorre mediante uma progressiva libertação do potencial de racionalidade contido na interação comunicativa. A ação orientada para o entendimento mútuo ganha cada vez mais independência dos contextos normativos, que são considerados no âmbito da racionalidade operativa. Em meados dos anos 1990 o filósofo Habermas decreta num texto no qual ironiza a tendência contemporânea de se utilizar do prefixo pós para caracterização do nosso tempo. O texto de Habermas distingue a modernidade do modernismo, dizendo que a pretensão humana de desígnio do seu futuro, que as revoluções americana e francesa tinham expressado permanecia inalcançado. Habermas constroe sua teoria da racionalidade comunicativa, que se contrapõe a racionalidade meramente instrumental, determinando que a razão não deve estar carregada de personalismos, mas construída a partir de conflitos. Abre-se uma nova perspectiva utópica, que não mais condena as gerações futuras a uma construção congelada e fixa, mas que celebra o processo de auto-construção e de auto-determinação.


"Com as fraquezas funcionais do mercado e os efeitos colaterais disfuncionais do mecanismo de mercado também desmorona a ideologia burguesa baseada na troca justa. Por outro lado, surge uma necessidade intensificada de legitimação: o aparelho do Estado, que agora não assegura mais apenas os pressupostos para a existência do processo de produção, mas toma a inciativa de intervir em tal processo, precisa ser legitimado nos domínios crescentes da intervenção estatal, sem que agora houvesse a possibilidade de recorrer à existência de tradições que foram soterradas e desgastadas no capitalismo concorrencial." HABERMAS, 2016 página431


Muitos formularam uma crítica a filosofia de Habermas em cima de sua filiação euro-cêntrica, uma vez que se referia ao mundo desenvolvido, que apresentava uma constante ampliação da esfera pública de debates e explicitação de conflitos. Realmente, havia nos anos setenta, a percepção de ampliação das formas de regulação do mercado, e a inclusão social promovidas pelas formas de ordenação governamental, pelo menos no espaço da Europa, Japão e dos EUA. Havia então um declínio do capitalismo concorrencial e uma forma de regulação das sociedades avançadas baseadas no fordismo, no domínio monopolista da economia, e no keynesianismo, que começou a desmoronar com a ascensão de Tatcher e Reagan no final dos anos setenta. Nesse contexto era fundamental a existência do Estado, regulando as interações humanas e arrecadando impostos para promoção do estado de bem-estar social (Welfare State). O reconhecimento, o acato das ordens, e as estruturas burocráticas do Estado eram reconhecidas e identificadas como ordenadores das interações humanas, e necessitavam ter legitimidade para operar. Há uma presença da burocracia do Estado, que vigia e regula as atitudes dos cidadãos, a partir de impostos, que retornam em serviços notadamente de saúde, habitação e educação, que o Brasil nunca usufruiu. Mas, apesar dessa crítica não como negar que o conceito habermasiano da Legitimação coloca um dos problemas mais agudos dos sistemas de governo representativos, pois medem a qualidade da relação entre governados e governantes, e que no Brasil dos últimos anos assume uma dimensão dramática. Ou metaforicamente, a capacidade de lobos se transmutarem em cordeiros, ou a delegação conferida a chacais para cuidar de rebanhos dóceis, ou ainda a variação entre passividade e ativismo de cidadãos e seus representantes. No Brasil e no resto do mundo, nossa condição sobre o julgo da hegemonia financeira ou do improdutivo rentismo, lançou numa luta pela sobrevivência todos os que vivem apenas de seu trabalho, os despossuídos.

Nesse ponto da aula, enveredamos por tentar compreender o significado do ato de planejar e projetar, representados pela arquitetura e urbanismo, na estruturação de sua formação acadêmica, e na compreensão socialmente compartilhada desse ofício. Desde tempo imemoráveis surge a figura do antecipador da construção, o agente que a pré-figura em desenhos e antecipações, dando previsibilidade ao que vai ser erguido. Muitos teóricos e críticos identificam na história do mundo ocidental, uma cristalização dessa atividade, no concurso da cúpula da Catedral de Santa Maria Maggiore em Florença, vencido por Filippo Bruneleschi (1377-1446), um ourives. Há uma infinidade de reflexões sobre ela, desde Leo Batisti Alberti (1404-1472), até Manfredo Tafuri (1935-1994) e Giulio Carlo Argan (1909-1992), que abordaram o significado da cúpula de Florença. Interessante salientar, que o arquiteto Bruneleschi nunca escreveu uma linha sobre esse feito notável do renascimento italiano, que envolvia uma síntese de elaboração de um objeto, ao mesmo tempo adequado à tecnologia, ao espaço interno (arquitetura) e à região e à cidade (urbano). Daí a a sua identificação como uma refundação ou fundação da profissão do arquiteto, no âmbito do ocidente reunindo uma tradição da cultura do construir e uma capacidade crítica sobre essa mesma cultura. A síntese bruneleschiana na cúpula de Florença envolve realmente uma complexa interligação entre saberes como; tectonia, arquitetura e urbanismo.

Realmente uma complexa interação entre empiria e conhecimento teórico abstrato, que envolve aquilo que Tafuri identificou como a "crítica operativa do real", uma reunião inusitada entre intuição operativa e desconforto com o módus operandi estabelecido. Uma atividade humana, que não reconhece no planeta que habitamos a capacidade de nos abrigar, investindo na sua transformação para obtenção do bem estar. Nos tempos contemporâneos, a partir da consciência da finitude dos recursos naturais, essa atividade ganha uma nova dimensão para exatamente adequar o habitar ao planeta.

“Segundo Vitruvio (séc.IIIA.C), a arquitetura nasce da fabrica e da ratiocinatio. A primeira consiste na experiência que o arquiteto adquire com o ato de construir. A segunda é a teoria que se vai constituindo como resultado da prática.” MACIEL 2006 página 44

Desde o Iluminismo, o debate sobre as profissões, tanto sobre a arquitetura quanto sobre o urbanismo, pretende construir a figura do arquiteto como um ideólogo social, capaz de organizar de forma persuasiva a cidade e o viver. Mais contemporaneamente o arquiteto, Manfredo Tafuri, no livro História e Teorias da Arquitetura dedicou-se ao termo, qualificando muitas vezes a atuação dos profissionais como uma ordenação ideológica, que aponta para um esforço de convencimento e cooptação social das idéias, de modo que estas ganhem permeabilidade social ou aceitação geral. Tal condição pode ser comprovada quando nos debruçamos sobre a História da Arquitetura, buscando a construção de seu sentido, que aponta para ampliação da sociabilidade humana, de sua interação social. A história da arquitetura está pontuada por esforços de mudar práticas humanas arraigadas adequando-as aos novos tempos, tais como; no Iluminismo no seu esforço de deixar transparentes os recursos aplicados a transformação da obra, ou no modernismo na sua ênfase no habitar coletivo, ou ainda na contemporaneidade com sua adequação a nova consciência de limitação dos recursos do planeta. A ordenação ideológica e o alcance da hegemonia são operações constantes nesses exemplos para convencer o conjunto da sociedade da necessidade de mudança. Portanto, é necessário enfatizar a presença da ideologia em nosso mundo contemporâneo, esta simples palavra possui uma das caracterizações mais dinâmicas dentro das ciências sociais. A Ideologia sob o ponto de vista do senso comum se constitui como um conjunto de crenças, idéias, pensamentos, doutrinas de um indivíduo ou de um grupo social, que estruturam o seu agir. Habermas, em seu livro, O discurso filosófico da modernidade destaca que a necessidade de auto-legitimação do pensar moderno determinou que o homem se tornasse refratário a seguir sistemas de idéias já instalados, buscando sempre reconstruir sua visão de mundo particular. A desconfiança frente a sistemas de crenças instituídos é cada vez mais intensa, gerando uma constante instabilidade na produção ideológica.

Daí nossa necessidade de abordar a história das construções humanas e particularmente da cidade como o fruto de um projeto único e coletivo realizado no tempo longo, com a aspiração de ampliação da participação humana na construção da cidadania. Nesse sentido, a primeira modernidade, da belle epoche gera um modelo higienista, que se repete com grande recorrência em diferentes locais, aonde há uma malha estrutural de vizinhança contraposta a grandes avenidas, que otimizam a circulação. Numa obsessiva busca por iluminação e aeração das ruas, do movimento higienista em cidades novas ou pré existentes, com os exemplos de;
  • Barcelona, Espanha 1849, 
  • Paris, França 1853, 
  • La Plata, Argentina 1882,
  • Belo Horizonte, Minas Gerais Brasil 1897 e 
  • Rio de Janeiro 1905.
Esse higienismo será a primeira reação estruturada à grande cidade industrial, que explodia na Europa e nos EUA, na passagem do século XIX ao XX. Nesse sentido, o modernismo é fruto da grande cidade industrial e se manifesta primeiro na América, aonde determinadas aglomerações tiveram crescimentos gigantescos nunca vistos na história humana. Esse processo representou, ao final do século XX, a transformação da humanidade de agrária e rural em urbana e densa. A cidade de Chicago na passagem do século XIX para o século XX assiste um debate entre o Movimento do City Beatiful de Burnham - academicista e eclético - e as tendências organicistas e modernistas de Louis Sullivan e de Frank Lloyd Wright que se antecipam em vários anos aos debates das vanguardas centro-européias. De certa forma, a Escola de Chicago de Arquitetura anuncia a hegemonia estadounidense, que se materializará de forma definitiva no segundo pós-guerra, com a emergência dos EUA como nação mais poderosa no mundo. Então, as vanguardas centro-européias seguindo preceitos da Escola de Chicago de Arquitetura, fundaram o modernismo com a pretensão de instituir uma nova objetividade (neue saslichtekeit), na qual os monumentos eram a morte da arquitetura, onde se buscava uma nova essência que estava na grande cidade industrial. Basta lermos Adolf Loos ou Oto Wagner, arquitetos da Secessão Vienense que afirmavam a emergência de uma nova ética do construir, onde o que lhes interessava não era mais; os organismos governamentais, o teatro de ópera ou o parlamento, a arquitetura da exceção, mas a habitação extensiva das periferias intermináveis da cidade industrial européia.

Os exemplos desse esforço se sucedem na Europa no período entre guerras, principalmente na sua região central; da República de Weimar Alemã, da Austria, da Tcheco Eslováquia, aonde administrações social-democratas buscam reduzir as agruras dos imigrantes recém chegados a cidade, com a produção habitacional. A casa do operário ou da classe média, que se constituia na grande massa edificada da cidade industrial, as periferias desse fenômeno inusitado que também explodia na Europa na sua escala e tamanho, determinando um contínuo construído rápido, feio e inadequado. As infraestruturas urbanas e a habitação produzida em massa são os temas eleitos pelas vanguardas centro-européias. O Metrô de Viena, os conjuntos de Karl Marx Hof também na capital austríaca, o conjunto habitacional de Wiessenhof em Stugart na Alemanha, ou ainda o Karl Liegen Stadt de Bruno Taut em Berlim são testemunhos desse esforço de inclusão de massas que aportavam as cidades. Com essa estratégia, não há como negar que o modernismo conquistou corações e mentes em todas as partes do mundo, com diferentes nuances e formulações ele encarnou um desejo na sociedade de ampliação da autonomia dos povos na definição de seu futuro, de seu vir a ser, materializado na produção indiferenciada da habitação social. Mas esse posicionamento sofre uma inflexão na década de 30, como apontado pelo historiador Keneth Frampton, com a emergência da hegemonia de Le Corbusier no cenário dos CIAMs. A cidade imaginada na modernidade corbusieana radicaliza as transformações propostas pela primeira modernidade, rompe-se a estrutura tradicional baseada na rua, na quadra e no lote. As edificações ficam independentes do traçado das ruas. Há uma crença na especialização de partes do território da cidade, que passam a estar segregados em áreas de lazer, habitação e trabalho, como se fosse a tendência da cidade industrial. O automóvel assume a dimensão do transporte único e exclusivo da cidade, num rodoviarismo, que irá fortemente impactar a vida urbana. O automóvel ocupa e demanda um espaço exclusivo nas aglomerações urbanas, assumindo um papel destruidor da convivência e da interação urbana. No contexto do Brasil, o modernismo assume uma face criativa e generosa, reinterpretando o modernismo corbusieano, dando-lhe uma face inusitada e inovadora, sintetizada e concentrada no projeto das super quadras de Brasília do ideólogo Lucio Costa.
Nos mesmos anos, da concepção de Brasília, o autor Christopher Alexander se propõe a mapear a gênese da evolução da forma no processo de desenvolvimento do projeto, com o claro interesse de impulsionar a participação do usuário na elaboração do seu ambiente construído. Desenvolve-se nos EUA o advocacy planning ou projeto participativo, no qual o processo de construção do vir a ser de comunidades específicas é celebrado como a verdadeira pulverização da democracia. Os livros, Ensayo sobre la Síntese de la Forma (1964) e Una linguagem de padrons, , A pattern Language (1972) do mesmo autor desenvolvendo a ideia do plano e do projeto como processo de desenvolvimento da construção do bem viver. No Brasil, Carlos Nelson dos Santos lança o livro A cidade como jogo de cartas, no qual celebra uma certa neutralidade do desenho da grelha, que impulsiona sua apropriação por diferentes agentes no longo prazo da cidade. Num paradoxo, o Plano de Nova York de 1811 decreta uma imensa homogenização do território baseado na malha xadrez. Os elementos celebrados são a rua, a quadra e o lote como unidades em torno dos quais o jogo da cidade é jogado. Nesse paradoxo, Carlos Nelsom dos Santos aponta que apesar desse inicio homogenizador, aonde todos os lotes são iguais no seu dimensionamento - testada e profundidade - a ilha de Manhattan apresenta hoje grande diversidade de tipologias, usos e contínuos diferenciados. Se restabelece a possibilidade da construção utópica, que deixa de ser um objetivo fixo e congelado, mas a celebração de uma processualidade que restabelece a necessidade da presença contínua da criatividade das futuras gerações. O jogo pressupõe agentes e atores igualmente empoderados, que declaram suas intenções e negociam objetivos, a racionalidade abandona a subjetividade isolada e se aproxima da inter-subjetividade.

Um pouco antes, nos anos 1950 o arquiteto Loui I. Khan (1901-1974) retoma o tema da monumentalidade e quebra a unidirecionalidade tecnológica dos materiais, retomando o tijolo como elemento pré-moldado mais potente. Em 1947 Khan assume a cadeira de arquitetura em Yale, fazendo reflexões fundamentais, como: “O que o lugar quer ser?” “ Programa morto e vivo” “Espaços que servem e os que são servidos”. No começo da década de 60, Jane Jacobs  no livro Morte e Vida das Grandes Cidades Americanas (1961), no qual decreta a perda da vitalidade das cidades americanas em função de um rodoviarismo exacerbado, presente no modernismo nos projetos de Le Corbusier como o Plano Voisin para Paris. A jornalista Jane Jacobs desenvolve a ideia de protagonismo do usuário no desnho das cidades;

"As cidades tem a capacidade de prover algo para alguém, somente porque, e apenas quando, são criadas por todos... Não existe melhor expert na cidade do que aqueles que vivem e experimentam seu dia a dia." JACOBS 1981 página 77
Essa mesma década de 60, explode com a emergência de um mundo que decreta o fim das vanguardas e a presença de uma grande massificação, aonde uma parcela inimaginável passa a acessar o conhecimento. O mundo elitizado da primeira modernidade dá lugar a uma imensa massificação, que está espelhada nos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, que começam em La Sarraz no ano de 1928 com vinte e oito arquitetos e terminam em Dubrovnick no ano de 1956, com uma multidão de estudantes. Passando para nossa contemporaneidade, em 2002, Kenneth Frampton lança o livro Studies in Tectonic Culture, no qual identifica a saturação do problema do símbolo e da representação no campo da arquitetura, apontando como saída o desenvolvimento da tectônica. O compromisso com o construído. As obras de grandes arquitetos são analisadas a partir da escolha de diferenciados modos de construção, que recolocam a complexa relação entre custo e benefício no projeto. Nesse mesmo tempo, o arquiteto Rafael Moneo lança em 2008 Inquietação Teórica e Estratégias Projetuais, no qual rejeita a adoção de um personalismo de linguagem por parte dos arquitetos, celebrando a idéia da reinvenção do arquiteto a cada novo projeto. Cada novo projeto representa uma oportunidade, que demanda do arquiteto uma leitura específica de cada lugar.
Por último, destaca-se o pensamento de uma dupla de pensadores franceses, que recolocam a questão da luta pela transformação mais ampla de nossa condição contemporânea, aonde é revalorizado o conceito de Comum.

"A raiz etimológica da palavra "comum" nos dá uma indicação decisiva e uma direção de pesquisa. Émile Benveniste indica que o termo latino munus nas línguas indo-européias, pertence ao vasto registro antropológico da dádiva e designa ao mesmo tempo um fenômeno social específico... Encontramos nos significados do termo a dupla face da dívida e da dádiva, do dever e do reconhecimento, própria do fato social fundamental da troca simbólica... Não se trata, primordial ou principalmente, de dádivas e obrigações entre parentes e amigos, mas, na maioria das vezes, de prestações e contraprestações referentes a toda uma comunidade." DARDOT e LAVAL 2017, página25

Os dois autores retomam os textos do jovem Marx, que em 1842 escreveu uma série de artigos na Gazeta Renana (Reinish Zeitung), sobre a lei que impedia a coleta de lenha nas florestas privadas da Renânia, que constituem a abertura do filme do diretor haitiano Raoul Peck, que descreve o começo da vida do filósofo alemão, desse momento até a síntese do Manifesto Comunista em 1848, junto com Engels. Esses textos destacam a profundidade das reflexões de Marx a partir do problema da coleta de lenha naturalmente caída no solo, com respeito a filosofia do direito, um tema caro ao seu mestre, o também filósofo Hegel. No final da aula numa rápida autocrítica dessa coletânea observa-se a ausência do pensamento feminino, que deve ser corrigida numa próxima reflexão, abordando a ; Arquitetura, Cidade, Filosofia. A menção à Rosa Luxemburgo (1871-1919) que desenvolveu um profundo pensamento sobre: Militarismo, guerra e classe trabalhadora (1913), A acumulação do capital (1963); E,  Hannah Arendt (1906- 1975), com: Origens do Totalitarismo, antisemitismo, imperialismo, totalitarismo (1951), Eichmann em Jerusalém (1963) termino essa duas aulas.


NOTAS:

(1) Glotologia – estudo da evolução da língua coloquial
(2) Macarthismo - movimento notadamente anticomunista, inspirada no movimento dirigido pelo senador Joseph Raymond McCarthy 1909-1957, que dominou os serviços secretos americanos.
(3) Excurso - tem como significado; desvio, digressão, divagação, ou desvio do tema principal.
(4) Niilismo - doutrina filosófica que nega  a existência do absoluto, quer como verdade, quer como valor ético

BIBLIOGRAFIA:

AARÃO REIS, Daniel - A revolução que mudou o mundo: Rússia 1917 - Companhia das Letras São Paulo 2017

ADORNO, Theodor W. e HORCKHEIMER, Max - Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos - Jorge Zahar Rio de Janeiro 1985

ALEXANDER, Christopher - Ensayo sobre la sintesis de la forma - Editorial Gustavo Gilli 1976 Barcelona

___________, Christopher - Una lenguagen de padrons - Editorial Gustavo Gili 1981 Barcelona

ARENDT, Hannah - Sobre a Revolução - Companhia das Letras São Paulo 2001

________, Hannah - Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal - Companhia das Letras São Paulo 2002

ARRIGHI, Giovanni - O longo século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo - editora Unesp São Paulo 1996

BACHELARD, Gaston - A formação do espírito científico, contribuição para uma psicanálise do conhecimento - Editora Contraponto Rio de Janeiro 1999

BRAUDEL, Fernand - The Wheels of Commerce - Harper & Row, Nova York 1982

DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian - O comum, a revolução do século XXI - Editora Boitempo, São Paulo 2017

FOUCAULT, Michel - Vigiar e Punir - Editora Vozes Petrópolis 2000

FRAMPTON, Kenneth - Studies in Tectonic Culture - MIT Press Londres 2001

__________, Kenneth - História Crítica da Arquitetura Moderna - Editora Martins Fontes São Paulo 2007

FRÖLICH, Paul - Rosa Luxemburgo, Biografia - Editora Boitempo São Paulo 2019

GABRIEL, Mary - Amor e Capital, a saga da família de Karl Marx e a história de uma revolução - editora Zahar Rio de Janeiro 2013

HABERMAS, Jürgen - Para a reconstrução do Materialismo Histórico - Editora Unesp 2016 São Paulo

____________, Jürgen - O discurso filosófico da modernidade - Edição Martins Fontes 2002 São Paulo 2002

HOBSBAWM, Eric - Como Mudar o Mundo, Marx e o marxismo de 1840-2011 - Editora Companhia das Letras São Paulo 2011

JACOBS, Jane - Morte e Vida das Grandes Cidades Americanas - Editora Martins Fontes São Paulo 2000

JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo - Dicionário Básico de Filosofia - Jorge Zahar Editores Rio de Janeiro 2006

KANT, Immanuel - Duas introduções à crítica do juízo - Editora Iluminuras São Paulo 1995

KONDER, Leandro - A questão da ideologia - Companhia das Letras São Paulo 2002

KRAUSZ, Tamás - Reconstruindo Lênin, uma biografia intelectual - Editora Boitempo 2017
LAGO, Ivann - O Jair que há em nós - artigo publicado em carta maior coletado em maio de 2020 em https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Sociedade-e-Cultura/O-Jair-que-ha-em-nos/52/47388

LÊNIN, Vladimir Ilitch Ulianov - O estado e a Revolução, a doutrina do marxismo e as tarefas do proletariado na revolução - Editora Boitempo São Paulo 2017

LIGUORI, Guido e VOZA, Pasquale - Dicionário Gramsciano - Editora Boitempo São Paulo 2017

MACIEL, Justino M. - Vitruvio 10 livros de Arquitetura - Ist Press 2006 Lisboa 2006

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich - A Ideologia Alemã: Crítica da novíssima filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Brauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas, 1845-1846 - Civilização Brasileira Rio de Janeiro 2007

MERQUIOR, José Guilherme - Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamim - Editora Civilização Brasileira 1965

__________, José Guilherme - Michel Foucault ou o Niilismo de Cátedra - Editora Nova Fronteira Rio de Janeiro 1985

MONEO, Rafael - Inquietação Teórica e Estratégia Projetual - Editora Cosac Naify São Paulo 2008

MOREIRA, Pedro - Projeto, Ideologia, Hegemonia; em busca de um conceito operativo para a cidade brasileira - Tese de Doutorado no PROURB FAU-UFRJ 2007

________, Pedro da Luz - O espaço da Europa em 1848, e o nosso tempo contemporâneo - Dezembro de 2018, em www.arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com coletado em 05/06/2020

__________, Pedro da Luz - A mudança, o Estado e a Sociedade Civil - Fevereiro de 2018, em www.arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com coletado em 05/06/2020

__________, Pedro da Luz - O jovem Gramsci, a linguagem e as formas de construir – Janeiro 2019 em www.arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com, coletado em 08/06/2020

RAPONE, Leonardo - O jovem Gramsci: cinco anos que parecem séculos 1914-1919 - Editora Contraponto Rio de Janeiro 2014

SANTOS, Carlos Nelson - A cidade como jogo de cartas - Editora Projeto São Paulo 1988

SCHUMPETER, Joseph A - Capitalismo, socialismo e democracia - Editora UNESP São Paulo 2017

TAFURI, Manfredo - História e Teorias da Arquitetura - Editorial Presença Lisboa 1981