segunda-feira, 24 de maio de 2021

Apontamentos da Aula 2: Arquitetura, Cidade, Filosofia e os 4 eixos do Congresso UIA2021Rio

 


A segunda aula do curso, Arquitetura, Cidade, Filosofia e os 4 Eixos do Congresso UIA2021Rio identificou a centralidade da questão habitacional nas grandes cidade contemporâneas, encarando-a como um direito, mas do que uma mercadoria. A centralidade dessa questão é por sua capacidade de transmitir de forma convincente, ao conjunto da sociedade, a ideia de que nenhum agente ou ator será deixado a margem, ou de lado. A ideia de um projeto de inclusão, para a cidade brasileira, e não mais de exclusão, como vimos na primeira aula. A ideia, de que a prática do planejamento e da projetação envolve uma dimensão de positividade transformadora, aonde o fazer se volta para a práxis, para a operacionalização dos desejos que foram socialmente construídos. Apresentou-se também a dimensão propositiva das ações de plano e projeto, que se arriscam na formulação de arranjos localizados no futuro, aonde declina a descrição e emerge a prescrição. O enfrentamento do vir-a-ser, como uma forma de interpretar o contexto com uma contribuição que se aproxima da arte e da ciência, na sua construção argumentativa, buscando cooptar os usuários.

“A história é uma comparação implícita entre o passado e o presente...E, por que seria ilícita a elipse quando a comparação é feita com uma hipótese futura, ao passo que seria lícita se feita com um fato passado... Se os fatos sociais são imprevisíveis e o próprio conceito de previsão é nada mais do que um som, o irracional não pode deixar  de dominar e toda organização de homens é anti história é um preconceito.” GRAMSCI 2001 página176

O tema habitacional da cidade brasileira é problematizado a partir da condição de subalternidade da cultura no Brasil, o “complexo de vira-latas” do nosso dramaturgo maior, Nélson Rodrigues, que foi apresentado na primeira aula. Um tema que permanece em aberto, e que historicamente foi encarado de uma maneira euro cêntrica, sem olhar para as reais condições alcançadas pela população precariada nas cidades brasileiras, que auto construíam seus abrigos nas favelas. O alijamento do mercado imobiliário formal, que mesmo nos momentos de maior produção de Habitação de Interesse Social (HIS), não conseguiu alcançar a grande maioria da nossa população. Atestam essas condições, não só as favelas mais as ocupações nos centros das cidades brasileiras. O Edifício Wilton Paes de Almeida, construído em (1960-68), de 24 andares, no centro de São Paulo, do arquiteto Roger Zmelkov, tombado pelo Conselho do Patrimônio (COPRESP) da cidade em 1992, veio ao colapso por incêndio devido suas precárias das instalações elétricas. No Rio de Janeiro, também o antigo Edifício do INSS no centro da cidade, ao lado da Assembleia Municipal é atualmente a Ocupação Manoel Congo, que desde de 2008, luta por sua regularização. Segundo a Fundação João Pinheiro de Belo Horizonte em Minas Gerais, o déficit habitacional no Brasil, chega a 6,9 milhões de domicílios, mas num paradoxo há no Brasil 6,05 milhões de imóveis desocupados. Certamente, além da subalternidade, o tema habitacional nas cidades brasileiras está refém da nossa cultura perpassada pelo Patrimonialismo exarcebado, e pela Absolutização da Propriedade Privada. Uma condição cultural, que bloqueia e represa o desenvolvimento mais inclusivo das cidades brasileiras, que apesar de desfrutarem de uma lei - o Estatuto da Cidade - , que representa um grande avanço, não encontra sua aplicação naturalmente introjetada.

“Foi, portanto, precisamente esta aguda falta de habitações, este sintoma da revolução industrial que se completava na Alemanha, que nessa altura encheu a imprensa com dissertações sobre a «questão da habitação» e deu azo a todo o tipo de charlatanarias sociais.” ENGELS 2015

O trecho acima foi retirado da A Questão da Habitação, que foi escrita por  Friedrich Engels entre maio 1872 e janeiro 1873, para o jornal Volkstaat em resposta a uma série de artigos que foram publicados nesse jornal de Leipzig, num debate sobre o alojamento das classes precarizadas dentro das cidades industriais europeias, que na ocasião explodiam de tamanho. Portanto, o texto faz mais de um século, e já apontava o significado da absolutização do Direito de Propriedade no solo da cidade, para as populações precarizadas, e, como tal condição bloqueava o acesso a essa benfeitoria, a moradia. O Brasil, assim como outros países na periferia do sistema capitalista possui parcelas expressivas da sua população, que não conseguem acessar pelo mercado formal, a condição da habitação. As marcas do colonialismo, do patrimonialismo, do patriarcado permanecem operando bloqueando uma reflexão própria e adequada às condições locais. Dentro dessa questão, se pensarmos sobre as favelas e os loteamentos irregulares, formas de promoção do acesso a moradia nas sociedades da periferia do capitalismo, nas cidades brasileiras, percebe-se a permanência do colonialismo.

"Ao analisar todos os orçamentos coloniais de 1925, por exemplo, constata-se que as colônias francesas tinham, em média, apenas dois fucionários públicos para cada mil habitantes, mas que cada um desses funcionários era remunerado cerca de dez vezes mais do que o nível de renda nacional médio por adulto nas colônias; já na metrópole, no mesmo período contavam-se cerca de dez funcionários para cada mil habitantes, com cada um ganhando o dobro da média nacional por habitante.”  PIKETI, 2020 pág.253

Após relembrar temas da primeira aula, tais como; o discurso de Ailton Krenak, que nos relembra a diversidade da humanidade, e a necessidade de ouvir as práticas e pensamentos dos povos originários da América. Ou, as diferentes leituras sobre a performance do século XX, a partir de dois livros; A era dos Extremos, o breve século XX 1914-1991 de Eric Hobsbaun 1995, e, O Longo século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo de Giovanni Arrighi 1996. Foi apresentada uma conceituação cara ao filósofo do início do século XX, na Itália, Antônio Gramsci (1891-1937), que caracterizou os intelectuais como tradicionais e orgânicos. Uma ideia fundamental no enfrentamento do colonialismo, que é visto pelo filósofo como um processo intrínseco da política, a expressão dos grupos subalternos, que ao se constituírem como identidade, elegem seus representantes. Para Gramsci, os intelectuais orgânicos eram membros vinculados às condições periféricas e subalternas, que ao buscar sua identidade ou auto expressão elegiam seus pensadores. Há nessa postura, uma consciência do desenvolvimento capitalista, que sempre nos remete ao confronto-complementariedade entre o arcaico e o moderno, aonde as duas condições não são apenas polos antagônicos, que se anulam, mas realidades que tomam conhecimento mútuo, e muitas vezes exploram sua proximidade de forma complementar, numa lógica econômica e geográfica interdependente. No caso particular da Itália por exemplo, as populações do sul da península ou da sua Sardenha, que migravam em direção às cidades industriais do norte (Turim e Milão) fragilizados em busca de emprego. Ou como no caso do Brasil, aonde populações nordestinas migraram e migram para São Paulo em busca de trabalho, e são constantemente fustigadas na sua condição de subalternos. A questão dos intelectuais orgânicos, que nascem das condições objetivas da existência do precariado, e que conseguem superar a sobrevivência, problematizando as razões de sua existência precária. Capacidade de formulação de uma narrativa auto-descritiva, ao mesmo tempo inaugural, construtora e produtora da Identidade e da Representação.

“...processo histórico de formação das diversas categorias de intelectuais, que é observado em todo grupo social, por nascer na base originária de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe conferem homogeneidade e consciência de sua função no campo econômico.” GRAMSCI 1934 Q4

A analogia utilizada para exemplificar essa condição no Brasil foi a diferença entre intelectuais como Antônio Cândido (intelectual tradicional) e Marielle Franco (intelectual orgânico), portadores de situações sociais, que condicionaram seu pensar. Mas a vertente aberta por Gramsci continua operando pelo mundo, e produzindo afilhados diferenciados. O historiador Indiano Ranajit Guha (1923-) estabelece na Universidade Sussex, na Inglaterra um grupo de pesquisadores em 1959, denominado Subaltern Studies. Abordagem anti essencialista e multi polar, baseada em Gramsci, com sua construção de entender o sistema capitalista a partir de um centro, que vulnerabiliza parcelas expressivas da população de todo o mundo. A também pesquisadora indiana, Gayatri Chakravorty Spivak (1942-) desenvolve nos EUA, na Universidade de Columbia, associada ao grupo do Subaltern Studies, escrevendo em “Pode o subalterno falar?” (versão em inglês 1988 e português em 2010-UFMG), usando Gramsci e o filósofo franco-magrebiano, Jaques Derrida (1930-2004). Ela é crítica literária, sendo sua tese de doutorado sobre o poeta irlandês Yeats, orientada pelo renomado Paul de Man. A construção da professora Spivak diferencia o falar por, do representar alguém, mostrando-nos como a representação política e simbólica envolve recursos complexos de linguagem.

"Sua crítica [de Spivak], de base marxista, pós-estruturalista e marcadamente desconstrucionista, frequentemente se alia a posturas teóricas que abordam o feminismo contemporâneo, o pós-colonialismo e, mais recentemente, as teorias do multiculturalismo e da globalização.“ ALMEIDA, Sandra Regina Goulart (UFMG – tradutora)

Essas propostas partem do Caderno 25 dos Q. di Carcieri de Gramsci, um dos poucos com título, que recebe clara denominação de; “Às margens da História: História dos Grupos Sociais Subalternos”. Há uma importante menção nos estudos da professora Spivak, a 11ª Tese sobre Feuerbach de Karl Marx; “Os filósofos até então pretenderam interpretar o mundo, hoje é mais importante modifica-lo.” Portanto, seu intento aparece em princípio como pensar a teoria crítica como uma prática intervencionista, engajada e contestatória. O livro; “Pode o Subalterno falar?”, assume um caráter  dialógico dos atos de escuta e fala, uma espécie complexa de “...reprodução de sua submissão à ideologia dominante.” Num comentário sobre um texto clássico do Derrida; A Política da Tradução, SPIVAK menciona a dificuldade de “fazer falar o texto de outrem, um processo contínuo de adiamentos, aproximações e sobretudo negociações.” Numa poderosa analogia com os procedimentos de plano, projeto e gestão do objeto a longo prazo, afinal os arquitetos operam materializando desejos de outrem. SPIVAK diferencia o Falar pelo Outro, da distinção clássica entre assumir o lugar do outro (falar por) e representar o outro (performance). Afinal, o “Sujeito subalterno é irredutivelmente heterogêneo..., nenhum ato de resistência pode ocorrer em nome do subalterno sem que esse ato esteja imbricado no discurso hegemônico.”

“Por "complexo de vira-lata" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima.” Nelson Rodrigues

No Brasil, a presença dessa vertente também se manifesta de forma articulada, tendo os gramscianos brasileiros grande expressividade no pensamento internacional. Há uma grande diversidade de gramscianos, começando por Carlos Nelson Coutinho (1943-2012), tradutor dos Quaderni di Carceri e formulador de um dos mais importantes artigos para a esquerda brasileira; “A democracia como valor universal” no final dos anos 70, que se afastava das formas de conquista violenta do poder, e é fortemente influenciado pelas posturas do PCI e do euro comunismo de então de Enrico Berlinger. O Leandro Konder (1936-2014) filósofo e professor da UFF e da PUC-Rio, escreveu a “Questão da Ideologia”, no qual percorre a abordagem de uma série de pensadores sobre a estruturação da compreensão do real, e a dissimulada presença ideológica. Luiz Werneck Vianna (1938-), sociólogo e professor da Puc-Rio escreveu a “Revolução Passiva, iberismo e americanismo” no Brasil, analisando a transformação da sociedade brasileira de escravista e agrário exportadora, em competitiva, urbano e industrial, numa transição acomodada e articulada de forma autoritária entre as elites apenas por cima, e sem envolvimento popular. E, por último, Marcos del Roio (1954- ) professor da UNESP no campus de Marília SP, organizou o livro Gramsci, Periferia e Subalternidade de 2017, e escreveu Gramsci e Emancipação do Subalterno 2018, destacando a identidade sarda do filósofo italiano, e seu combate ao positivismo. É também presidente da International Gramsci Society Brasil , e defende a tese de que o movimento operário no Brasil era americanista, no seu pragmatismo. DEL ROIO 2017, crítica a segmentação da ordenação do ensino público no mundo, que enfatiza aulas técnicas para os trabalhadores, enquanto o aprendizado humanista era destinado a burguesia e pequena burguesia. De um lado atividades mecânicas e pragmáticas e de outro a preparação para a administração e gerência pública. Em claras aproximações com o pensamento de Paulo Freire, auto-educação e liberdade; escola de direção e administração do processo fabril, transmissão de uma cultura operacional próxima e já acumulada, mas ainda subalterna, para buscar sua superação. Estamos, afinal diante de uma pedagogia da auto superação, um aprendizado desenvolvido por Gramsci na sua experiência com o jornal de Turim, A Ordem Nova.

“A escola organizada pelo L´Ordine Nuovo começou a funcionar em fins de 1920, quando o movimento dos conselhos de fábrica começava já a declinar, vítima dos ataques convergentes do Estado.... não tinha a intensão de preparar os trabalhadores para um mundo a eles estranho. Pelo contrário, a ideia era reforçar o princípio da solidariedade...A ideia de que o educador se deixa educar..., para a autogestão da produção e para a administração pública, entendida como auto-governo.” ROIO 2018 página121

O que nos leva a refletir sobre a linguagem humana, sua interação com o mundo real, sobre o trabalho humano e sua capacidade de representar o agente realizador. A linguagem de certa forma surge do distanciamento entre homem e natureza, afastando-o das coisas, tornando possível a nomeação delas. Enquanto, os animais vivem imersos na natureza, o homem cria um mundo artificial. A cidade e a arquitetura são os frutos da artificialização do mundo pelo homem. Emergem para nossa consciência três partes da experiência humana; O REAL: modo indicativo (o que existe), O ÉTICO: o modo imperativo (o que deveria existir), O POSSÍVEL: o modo subjuntivo (o que poderia existir). Nessas três possiblidades de abordagem do real, a humanidade desenvolve sua percepção do que existe, e imagina-se como indutor ou dedutor do que existe. Na sua interação com os objetos, produzidos por ele mesmo reflete que os artefatos não agem, mas paradoxalmente muitas vezes determinam nossas ações. As coisas definem como devem viver os indivíduos aos quais elas deveriam servir. Inversão entre sujeito e objeto, entre meio e fim, gerando a alienação. Expressão e mímese são faces do mesmo processo: toda expressão é uma mimese do sujeito, e toda mimese é uma expressão do objeto.

“Todas as artes expõe a relação fundamental entre homem e mundo – a relação de inerência: o sujeito é um momento do objeto. Mas enquanto a arquitetura expõe essa relação de um ponto de vista objetivo (o mundo contém o homem), as demais artes a expõe de um ponto de vista subjetivo (o homem está contido no mundo).” PULS 2006

O que também nos traz a reflexão de ARGAN, sobre a dimensão crítica do projeto; “Não se projeta nunca para, mas sempre contra alguém ou alguma coisa”. O que não significa projetar para si mesmo, mas imaginar e engendrar um outro mundo, que nasce da espacialidade, mas aponta para novos arranjos societários inexistentes e inesperados. É claro, que o planejamento e a projetação podem servir ao pensamento conservador, como aliás serviram historicamente no Brasil, para um alinhamento exclusivista e elitista. Toda classe dominante precisa atender parcialmente os interesses de algumas classes dominadas e desatender os interesses de outras. A obra é um discurso no qual um sujeito coletivo pede ou exige que o outro assuma uma posição que lhe seja favorável. O primeiro apela a um interlocutor, método dialógico, buscando persuadi-lo da justeza da obra representada no plano ou no projeto. O planejamento e a projetação não são apenas atividades científicas, mas também presumem ações artísticas, aonde o que se pretende é uma adequação completa ao contexto, aonde não há apenas a objetivação do espaço, mas o seu ordenamento sensível. A arte não é nem universal nem singular, ela é necessariamente particular, mostrando-nos como naquele momento foi possível se alcançar uma síntese reveladora. Segundo, o juízo um ente será considerado belo se agradar a muitos indivíduos em diferentes gerações e tempos, servindo ao mesmo tempo como Contemplação e Objetividade do processo de construção do humano. Na arquitetura e no urbanismo, as diferenciações tradicionais entre o Juízo do gosto puro e o Juízo do gosto aplicado estão misturados, determinando a indivisibilidade entre a Contemplação e a Objetividade. Tanto no planejamento, como na projetação o processo se encontra aberto, pois invariavelmente, ao se iniciar dispara a definição do que será, deixando seus participantes diante de perplexidades. Há um constante alcance de Conflitos eternos e Consensos episódicos, que se sucedem, mostrando-nos a natureza diversa da condição humana, em seus vários aspectos e conhecimentos.

“A obra não manifesta apenas a consciência da classe de origem (produtora), mas também a da classe de destino (consumidora)” PULS 2006

Mas não podemos imaginar, e nos deixar envolver pela crença iluminista de progressão contínua e unidirecionada das realizações humanas, uma crença cega no progresso tecnológico e cientificista, que nos trouxe a uma face perversa da modernidade. Os totalitarismos e a imposição científica da tecnocracia foram definitivamente abalados por um livro de 1948 de Max Hockheimer e Theodor Adorno, A Dialética do Esclarecimento, fragmentos filosóficos. Nele a pretensão ocidental e eurocêntrica de mostrar se como o núcleo duro da civilização foi desmascarada pelos dois filósofos da Escola de Frankfurt, asilados da Alemanha na Califórnia, pela ditadura de Hitler. A Alemanha, o país com maior grau de alfabetização na Europa e com a maior população universitária havia sido envolvida pela barbárie nazista, desembocando na unidirecionalidade ansiosa da técnica, desprezando a diversidade. Adorno e Hockheimer retrocedem ao mito de Ulisses ao atravessar o Mar de Sereias, nos relatos da Odisséia, resistindo ao seu canto amarrado ao mastro da embarcação, obrigando seus marinheiros a vedar seus ouvidos. É a metáfora da fruição e contemplação exclusiva da arte pela classe dirigente, condenando as categorias braçais dos marinheiros ao obscurantismo, levando o mundo em direção ao totalitarismo, que tem origem "naquela auto afirmação unitária". A pretensão ocidental de ser a representação única da civilização humana era desbancada pelos dois filósofos da Escola de Frankfurt, desiludidos com o movimento do Iluminismo. 

"Cantar a ira de Aquiles e as aventuras de Ulisses já é uma estilização nostálgica daquilo que não se deixa mais cantar, e o herói das aventuras revela-se precisamente como o protótipo do indivíduo burguês, cujo conceito tem origem naquela auto afirmação unitária que encontra seu modelo mais antigo no herói errante." ADORNO e HORKHEIMER 1985 página53

A partir desse ponto, a aula enveredou por mapear o desenvolvimento da Epistemologia do Projeto, desde o século XIX, com a emergência das cidades industriais até a nossa contemporaneidade com a emergência da acessibilidade das massas a informação e a educação. A partir de autores como; August Welby Northmore Pugin (1834-1875), John Ruskin (1819-1900), e William Morris (1834-1896) mostra-se como além da nostalgia pelo medievo, esses arquitetos buscavam a reconstrção do artesão de obra, como figura central no canteiro. Esses autores enfatizavam a primazia da esfera pública na construção do ambiente humano, afastando-se de um fazer personalista e demiúrgico, celebrando um saber compartilhado, que deve ser reforçado perante as ameaças da produção em massa, anônima, sem qualidade e atributos. Wiliam Morris, que era socialista assinalava a necessidade de construir um ambiente colaborativo e didático nos canteiros de obra, como um esforço civilizatório; “Não podemos nos furtar da arquitetura, uma vez que fazemos parte da civilização.” Não se imaginava apenas a colaboração dos especialistas na execução da obra, mas se pensava também em trazer à participação os usuários, com suas demandas e desejos. Há uma crítica moral à sociedade, uma denúncia romântica da arte eclética e acadêmica, da desumanização do maquinismo e do empobrecimento do espaço e do território na era industrial. Novo discurso social da arquitetura ligado a ampliação solidária e civilizatória do “Comum” e distinguindo duas maneiras de abordar o desenho; uma formal-compositiva e outra ético-política. Na verdade, esses autores são fundadores de uma tradição anti maquinista, culturalista e humanista, que vincula a concepção do espaço e a arte a ordenação social e alcance da cidadania. Ultrapassando o século XIX e chegando até nós por autores mais contemporâneos como; Patrick W. Geddes, Lewis Munford, Jane Jacobs, Bernard Rudofsky, Christopher Alexander e Carlos Nelson dos Santos. Há aqui a recuperação da arquitetura vernácula, da auto construção e dos argumentos ecológicos ligados a formação do ambiente humano, que se ergue a partir da solidariedade entre os agentes e atores da cidade.

Na verdade, a aula se fecha com a afirmação e celebração do "complexo de vira latas" de Nelson Rodrigues, como uma expressão sintonizada com o slogan do Congresso UIA2021Rio; "Todos os Mundos; Um só Mundo; Arquitetura 21" no sua celebração da diversidade cultural do planeta. Sem dúvida, há um valor imaterial na cultura brasileira, que nós não damos conta, afinal; não existe um Brasil puro sangue, não existe um povo brasileiro, mas existe uma idéia de Brasil. Desde cedo somos acostumados à diversidade, somos na verdade mineiros, paulistas, cariocas, paraibanos, baianos, pernambucanos, paraenses, índios, negros, japoneses, etc... Somos localistas e, muitas vezes como em Minas Gerais somos na verdade da Zona da Mata, do Triângulo, do Sul, do Centro ou do Jequitinhonha.  Talvez a nossa constante auto ironia, o nosso complexo de vira latas seja o valor imaterial maior da cultura brasileira. Uma cultura cosmopolita, pois está sempre interessada em ouvir o outro. Falta-lhe se colocar numa posição de potência de outra ordem, não mais capitalista, racista, patrimonialista, ou colonialista. O Brasil precisa acordar do cansaço da verticalização de suas instituições, quer se transformar numa diversidade horizontal, igualmente empoderada. O Plano e o Projeto desempenham papel fundamental nesse novo Brasil.


BIBLIOGRAFIA:

ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max - Dialética do Esclarecimento, fragmentos filosóficos - Editora Jorge Zahar Rio de janeiro 1985

ALBERTI, Leo Baptista - De arquitetura, a arte de construir: tratado de arquitetura e urbanismo - Editora Hedra São Paulo 2012

ARRIGHI, Giovanni - O Longo século XX: dinheiro, poder e as origens do nosso tempo - Editora Unesp São Paulo 1996

BRANDÃO, Carlos Antonio Leite - Os modos do discurso na teoria da arquitetura - disponível em www.arq.ufmg.br/ia/teoria.html 2006

ENGELS, Friedrich - Sobre a questão da Habitação - Editora Boitempo São Paulo 2015

GRAMSCI, Antonio - Cadernos do Cárcere - Civilização Brasileira Rio de Janeiro 2001

HABERMAS, Jürgen - Arquitetura Moderna e Pós Moderna - Revista Novos Estudos do CEBRAE setembro de 1987

HOBSBAWN, Eric - Era dos Extremos, o breve século XX, 1914-1991 - Editora Companhia das Letras São Paulo 1995

PIKETI, Thomas - Capital e Ideologia - Editora Intrínseca Rio de Janeiro 2020

PULS, Maurício - Arquitetura e Filosofia - Editora Anna Blume São Paulo 2006

ROIO, Marco del - Gramsci e Emancipação do Subalterno - Editôra UNESP São Paulo 2018

SANTOS, Boaventura de Souza - O futuro começa agora, da pandemia à utopia - Editora Boitempo, São Paulo 2021

SPIVAK, Gayatri Chakravorti - Pode o Subalterno falar? - Editora UFMG Belo Horizonte 2010

TAFURI, Manfredo - Teorias e História da Arquitetura - Editorial Presença Lisboa 1981

sábado, 22 de maio de 2021

Apontamentos da aula 1 Arquitetura, Cidade, Filosofia e os eixos temáticos do Congresso UIA 2021 Rio

 

Um dos slides da 1a Aula: Arquitetura, Cidade, Filosofia
e os eixos do Congresso UIA2021Rio

A aula se inicia com a problematização do que seria o conceito de filosofia da práxis, uma ideia que aponta para operacionalização dos debates filosóficos no sentido de construir um módus operandi cotidiano, que estruture nosso comportamento no dia a dia. Uma colocação cara ao marxismo, de uma maneira geral, que tem como um de seus pressupostos a identificação do agente do pensamento, o ser pensante, como uma forma de mapear a gênese de seu pensar e de suas ações. A contextualização das origens sociais do pensar, identificado com um ator e agente desvenda os interesses, os objetivos, e uma questão fundamental; a representatividade do pensamento. Há aqui, a presença de uma filosofia do sujeito, ou a crença de que a existência de qualquer agente, quando auto problematizada pode desembocar numa filosofia. Nessa presença, se percebe uma gênese romântica, típica do século XIX na Alemanha, que é superada pelas concepções materialistas e realistas inerentes ao marxismo, que na ânsia de identificar os sujeitos do pensamento, também ansiava na sua construção identitária. Uma questão cara a Antônio Gramsci, que sempre estruturou seu pensar, a partir de fatos e ações corriqueiras, presentes no cotidiano de todos, e que, ao serem problematizados levavam diferentes agentes a expressar um interesse de um grupo específico. 

“...a filosofia da práxis, por um lado, destrói e ridiculariza todos os conceitos estaticamente unitários, por outro mantém um comportamento sempre crítico, e nunca dogmático, um comportamento em certo sentido romântico, mas de um romantismo que, conscientemente, procura seu caráter clássico. Portanto, como filosofia que se sabe expressão ideológica, de uma sociedade atravessada de contrastes... O filósofo atual pode afirmar isto, sem poder ir mais além; de fato, ele não pode se evadir do terreno atual das contradições, não pode afirmar, a não ser genericamente, um mundo sem contradições, sem com isso criar imediatamente uma utopia.” GRAMSCI 2001 página101

Nesse quadrante do pensamento é importante contextualizar nossa condição brasileira no mundo; um país colonizado por uma metrópole europeia, que se integra a economia capitalista global sem fazer valer seus interesses, uma vez, que não se auto identifica. Uma inserção periférica e tardia no sistema capitalista geral, que determina uma certa minoridade do pensar, como uma condição continuada das ideias fora do lugar. Uma certa condição subalterna governa as formas de pensar, atuar e produzir no Brasil, fruto de uma mentalidade que não encontra potência nas tradições indígenas ou africanas, ou mesmo brancas na interação inovadora, que sua espacialidade produziu. O famoso e folclórico, “complexo de vira-latas”, do nosso dramaturgo maior, Nélson Rodrigues, um espectro que ronda a alma do Brasil. Dentro desse tema, reforçando-o e sublinhando-o, confronta-se o arraigado patrimonialismo de nossas classes dirigentes, que enfatizado pelo Iberismo, acaba se constituindo como a absolutização do Direito de Propriedade da terra. Uma condição, que possui suas origens no colonialismo, no patriarcalismo e no próprio capitalismo luso-brasileiro, e que representam uma carga pesada para nossas cidades. Uma condição que parecia ser encerrada com a Constituição Federal de 1988, e com o Estatuto da Cidade de 2001, que vinculavam fortemente o Direito de Propriedade ao cumprimento de seu papel social. Mas, que até agora encontraram pouca aplicabilidade no território efetivo das cidades brasileiras, aonde permanece a absolutização do Direito de Propriedade, como um valor cercado numa fortaleza inexpugnável. Essa condição, de "complexo de vira-latas" conferem as pesquisas e aos mapeamentos em todos os campos do saber necessários a nossa auto-contrução, como identidade, como especificidade, um caráter minoritário e inacabado.

“Mapear a teoria da arquitetura brasileira exige esforço de muitos e prazo dilatado. Contudo, é trabalho imprescindível. Não temos, por exemplo, o registro dos textos sobre arquitetura e urbanismo aqui presentes no período colonial e isto nos leva a entender precariamente a gênese de nossas produções, as tradições estilísticas que aqui vingaram, os desvios e novidades apresentados os interlocutores com e contra os quais dialogaram nossos primeiros arquitetos e urbanistas. A originalidade e vigor do barroco mineiro, entre outros casos, poderia ser melhor aferida se desdobradas suas aparentes semelhanças formais com o barroco tardio ibérico e da Europa setentrional de modo a permitir reconhececer as fontes textuais e figurativas que compuseram acervos das mais diversas ordens: públicos, privados, eclesiásticos, corporativos, oficiais ou oficionais.” BRANDÃO 2006 página1

Sem dúvida nenhuma o território de construção desse mapa da teoria é a universidade brasileira, em toda sua diversidade de diferentes localidades e expressões, aonde diariamente se pensa e se problematiza a construção do país. Um projeto de longa construção assentado de forma inter institucional, nos diversos campos do conhecimento, que irá identificando as críticas e celebrações das particularidades inerentes ao Brasil. Uma proposição que envolva a própria diversidade da constituição dessa especificidade, em que se materializa no país, e que precisa não reproduzir internamente as determinações de nossa inércia e condição colonial, deixando-se manifestar as diferentes expressões, esforçando-se para deixar fluir as múltiplas narrativas. As cidades, o habitar, e a ocupação do território, como campo específico da Arquitetura e do Urbanismo, de uma maneira geral estão inseridas nesse contexto, e precisam compartilhar suas descobertas e intuições para atingir a maioridade da reflexão, seja ela crítica ou celebratória. Daí o tema do Congresso UIA2021Rio, que proclama; Todos os Mundos; Um só Mundo; Arquitetura 21, uma proposta de convivência com a diversidade de modos de fazer e pensar. A reunião de um aparente paradoxo, que reúne a esfera local e global, num esforço próximo ao resgate da cosmologia dos povos originários do Brasil, que resistem na sua forma de operação a aceitar a lógica da competição com o mundo natural.

“A ideia de nós humanos, nos descolarmos da terra, vivendo numa abstração civilizatória, é absurda...A civilização chamava aquela gente de bárbaros e imprimiu uma guerra sem fim contra eles, com o objetivo de transformá-los em civilizados que poderiam integrar o clube da humanidade. Muitas dessas pessoas não são indivíduos, mas pessoas coletivas, células que conseguem transmitir através do tempo suas visões sobre o mundo... Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada da humanidade homogênea na qual há muito tempo o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania... Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar...” KRENAK, Ailton, citado em BOAVENTURA 2021 página77

Esse tema maior é detalhado por quatro grandes eixos; Fragilidades e Desigualdades, Diversidade e Mistura, Mudanças e Emergências, Transitoriedade e Fluxos, que pretendem atrair reflexões sobre o espaço construído pelo homem, e suas interações com nosso planeta. Há neles, uma intencional transversalidade com relação aos temas tradicionais da ocupação do território pelo homem; a região, a cidade, o edifício, a natureza. Uma ideia de que nosso tempo contemporâneo está perpassado por uma premissa inicial, no campo da arquitetura e do urbanismo, a da promoção da equidade nas diversas partes da região, da cidade, do edifício e da natureza. O complexo engendramento de um sistema econômico capitalista, que vem de forma constante promovendo a inequidade de benefícios, benfeitorias e recursos, incrementando a péssima divisão de renda. O neoliberalismo que inicia sua expansão no final dos anos setenta e início dos anos oitenta, com a demolição do Estado de Bem Estar Social, que até então imperava nos países centrais do capitalismo. Apesar das constantes e repetidas crises - 2008; EUA e Espanha, 2015; Brasil, 2020 Pandemia de Covid-19 -, o sistema continua celebrando a desregulamentação e a liberação do empresariamento dos mundos da vida, num movimento de auto suicídio. Daí a importância do desenvolvimento histórico do século XX, que foi problematizado na aula, a partir de dois livros; A era dos Extremos, o breve século XX 1914-1991 de Eric Hobsbaun 1995 e, por outro lado, O Longo século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo de Giovanni Arrighi 1996. Uma curta duração, acelerada e curta, que entre a Primeira Guerra, a Revolução Bolchevique na Rússia e a Queda do Muro de Berlim em 1991 representariam um embate típico do nosso tempo. De um lado; a ordenação centralizada da economia pelo Estado, e por outro, a desregulamentação e o empresariamento dos mundos da vida. Num outro aspecto, é a longa duração ou a grande transformação, que desde as Cidades Estados italianas no século XIV, até a hegemonia dos EUA no século XX apresenta uma grande repetição de ciclos, que se sucedem a partir de uma lógica de ampliação do sistema capitalista, que se repete de forma recorrente.

"Todas as vezes que os processos de acumulação de capital em escala mundial, tal como instituídos numa dada época, atingiram seus limites, seguiram-se longos peíodos de luta interestatal, durante os quais o Estado que controlava ou passou a controlar as fontes mais abundantes de excedentes de capital tendeu também a adquirir a capacidade organizacional necessária para promover, organizar  e regular uma nova fase de expansão capitalista, de escala e alcance maior que a anterior." ARRIGHI, 1996 página14

Na construção de ARRIGHI 1996, o século XX inicia-se com a descoberta da contabilidade cruzada nas Cidades Estados Italianas (1418) e ainda não terminou, mas chega ao final de uma expansão geográfica contínua do capitalismo pelo mundo, que usa como forma central de auto organização; a monetização ou financeirização dos mundos da vida. Para o autor italiano, ARRIGHI 1996, a capacidade de se reinventar do capitalismo vem dessa constante ampliação por novas regiões do mundo, aonde sempre se repete com três movimentos. O primeiro momento, seria a implantação numa região nova a partir de uma sinergia produtiva, baseada na violência da acumulação primitiva, aonde a presença dessa concentração produtiva atrai agentes em busca de lucro. O segundo momento, é o desenvolvimento produtivo articulando mercadorias, indústria, agricultura num centro virtuoso, que também inicia e anuncia o declínio constante dos lucros. E, o terceiro momento, a desterritorialização do capital, abandono dos investimentos fixos - fábricas, mão de obra e culturas - pelo declínio contínuo dos lucros, fazendo os endinheirados não mais se dedicar a produção, mas a migrar para a especulação financeira desenfreada. Nesse raciocínio, ao contrário da visão das ciências sociais e dos meios de comunicação oligopolizados, que consideram o capitalismo e a economia de mercado como contrapostos ao poder do Estado, encara-se a emergência e a expansão do capitalismo como absolutamente dependente do poder estatal. Aqui, há a ideia de que as camadas endinheiradas possuem total independência para continuamente deslocar seus investimentos das atividades econômicas que enfrentam declínio dos lucros, para as que apresentam maior retorno, daí sua tendência de continuamente voltar à especulação.

"Portanto, a fórmula geral do capital apresentada por Marx (DMD´) pode ser interpretada como retratando não apenas a lógica dos investimentos capitalistas individuais, mas também um padrão reiterado do capitalismo histórico como sistema mundial. O aspecto central desse padrão é a alternância de épocas de expansão material (fases DM de acumulação de capital) com fases de renascimento e expansão financeira (fases MD´)... Nossa investigação é, essencialmente, uma análise comparativa dos sucessivos ciclos sistêmicos de acumulação, numa tentativa de identificar (1) os padrões de recorrência e evolução, que se reproduzem na atual fase de expansão financeira e reestruturação sistêmica, e (2) as anomalias da atual fase de expansão financeira, que podem levar a um rompimento com padrões anteriores de recorrência e evolução. Serão identificados quatro ciclos sistêmicos de acumulação, cada qual caracterizado por uma unidade fundamental do agente e estrutura primários dos processos de acumulação de capital em escala mundial: um ciclo genovês, do século XV ao início do século XVII; um ciclo holandês, do fima do século XVI até decorrida a maior parte do século XVIII; um ciclo britânico, da segunda metade do século XVIII até o início do século XX; e um ciclo norte-americano, iniciado no fim do século XIX e que prossegue na atual fase de expansão financeira." ARRIGHI 1996 página 6

Nesse contexto, um tema - A Pandemia de Covid-19 - soterrou todos os outros, monopolizando as atenções de todos, e impondo uma agenda de reflexão em torno da questão da privatização das iniciativas científicas de combate ao vírus, como vacinas e medicamentos. De um lado persistia uma visão de empresariamento como impulsionador de iniciativas inovadoras, como na manchete do jornal O Globo de 3 de maio de 2021; “Startups Medicalcare apresentam grande valorização”. Enquanto, de outro, várias vozes relativizavam essa celebração da propriedade privada no campo do desenvolvimento científico, afirmando que as conquistas precisavam ser vistas como conquistas de todos. Um dos sintomas dessa dicotomia está expresso nas atitude da Organização Mundial de Saúde (OMS), que em 2017 criou a Coligação para a Inovação na Preparação para Epidemias (CEPI), seu slogan é “Novas vacinas para um mundo mais seguro”. A OMS tem uma lista de patógenos para os quais deseja desenvolver vacinas, mas as empresas farmacêuticas tem demonstrado pouco interesse, uma vez que os surtos têm ocorrido na África e na Ásia. Em outra frente, as economias emergentes, Índia, Brasil e África do Sul já haviam criado na década de 90 um instrumento denominado; "licenças compulsórias", o nosso medicamento genérico. Pelo qual, produzem medicamentos sem a necessidade de pagamento de pesadas taxas de patente ou de transferência de tecnologias, garantindo preços mais acessíveis e comprovando mesmo com a supressão desse mecanismo, a lucratividade produtiva. Mas, o CEO da Bayer Marijn Dekker descreveu o mecanismo de licença compulsória como; “essencialmente roubo”, pois o desenvolvimento visava populações com capacidade maior de solvência. Seu posicionamento, claramente distinguia de forma pejorativa populações da Índia e do Ocidente: “Não desenvolvemos esse produto para o mercado indiano, vamos ser honestos. Quero dizer desenvolvemos esse produto para doentes ocidentais que o podem comprar.” Essa ética claramente se chocava com o argumento inarredável, de que na Pandemia de Covid-19 não adianta ter apenas populações ocidentais protegidas, enquanto indianos e pauperizados seguem contaminados. Os argumentos pró mercado foram abalados, levando nos a questionar a própria existência de uma instituição espectral, que na grande mídia aparece como algum cidadão concreto;

“...as necessidades e aspirações dos mercados, esse megacidadão informe e monstruoso que nunca ninguém viu, nem tocou, nem cheirou, um cidadão estranho que só tem direitos e nenhum dever.” SANTOS, 2021 página 17

Os relatos são sempre sobre a necessidade de se cercar conhecimentos socialmente desenvolvidos, que significam a salvação da saúde da humanidade, e devem portanto ser franqueados a todos. A empresa Cepheid Inc produz testes de detecção da Covid-19 e recebeu da poderosa agência dos EUA, a FDA autorização de uso de emergência. O teste usa as máquinas e os artefatos do HIV e tuberculose, e fornece resultados em menos de uma hora, o preço determinado pela empresa  é de US$19,80 para cada aplicação. No entanto, a organização Médicos sem Fronteiras declarou que tal preço era incompatível com economias nas quais as pessoas vivem com menos de US$2,00 por dia, argumentando que sem testagem, o vôo de combate ao Covid-19 seria cego. Ao mesmo tempo, nem sempre os órgãos com status científico estão livres dos interesses da Big Farma, a mesma FDA dos EUA concedeu o status de medicamento órfão para o antiviral da empresa Gilead Sciences, o Rendesivir, categoria reservada a medicação para o tratamento de doenças raras. Que terão baixa procura? No entanto, o Rendesivir tem se revelado um medicamento chave no tratamento do Covid-19, o oposto de uma doença rara? A lógica de que medicamentos altamente especiais são caros, demandam investimentos em pesquisas vultosas e portanto possuem altos preços acaba por não se sustentar, diante das verdadeiras evidências da ciência. A mesma lógica desmorona, quando aplicada as dinâmicas capitalistas da cidade contemporânea, aonde o habitar um direito humano passou a ser governado pelos argumentos neoliberais da produção e do lucro.

“[...] Nesta grande síntese desaparecem as contradições que caracterizam a modernização capitalista justamente no âmbito da planificação urbana — contradições entre, por um lado, as necessidades de um mundo da vida formado, e, por outro, os imperativos cujos meios são o dinheiro e o poder. Acrescenta-se a isto um mal-entendido lingüístico, ou melhor, um erro categorial. Denominamos "funcionais" os meios apropriados a um fim. É neste sentido que se entende o funcionalismo quando pretende construir edificações conforme os fins dos usuários. Contudo, dizemos também "funcionais" as decisões que estabilizam uma conexão anônima de resultados de ações, sem que a existência deste sistema fosse desejada ou sequer considerada por qualquer um dos participantes. O que neste sentido é funcional do ponto de vista sistêmico para a economia e a administração — por exemplo, o adensamento do centro da cidade com aumento de preço dos terrenos e elevação da tributação — comprova-se como "nada funcional" do ponto de vista do mundo da vida tanto dos habitantes quanto da vizinhança. Os problemas do planejamento urbano não são primariamente de organização espacial, mas de insuficiência gestionária, de represamento e orientação de imperativos sistêmicos anônimos, que interferem nos mundos da vida citadinos e ameaçam-lhes consumir a substância urbana. [...]” 
HABERMAS 1987 página122

Na verdade, a grande metrópole, e dentro dela o tema da habitação no mundo contemporâneo se tornaram abstrações governadas por um mundo incompreensível e abstrato, que cada vez mais aderiu valor a dimensões locacionais-comparativas, que tendem a um exclusivismo doentio. Os sentidos da fruição urbana e arquitetônica que estavam profundamente vinculados ao uso concreto, cada vez mais se aproximam a um valor abstrato e ostentatório. A grande metrópole, como o Rio de Janeiro, ou São Paulo passam cada vez mais a serem territórios inabarcáveis, abstratos e distantes da compreensão dos sentidos imediatos, portanto manipuláveis por especuladores e aproveitadores. Uma funcionalidade de outra espécie, não mais vinculada aos mundos da vida, do uso, da festa  e do desfrute, mas exclusivamente dominados pela troca, pelo ganho e pela competição.

“Enquanto um mundo abarcável, a cidade pôde ser arquitetonicamente formada e representada para os sentidos. As funções sociais da vida urbana, política e econômica, privada e pública, da representação cultural e eclesiástica, do trabalho, do morar, da recreação e da festa, podiam ser traduzidas em fins, em funções de utilização temporalmente regulada dos espaços configurados. Contudo, no século XIX ao mais tardar, a cidade torna-se ponto de intersecção de relações funcionais de outra espécie. Ela é inserida em sistemas abstratos que, enquanto tais, não podem mais alcançar uma presença esteticamente apreensível” HABERMAS 1987 página123

Mas diante desse mundo regulado por interesses monetizados e financeirizados, que cada vez mais se expandem, como se comporta o ato de planejar e projetar, que se confunde com uma aspiração humana básica. A previsibilidade. Uma pretensão humana, que a modernidade acreditou ser generalizável para todos, mas que em nosso mundo se encontra bloqueada, governada por argumentos exclusivistas, comprada como tudo. Afinal, essa era a pretensão da modernidade, seja renascentista ou iluminista, a construção de um mundo programável e melhor para as futuras gerações, capaz de libertar não apenas uma parte, mas toda a humanidade. Para tal, os homens planejam e projetam.  Em sua essência, o processo de plano ou projeto não é programável, ao se iniciar nenhum dos participantes sabe aonde chegará. Nesse sentido, Plano e Projeto atuam como uma forma de abarcar o real, uma maneira prospectiva de conhecê-lo, como crítica operativa do real, conforme a síntese de TAFURI 1981. Planejamento e Projetação como o conjunto de eleições, decisões, operações e valorações críticas necessárias para a transformação ou intervenção da realidade existente acabam disparando desejos e ordenações inesperadas e inusitadas. Na verdade, o conceito de planejamento e projetação não deve ser restringido, apenas a ciência e ao conhecimento, ou ao sensível e ao artístico, mas a um lugar entre os dois. Eles estão carregados daquilo que ALBERTI 2012 definiu como concinitas ou adequação ao contexto existente, num encaixe sintético único, que dá voz ao lugar para ser algo Comum e Humano. A previsibilidade é uma dimensão humana, que precisa ser generalizada a todos. Mas, a previsibilidade também está contaminada por uma dimensão fáustica, uma vontade de efetiva materialização e realização. Afinal, a crítica se soma o operativo, para realizar sobre o real.

“O artista tem só um meio para representar a obra em que trabalha; fazê-la.” Merleau Ponty

“Assim, pode dizer-se que a crítica operativa projeta a história passada projetando-a em direção ao futuro: a sua verificabilidade não reside em abstrações de princípio, mas avalia-se, de caso a caso, com os resultados que obtém.” TAFURI 1981

Mas e as cidades, esse artefato inventado pelo homem, que reúne diferentes expectativas, objetivos, plano e projetos, numa sinergia única, um ponto do território, capaz de aproximar diversas subjetividades, que compartilham tecnologias. A cidade é fruto de um desígnio, de um desejo, de um projeto e de um plano, ela não é fruto da natureza, da seleção natural, mas algo inventado pelo homem com o sentido de impulsionar sua reprodução. Ela não é fruto do acaso. Quando os sociólogos apontam que a cidade é o espelho da sociedade, apontam na verdade, que a cidade brasileira, injusta e desigual, representa materialmente nossa sociedade. As cidades são interessantes situações espaciais, ocupam apenas 2% do território seco do planeta, no entanto são responsáveis por 85% do impacto ambiental, tais como poluição dos mananciais e emissão de gás carbônico. Pensar sobre a forma de produção e reprodução da cidade contemporânea é minimizar esse impacto ambiental. Mas qual projeto de cidade que estamos atualmente reproduzindo? Atualmente o personagem exemplar do cidadão contemporâneo bem sucedido mora numa casa unifamiliar perto de um idílio da natureza, com um número de carros na garagem igual ao de membros familiares. Um modelo insustentável, baseado nas premissas de uma sociedade competitiva, dominada pela hegemonia financeira, por práticas coloniais e pelo patriarcado mais tóxico. É urgente oferecer um contra projeto para essa cidade, capaz de representar um sociedade colaborativa, baseada na solidariedade, que se volte para a produção compartilhada, que abra espaço para as diferentes vozes, promovendo a diversidade humana. Espacialmente, os quatro pontos de reversão da inércia de reprodução da atual cidade, com a marcação de suas palavras chaves, seriam:

  • Cidade compacta e densa, que inicie o combate a dispersão interminável da cidade brasileira
  • Cidade baseada na convivência da diversidade de classes, que combata a tendência de gerar guetos da cidade brasileira
  • Cidade com uma mobilidade ampliada, que combata a exclusão determinada a partir da ausência ou tarifação cara do transporte público da cidade brasileira
  • Cidade que se aproxime dos conjuntos naturais de forma didática, a partir de uma aproximação positiva entre vida urbana e natural.
A partir desse ponto, a aula procurou demonstrar, usando a cidade do Rio de Janeiro como exemplo, como nosso planejamento e projetação de cidades atende uma minoria de interesses localizados, desconsiderando a grande maioria de sua população. A história da cidade, sua disposição e configuração física atual nos fornecem claros indícios da particularização do sistema de planejamento e projetação da cidade. Foram utilizados, como exemplos: a) o serviço de trens urbanos da cidade, b) o arco metropolitano, c) os corredores de BRTs novos, d) o plano inicial e o efetivamente realizado do Metrô carioca, e) a rede hidroviária da cidade metropolitana, f) o sistema de despoluição da Baía de Guanabara, g) a história da ocupação da Baixada de Jacarepaguá e Barra da Tijuca, h) o Porto Maravilha, e i) as favelas cariocas. Todos, sem exceção demonstram a vertente de classe das operações, mostrando-nos como foram capturados de forma a tender beneficiar uma minoria, deixando a grande maioria a margem do desenvolvimento da cidade.

BIBLIOGRAFIA:

ALBERTI, Leo Baptista - De arquitetura, a arte de construir: tratado de arquitetura e urbanismo - Editora Hedra São Paulo 2012

ARRIGHI, Giovanni - O Longo século XX: dinheiro, poder e as origens do nosso tempo - Editora Unesp São Paulo 1996

BRANDÃO, Carlos Antonio Leite - Os modos do discurso na teoria da arquitetura - disponível em www.arq.ufmg.br/ia/teoria.html 2006

GRAMSCI, Antonio - Cadernos do Cárcere - Civilização Brasileira Rio de Janeiro 2001

HABERMAS, Jürgen - Arquitetura Moderna e Pós Moderna - Revista Novos Estudos do CEBRAE setembro de 1987

HOBSBAWN, Eric - Era dos Extremos, o breve século XX, 1914-1991 - Editora Companhia das Letras São Paulo 1995

SANTOS, Boaventura de Souza - O futuro começa agora, da pandemia à utopia - Editora Boitempo, São Paulo 2021

TAFURI, Manfredo - Teorias e História da Arquitetura - Editorial Presença Lisboa 1981





quinta-feira, 6 de maio de 2021

A projetação, especulação e a atual hegemonia financeira


A projetação e a previsibilidade são atividades em crise em nossa sociedade contemporânea, pela progressiva expansão da lógica financeira e neoliberal nos comportamentos cotidianos das pessoas, instituições, governos e empresas. Entende-se aqui, projetação como um conjunto de eleições, operações e valorações críticas necessárias para a transformação de uma realidade espacial que envolvem; informação conhecimento e criatividade. A projetação se insere dentro de um âmbito muito maior, que é a previsibilidade, que na verdade é uma pretensão humana, que com a modernidade se expandiu grandemente, mas ainda não se generalizou. Nesse contexto, emergem de forma contínua, e cada vez mais instável, demandas; comportamentais, políticas, administrativas, sociais e empresariais, que muitas vezes multiplicam a escala da projetação, em dimensões da ordem; do global, do território, da cidade e do local. Há uma contínua geração de perplexidades, que interrompem ou apresentam descontinuidades do processo de projetação, que deve ser contínuo, ou o fragmentam entre criação/ imaginação e conhecimento/ informação. Aqui, continuidade e integridade no processo de projetação envolve o desenvolvimento de um pensamento específico, que observa e tem consciência de "seu sentido", do processo em sua totalidade, desde as demandas iniciais, até a materialização das transformações e sua adequação ou apropriação ao cotidiano de uso e operação(1). Essa continuidade e integridade, não significa uma ação estabelecida e comportada, mas insegura e disposta a disparar a emergência de demandas e desejos inesperados. O processo de projeto, quando sincero, não é algo aprisionado a uma sucessão comportada de etapas, mas que reconhece a sua imensa possibilidade de fazer disparar arranjos utópicos inesperados. Quando iniciado, os agentes envolvidos na verdadeira projetação não sabem, aonde irão chegar. No processo invariavelmente, as dimensões comportamentais, políticas, administrativas, sociais e empresariais são questionadas e problematizadas pelo exercício de pensar uma outra configuração espacial. Na projetação, nenhuma comprovação espacial ou organizacional é aceita sem questionamentos da própria operação da vida, apesar da pretensa objetivação interessada do Poder, que invariavelmente defende a manutenção do módus operandi existente.

"Desde este ponto de vista, o primeiro objeto da investigação arquitetônica da projetação parece consistir em encontrar e abarcar os instrumentos adequados para resolver os problemas da cidade, integrando-os com a realidade territorial, e isto com o fim de configurar, para a cidade e o território, critérios específicos de desenvolvimento em termos formais." SAMONÁ 1971 página 165 Tradução minha do espanhol 


O "sentido" do processo é o conceito central, sua intenção é a transformação espacial da habitação da cidade e do território, mas comandada e conscientemente direcionada por quem? Pelo Poder instituído? Pelo empresariamento das vidas? Ou, pelas populações atingidas? A projetação é uma forma de interpretar o real ou o contexto, não de uma forma descritiva, mas prescritiva, se arriscando num ato criativo, elegendo tecnologias, funcionalidades e figurações expressivas. Um processo complexo que envolve conhecimento, criatividade e operacionalidade, todos competindo para a concepção de uma transformação espacial e territorial, de uma obra. Uma forma de conhecimento, que está em algum lugar nos confins entre a teoria e a operatividade, entre o canônico e o empírico, entre a história e a antihistória, que avalia a eleição de âmbitos possíveis de novos problemas, novos juízos de valores, e novas abordagens, num tênue limite entre pragmatismo e utopia. Um momento de cognição coletiva, envolvendo projetista e demandante, que é também ciência e criação, que faz um inquérito aos usos e costumes, às tecnologias adotadas, e às demandas figurativas desejadas ou construídas, que impulsiona os participantes para um lugar, aonde o que está em jogo é a construção do mundo. Há uma clara identificação de arte e ciência, impulsionada e composta por uma fase indutiva, baseada no apriori universal dos cânones, mas também dedutiva, baseada na observação analítica dos fatos e da natureza, tal como operam no contexto. Talvez daí decorra, a inerente pretensão dos arquitetos e urbanistas, que lidam com o "gigantismo da utopia", e da necessidade de uma constante vigilância escalar, que modula a esfera da intervenção local, vizinhança, urbana, metropolitana ou territorial. 

"A realização física da metrópole contemporânea (do território) em quantidade e qualidade requer novos meios de intervenção. Se trata de interpretar ao individual para permitir-lhe fazer se partícipe de organizações renovadas, mas sem seguir a falsa lógica dos gigantesco parâmetros através dos quais a organização e a complexidade dos fenômenos impelem a criação de espaços cada vez mais amplos até levar-nos - a nós arquitetos - à utopia do gigantismo. A qual, na impossibilidade de ser controlada com os instrumentos usuais e de expressar unitariamente este complexo de relações dinâmicas é - sempre por nós arquitetos - , graduada em sucessivos modos e momentos de intervenção na cidade e no território." SAMONÁ 1971 página 163, Tradução minha do espanhol

Rem Koolhaas já mencionou a trágica condenação dos arquitetos no mundo contemporâneo, em seu caminhar bipolar, entre a pretensão absoluta e a mais profunda depressão, exatamente pela megalomania, que todo esse processo perpassa. Há na contemporaneidade, dominada pelos comportamentos financeiros, uma contínua ampliação e conspiração da abstração do valor não desfrutado no presente, mas de olho num incremento prometido, localizado no futuro. A renda fundiária na grande metrópole contemporânea, em si mesmo abstrata, no sentido de que seu território não é apreensível, também fomenta flutuações que transferem rendas da população em geral, para poucos proprietários. Pois, as motivações subjetivo-psicológicas convergentes e aleatórias se movimentam de forma completamente desproporcional em relação aos fatores objetivos, sendo sempre dominada por aqueles que desfrutam da propriedade em estoque ou monopólio. Os projetistas e toda a sociedade parecem capturados pela lógica financeira, que claramente desfruta de claras analogias com a especulação e o empreendedorismo imobiliário. Não mais uma civilização do consumo ou do estilo, mas um lugar no qual os dois são intercambiáveis, assim como o sublime do modernismo e o belo do pós-modernismo nos trazem a impressão do Fim da História (2). As novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), também desempenham um papel ampliador da abstração no campo da projetação, uma vez que distanciaram os profissionais da realização efetiva das obras. A representação e o desenho tenderam a se autonomizar como campo semi-autônomo. A produção de uma realidade virtual, não construída passou a desempenhar nos cursos de Arquitetura e Urbanismo uma sedução irresistível para as novas gerações, absolutizando a representação da construção, transformando desenhos em restituições-simulacros tão convincentes, quanto fotos do real.

"Em relação ao dinheiro e à terra, bem, esses são precisamente os fenômenos que nos preocupam aqui e que nos permitirão testar a utilidade do conceito de mediação e aquela ideia relacionada a ela, o nível ou campo semi-autônomo. É importante compreender antes de tudo que nem o dinheiro nem a terra podem em si se constituir tal nível, pois ambos são claramente elementos funcionais no interior daquele sistema ou subsistema mais fundamental, que é o mercado e a economia. " JAMESON 2001 página176

Todo esse mundo, aonde conhecimento e tecnologia sofreram desenvolvimentos expressivos nos levam  a uma dialética de identidade e diferença, ou permanência e mudança, aonde fica a impressão de que algo mudou para tudo permanecer o mesmo. De um lado, uma crença conservadora na afirmação de uma nova sociedade pós- industrial, baseada numa ordem social na qual as dinâmicas clássicas do capitalismo foram substituídas pela primazia da ciência e da tecnologia, explicando a suposta mudança da produção para uma economia de serviço (3). Ou a nova economia verde, que promete um alinhamento ético do capitalismo, que domesticaria a imensa vontade de lucro no curto prazo por uma consciência do vir-a-ser das futuras gerações. Essas versões investem fortemente no fim das ideologias e proclamam uma dimensão técnica e positivista do desenvolvimento, que na verdade era fruto de um planejamento estruturado, típico do keynesianismo, que então, já entrava em declínio. De outro lado, há uma visão inovadora, mais progressista e pouco notada e citada, mas de grande perspicácia na interpretação do nosso tempo, mostrando a partir de argumentos históricos convincentes, a recorrência cíclica do sistema capitalista. A visão aqui mencionada é o livro de ARRIGHI, Giovanni, já comentado aqui no blog, O Longo Século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo de 1994, com tradução no Brasil em 1996. A argumentação de ARRIGHI 1996 era de que havia uma recorrência histórica no próprio capital, em três estágios repetidos, que se travestiam de falsos arranques ou recomeços, em escala cada vez mais ampla no planeta. O primeiro estágio era a implantação, numa região nova tendo sempre uma ligação com o comércio e a circulação de mercadorias, e usando da violência e brutalidade típicas da acumulação primitiva. O segundo estágio era o desenvolvimento produtivo da região, articulando manufaturas, indústrias e agricultura num centro de desenvolvimento, que por uma lógica de saturação dos mercados anunciava o declínio dos lucros. Por fim, o terceiro estágio que era a desterritorialização do capital, que para se defender das taxas declinantes do lucro, migrava abandonando suas fábricas e força de trabalho treinada para formas especulativas do mercado do dinheiro ou da terra, que garantiam aventuras mais lucrativas descasadas da produção real. Há nessa construção, uma clara referência ao historiador Fernand Braudel da Escola dos Anais de França, que pontuava na sua história do Mediterrâneo; "o estágio da expansão financeira é sempre um sinal de outono".  Era esse o traço estável e recorrente do desenvolvimento do capital, desde as Cidades Estado italianas, passeando na história das finanças por bases territoriais como; a Itália das Cidades Estados, as cidades da Liga Hanseática no século XVI e XVII, a Inglaterra do século XVIII e XIX, até se instalar nos EUA no final do século XIX. A mudança da potência hegemônica das altas finanças era sempre anunciada pela emergência de atividades especulativas incontroladas, pela própria natureza do dinheiro.

"Parece-me que esses trechos podem ser lidos como uma reafirmação da fórmula geral de Karl Marx para o capital: D-M-D´. O capital-dinheiro (D) significa liquidez, flexibilidade e liberdade de escolha. O capital-mercadoria (M) é o capital investido numa dada combinação de insumo-produto, visando ao lucro; portanto, significa concretude, rigidez e  um estreitamento ou fechamento das opções. (D´) representa a ampliação da liquidez, da flexibilidade e da liberdade de escolha... A fórmula também nos diz que, quando os agentes capitalistas não têm expectativa de aumentar sua própria liberdade de escolha, ou quando essa expectativa  é sistematicamente frustrada, o capital tende a retornar a formas mais flexíveis de investimento - acima de tudo, à sua forma monetária. Em outras palavras, os agentes capitalistas passam a "preferir" a liquidez, e uma parcela incomumente grande de seus recursos tende a permanecer sob forma líquida." ARRIGHI 1996 página5

Daí a confusão recorrente nos tempos atuais entre qualidade da projetação e gentrificação, ou a restrição do plano e do projeto ao âmbito processual, negando sua condição de produto, que de certa forma angustia o campo desde a década de setenta. O falso dualismo entre processo e produto perpassa a construção de ALEXANDER, Christopher, tanto em Urbanismo y Participación, como em El Modo intemporal de construir e El linguagen de patterns. Livros e reflexões, do final da década de setenta, que além da nostálgica celebração do longo tempo de estratificação das tecnologias na Idade Média, traziam para a superfície a resistência da projetação como tarefas essencialmente de longa maturação temporal. Longa maturação incompatível com a ansiosa pressa e ansiedade do capital financeiro e especulativo contemporâneo, que passou a realizar de forma quase momentânea lucros exorbitantes e abstratos, aonde o conjunto da sociedade é submetida ao regime de responsabilidade fiscal, enquanto o capital é cada vez mais especulativo. A doutrina da responsabilidade fiscal é incontornável e inquestionável no Brasil, que se recusa a problematizá-la, repetindo ad infinito que o Estado não pode gastar mais do que arrecada. Na verdade, essa doutrina não encontra nos meios de comunicação de massa no país, nenhuma voz que relativize e problematize sua absolutização, como um dogma incontornável, uma afirmação peremptória. Um claro sintoma da hegemonia financeira, que nos governa, que se recusa a reconhecer alternativas de ordenação social, fora da competição e da precificação de tudo, que nega as formas de operação colaborativas e solidárias.

"... as necessidades e aspirações dos mercados, esse megacidadão informe e monstruoso que nunca ninguém viu nem tocou nem cheirou, um cidadão estranho que só tem direitos e nenhuma dever. É como se a luz que ele projeta nos cegasse" SANTOS 2021 página28

Três parâmetros balizam a lógica neoliberal, que vem se expandindo no nosso mundo contemporâneo, desde o final da década de setenta e início da de oitenta, sem enfrentar uma contraposição clara e objetiva, que lhe confronte uma outra racionalidade mais convincente. Em primeiro lugar, ao contrário do que apontavam os pensadores neo clássicos, o mercado não é um acontecimento natural, mas algo construído e regulado pelo Estado, que lhe confere uma estrutura legal. Em segundo lugar, a própria essência da ordem mercado não é a troca, mas o empresariamento de suas ações. E, por último a expansão contínua da universalização da norma da concorrência entre os indivíduos, gerando o que alguns autores denominam do sujeito-empresa, capaz de se lançar na disputa acirrada contra tudo e todos para obter seu sustento. Eles estão centrados na expansão, generalização e absolutização da concorrência como um valor em si, em todos os extratos dos mundos da vida, em seu cotidiano e em suas práticas diárias. Tudo isso acaba determinando uma confusão interessada entre esferas privadas e públicas, embaralhando os espaços de suas atuações, colocando em dúvida os campos do direito e da produtividade, do ético, da projetação e da previsibilidade e do econômico. Afinal, saúde, educação e habitação são direitos que todos devem ter acesso, ou mercadorias produzidas segundo uma ética concorrencial, sem qualquer resquício de solidariedade? A predominância do direito público sobre o direito privado, que parecia ser um consenso no mundo do pós-guerra entre 1945 e meados da década de setenta, entra em crise com a doutrinação neoliberal, que inverte sobrepondo o direito privado a tudo.

"Da construção do mercado à concorrência como norma dessa construção, da concorrência como norma dos agentes econômicos à concorrência como norma da construção do Estado e de sua ação e, por fim, da concorrência como norma do Estado-empresa à concorrência como norma da conduta do sujeito-empresa, essas são as etapas pelas quais se realiza a extensão da racionalidade mercantil a todas as esferas da existência humana e que fazem da razão neoliberal uma verdadeira razão-mundo." DARDOT e LAVAL 2016 Pág.379

Essa absolutização da concorrência ao final é seletiva deixando de fora uma série de custos não contabilizados; custos sociais e ecológicos que passam a ser cobertos pelo conjunto da sociedade, que arca com eles. A expressão de Thatcher, de que não há refeição grátis, envolve uma redução simplificadora na definição capitalista do valor, que restringe sua concepção às posses lucrativas e a esfera de responsabilidade da propriedade. Afinal, os custos sociais e éticos de deixarmos pessoas morrer por inanição é imenso. Foi William Kapp, amigo de Karl Polanyi do livro A Grande Transformação; as origens da nossa época, que escreveu ainda em 1950, The Social Costs of Private Enterprise, uma crítica ecológica do desenvolvimento capitalista. No qual, lembrava que a definição capitalista de valor dependia de uma divisão fundamental entre o que seria ou não levado em conta, que ao se restringir a esfera de responsabilidade da propriedade privada, só contabiliza os custos econômicos, deixando de fora os sociais e ecológicos. Foi a implantação do novo sistema industrial, no início do século XIX, que deixou fora da contabilidade da produção ítens como; transporte, moradia, educação, aposentadoria, enterro, doença cuidado com os órfãos dos trabalhadores, impactos no meio ambiente, no ar, na água, etc... De certa forma, a história política do século XIX e XX pode ser contada pelo conjunto de externalidades sociais e ambientais, que a empresa suprimiu de sua contabilidade, e que grupos variados tentaram fazer a sua reinserção.

"O capital se beneficia de um conjunto de externalidades positivas das quais financia apenas uma fração. Além disso, em seu ambiente social e natural, ele se liberta de um conjunto de negatividades cujo fardo é suportado por outros, humanos e não humanos. É somente sob a condição oculta dessa dupla isenção dos custos reais da produção que ele pode se apresentar como economicamente beneficiário. O capitalismo é uma economia do despejamento." CHAMAYOU 2020 página 272 

A própria mercadoria, que tanto fascinou Karl Marx, e que foi utilizada como ponto de partida para sua reflexão maior era considerada como; valor de uso, valor de troca e fruto do trabalho humano, mas acima de tudo como potencialidade e contradição da forma-mercadoria. As mercadorias são diversificadas, podem ser trigo ou lã, mas existe um princípio de equivalência entre duas coisas distintas que as homogeniza numa base, que pode ser sal, concha ou dólar. O dinheiro é uma invenção muito antiga, que segundo POLANYI 2000, nas sociedades pré capitalistas era mais usado para transações extra comunidade e raramente intra comunidade. Para POLANYI 2000, o mercado inicia uma grande expansão ampliando sua cobertura sobre várias esferas, no entanto os campos do trabalho, da terra, e do dinheiro sempre foram pontos aonde a contradição se manifestava de forma mais intensa, afinal esses três ramos não eram mercadorias efetivamente produzidas, mas fortes acasos as atravessavam. O trabalho, que envolve a qualificação pessoal de cada um de nós era fruto de uma vivência complexa, que abarcava experiência muito diversificadas de diferentes atores e agentes, difíceis de serem homogeneizadas pela moeda. A terra, a superfície do planeta acumulava benfeitorias em que mais acasos que o próprio trabalho, que tornavam sua valorização ainda mais diferenciada com relação a sua realidade locacional, que também era perpassada por acasos, e não por algo produzido. Por último, o dinheiro, um meio que se transforma num fim em si mesmo, sua transformação em mercadoria agrega a ela valores absolutamente simbólicos ligados ao exercício do poder. Afinal, a maior procura contemporânea pelo dólar espelha apenas a dominação militar e econômica dos EUA? Ou sua vitalidade econômica, agora não mais produtiva, mas cada vez mais especulativa? Um desses universos possui forte conexão com o campo da projetação da habitação, do urbano e do território, por razões óbvias; a terra. Um outro, o trabalho, e particularmente por suas especificidades, o trabalho de projetação, é muito difícil de ser dimensionado e portanto valorado, uma vez que a processualidade é aberta, e invariavelmente dispara demandas e desejos de ordem; comportamentais, políticas, administrativas, sociais e empresariais inesperados no processo.

Na verdade, a forma como o neo liberalismo se expande pelo mundo, conquistando mentalidades e espíritos é sempre usando de tecnologia política contra o mundo do trabalho, a auto-gestão, a natureza, e por fim a própria política. Mas, diante desse cenário, qual o programa arquitetônico, urbanístico e territorial do nosso tempo contemporâneo, capaz de colocar essas formas de operação em dúvida ou suspensão? A produção de equidade. Habitação, Cidade e Território precisam passar a ter como premissa de desenho e formulação, a distribuição de recursos e oportunidades de forma mais equânime, sem as tendências concentradoras, as quais o capitalismo nos condicionou. A previsibilidade e a projetação efetiva e contínuamente ampliada para todos, podem colocar em cheque o neoliberalismo dominante.

NOTAS:

(1) O ideal de etapas conscientemente controladas do projeto envolve; elaboração do programa, concepção geral e ideia preliminar, anteprojeto, projeto executivo, orçamentação e detalhamento, acompanhamento de obra e acompanhamento da ocupação e da operação.

(2) A menção aqui é a FUKUYAMA, Francis - O fim da História - Editôra Rocco Rio de Janeiro 1992. e a um ensaio brilhante de JAMESON denominado - Fim da Arte ou Fim da História - no livro A cultura do Dinheiro, no qual o autor volta a Hegel e ao seu absoluto, que proclamava o fim da arte, ou sua diluição na filosofia. O que me remete a necessidade impositiva do capitalismo da necessidade de expansão geográfica de seus domínios para reforçar sua existência.

(3) Os livros recorrentemente citados dessa visão conservadora são de BELL, Daniel (1919 - 2011), respectivamente; O fim da ideologia (1960), O Advento da sociedade pós-industrial (1973) e As contradições culturais do capitalismo (1976), que de certa forma anunciam a era Reagan e Thatcher ao final da década de setenta e início dos oitenta.

BIBLIOGRAFIA:

CHAMAYOU, Grégoire - A sociedade ingovernável; uma genealogia do liberalismo autoritário - Ubu Editora São Paulo 2020

DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian - A nova razão do mundo, ensaio sobre a sociedade neoliberal - Editora Boitempo São Paulo 2016

JAMESON, Frederic - A cultura do Dinheiro, nos ensaios Cultura e Capital Financeiro e O tijolo e o balão: arquitetura, idealismo e especulação imobiliária - Editora Vozes Petrópolis 2001

KOOLHAAS, Rem - Delirious of New York - The Monacelli Press New York 1994

KAPP, Karl William - The Social Costs of the Business Enterprise - Cambridge Harvard University Press 1950

POLANYI, Karl - A grande transformação; as origens do nossa época - Elsevier Rio de Janeiro 2000

SAMONÁ, Alberto et all - Los Problemas de proyectación para la ciudad, las escalas de proyectación y unidad de método - Editoria Gustavo Gilli Barcelona 1971

SANTOS, Boaventura de Souza - O futuro começa agora - Editora Boitempo São Paulo 2021

TAFURI, Manfredo, et all - Curso de teoria de la proyectación arquitectónica - Editorial Gustavo Gilli 1971