quinta-feira, 7 de março de 2024

Antropoceno ou Capitaloceno, conceitos em disputa, ampliação ou redução das racionalidades


Afinal, vivemos uma nova era geológica denominada Antropoceno, na qual os impactos da atividade humana generalizada sobre o planeta atingem a dimensão de uma Era Geológica, fazendo-nos superar o Holosceno, decretando uma crise ecológica nunca vista. Ou, estamos diante do Capitaloceno, uma era na qual a produtividade capitalista, o extrativismo desenfreado, a expansão do imperialismo, a ampliação da mercantilização da vida atinge várias áreas do planeta, enfim uma ordenação social específica, que determina uma crise ecológica sem precedentes. As duas versões vem sendo debatidas, e trazem cada uma, um alinhamento ideológico, um critério de juízo sobre a Crise Ambiental que vivenciamos; o Antropoceno aparece como uma construção das ciências naturais, enquanto o Capitaloceno emerge de uma visão das ciências sociais. As duas conceituações não são excludentes, mas reforçam posicionamentos e alinhamentos ideológicos; o Antropoceno responsabiliza a humanidade como um todo pelo que alcançamos, enquanto o Capitaloceno responsabiliza os beneficiários de um sistema econômico, social e político, que emerge num determinado tempo histórico. As mudanças climáticas, a extinção de espécies animais, o advento de biomas naturais modificados e desequilibrados são frutos de um longo processo de autonomização da espécie humana em relação a natureza? Ou são produzidas por um desenvolvimento predatório, com excesso de desperdícios e não absorção de dejetos e subprodutos de um processo produtivo exponencial, cujo os beneficiários se restringem a uma minoria da humanidade? Há aqueles que se voltam contra a razão ocidental, eurocêntrica que a partir do século XV, se lançou a conquista do mundo, impondo uma lógica linear redutora, instrumental, incapaz de perceber a complexidade da vida. A modernidade, que frutificou no Renascimento, reconstruindo a ontologia da cultura greco romana que impulsiona uma racionalidade que se restringe a alcançar fins redutores e limitados. Que racionalidade é essa? A racionalidade é a mesma para toda a humanidade? Para Max Weber existiam dois tipos de racionalidades; uma mais completa ou integral era a ação racional valorativa, e outra mais limitada e restrita era a ação racional instrumental, o autor vinculava essa segunda racionalidade instrumental à modernidade. Há também em Jürgen Habermas, uma distinção importante entre razão instrumental e razão intersubjetiva; a primeira é dominada pela restrição individual ou interesses de grupos restritos e sua objetivação é ditada pela manipulação de meios adequados a fins. Enquanto, a segunda racionalidade contempla ou negocia com o coletivo e objetiva-se por valorizações morais e éticas, onde a gestão dos recursos disponíveis é problematizada e os benefícios são ampliados socialmente. Habermas ao contrário de Weber, se mantinha como defensor da racionalidade renascentista e iluminista da modernidade, partindo da ideia de Kant do universalismo da razão(1), além das identidades, e impulsionada pelo auto esclarecimento.

"Não podemos excluir de antemão que o neoconservadorismo ou o anarquismo de inspiração estética está apenas tentando mais uma vez, em nome de uma despedida da modernidade, rebelar-se contra ela. Pode ser que estejam simplesmente encobrindo com o pós esclarecimento sua cumplicidade com uma venerável tradição do contra-esclarecimento." HABERMAS, 2002, pág.8

Mas além, do Capitaloceno como expressão questionadora do Antropoceno, também surgiram outras expressões que além do Capitalismo localizam o problema em outras ordenações sociais como; o Faloceno (machismo), o Racismoceno (racismo), o Plantatioceno (colonialismo), ou ainda Necroceno (necrofilia). Enfim, o valor de todos esses termos emerge do mérito de identificar no conjunto da humanidade, os principais responsáveis ou beneficiários de uma racionalidade redutora instrumental de meios-fins, procurando distinguir em consequência, os principais prejudicados, a sub humanidade deixada ao largo pelo mesmo sistema produtivo. É claro as correspondências entre os impactos da crise climática e as atividades antrópicas principalmente as que decorrem da concentração de Gases do Efeito Estufa (GEE) na atmosfera, majoritariamente provenientes da queima de combustíveis fósseis, incrementados pelos processos históricos de industrialização decorrem ao final da distribuição desequilibrada de oportunidades fomentada pelo capitalismo, pelo machismo patriarcal, pelo racismo, pelo colonialismo, pelo imperialismo. No entanto, é necessário manter um certo cosmopolitismo da consciência humana geral, identificando que a maioria dos seres humanos são despossuídos e foram colocados à margem como uma sub espécie, que não desfrutou e segue sem desfrutar dos benefícios de uma ordenação sócio-cultural excludente, o capitalismo. É importante nesse contexto, a identificação do neoliberalismo hegemonizado pela globalização capitalista como promotor e responsável central dos riscos ambientais que corremos, de forma absolutamente diferenciada, pois são as populações do Sul Global que mais serão atingidas. O sistema de operação do neoliberalismo naturalizou, que um número pequeno de interesses particulares controle a maior parte da produção e reprodução da vida social no planeta, apurando benefícios individuais particulares, de maneira mais explícita a partir dos governos de Thatcher (1979) e Reagan (1981). Tudo isso fica atestado de forma clara pelo enorme crescimento da pobreza, da desigualdade social e econômica nas sociedades e entre nações, fruto da expansão capitalista, do imperialismo e da hegemonia financeira-produtivista. Enfim, é necessário reconhecer que as políticas de afirmação identitária não tem conseguido fazer frente, oposição consistente, ou construir alternativas ao módus operandi do neoliberalismo. A partir da perspectiva crítica da história é preciso começar a reconhecer que o mundo do trabalho - sindicatos, associativismo de categorias, partidos trabalhistas e ligas camponesas - eram mais eficientes na contenção dos interesses predatórios dessa minoria endinheirada, do que as políticas identitárias atuais. Será preciso combinar, com grande sensibilidade, uma convergência geral de revalorização do mundo do trabalho e das formas variadas de reprodução da vida, questionadoras do acúmulo desregrado de renda de uma minoria, e ao mesmo tempo, frutificar as lutas identitárias específicas dos subalternos do mundo. Uma busca aparentemente paradoxal, entre a homogenização dos despossuídos do mundo e a heterogenização das identidades variadas do mundo.

"0 neoliberalismo é o paradigma econômico e político que define o nosso tempo. Ele consiste em um conjunto de políticas e processos que permitem um número relativamente pequeno de interesses particulares controlar a maior parte possível da vida social com o objetivo de maximizar seus beneficios individuais. Inicialmente associado a Reagan e Thatcher, o neoliberalismo é a principal tendência da politica e da economia globais nas últimas duas décadas, seguida, além, da direita, por partidos politicos de centro e por boa parte da esquerda tradicional [...]. As consequências econômicas dessas políticas têm sido as mesmas em todos os lugares e são exatamente as que se poderia esperar: um enorme crescimento da desigualdade econômica e social, um aumento marcante da pobreza absoluta entre as nações e povos mais atrasados do mundo, um meio ambiente global catastrófico, uma economia global  instável e uma bonança sem precedente para os ricos. Diante desses fatos, os defensores da ordem neoliberal nos garantem que a prosperidade chegará inevitavelmente até as camadas mais amplas da população - desde que ninguém se interponha a política neoliberal que exacerba todos esses problemas!" CHOMSKY, 2002, p. 3.

A crença de que o modelo do neoliberalismo promoveria a distribuição de riqueza e um desenvolvimento mais equilibrado entre as nações, típica das décadas de 80 e 90, já se desfez pela recorrente emergência de crises financeiras, aumento da pobreza e da inequidade ao longo desse tempo. Mas, ainda nos confrontamos com agentes defensores dos paradigmas neoliberais, particularmente na grande imprensa, tais como; valorização da competição geradora de eficiência, a desregulamentação estatal do mercado, o fomento a iniciativa privada desvencilhada das externalidades, supervalorização do Mercado como reino da virtude, e subvalorização do Estado como reino da corrupção e da ineficiência. O sistema desconsidera de forma recorrente a manutenção das condições de vida, em nome de uma eficiência da competitividade, com a primazia da razão técnica, que não leva em conta as externalidades humanas ou ambientais. Será preciso superar o identitarismo branco e europeu, questionando a modernidade carregada de uma racionalidade redutora de meios e fins, rompendo com o colonialismo que dita verdades sem pensar e sentir os meios de produção e reprodução da vida. A própria compreensão da história da humanidade precisa ser ampliada, para envolver a todos da espécie, reconsiderando as relações entre centro e periferia. A clássica subdivisão entre História da Antiguidade Pré Clássica, Clássica, Idade Média e Modernidade, que carregam o eurocentrismo deve ser questionada. Apenas, no espaço do ocidente deve-se revalorizar as contribuições; Árabe para as ciências modernas e a própria preservação do Aristotelismo, a Epistemologia dos povos originários da América, com sua lógica cíclica centrada na reprodução da vida, e a Africana que rejeita o pathos da demolição e de não aceitação do outro e do diverso (2). A consideração reproduzida em compêndios de História da arte, arquitetura e urbanismo, que se apresenta como universal, mas que recalca o imenso período de 5 século e meio, que vai da Queda do Império Romano do Ocidente (476d. C.) até o século X (1.000d.C.) na Europa é um testemunho cabal da desconsideração com a expansão árabe no norte da África e na Península Ibérica, ocorrida nesse momento. Manifestações como a Alhambra em Granada, ou o Califado e a Mesquita de Córdoba são desconsiderados, por não pertencerem ao esquematismo colonizador da Europa hegemônica.

"O domínio epistemológico tem na razão instrumental sua fundamentação. A razão nessa perspectiva soberana, totalitária, tornou-se, no Ocidente, a racionalidade científica que, como modelo totalitário, nega o caráter racional de todas as outras formas de conhecimento que não tiverem como critério os princípios epistemológicos e regras metodológicas da epistemologia dominante. Funciona como um acontecimento apropriador, como diria Heidegger. Isso nos leva a crer que os processos de 
descolonização que se iniciaram, historicamente, como um processo de libertação das colônias formação de Estados-nacões independentes, hoje devem continuar com a libertação de uma colonização epistêmica que, se efetivada, abriria espaço para a concepção de outra razão, de outra racionalidade ou ainda de outras formas de operação humanas para produzir conhecimento científico e filosófico. A descolonização colocaria fim a um processo histórico de implantação de poder, ou ao menos o enfraqueceria." PIZA e LIMA 2023 pág.113

A modernidade carregada de colonialismo precisa ser superada, por uma modernidade sem colonialidades brancas, uma questão complexa, que não deve descambar para uma simplificação redutora, da mera desqualificação como um todo, da contribuição da Europa. A divisão pseudo científica da história "humana" em Idade Antiga (antecedente greco-romano), a Idade Média (preparatória ou crítica) e Idade Moderna (Renascimento Europeu) é uma ordenação ideológica redutora, que não corresponde a sua pretensão de ser "humana" ou universal. Uma parte dessa ordenação serve a reprodução da razão instrumental, com claras finalidades de reprodução do acúmulo do capital, do imperialismo e da concentração de renda. Há uma cruel lógica capitaneada pelo avanço tecnológico, que como assinalou Franz Hinkelammer opera como um bicicleta ergométrica, que independente da velocidade não sai do lugar. O ambiente no capitalismo globalizado e neoliberal transmite a impressão de mudança constante e inevitável, sem nada mudar, mantendo sempre a mesma catástrofe de exclusão e concentração de renda. O marco histórico das bombas de Hiroshima e Nagasaki em 1945, assinalam aquilo que alguns autores consideram como a ampliação da "natureza barata"(3) humana ou natural, quando se processa uma imensa expansão do capitalismo pelo mundo e da razão instrumental de meios e fins. A implantação de um raciocínio de guerra, afinal quanto custa a destruição da Amazônia? Segundo a racionalidade instrumental de meios e fins, apenas os custos da mão de obra, das serras elétricas, do transporte da madeira, e nada mais, pois a venda da madeira que consegue superar esses custos, se apresenta e mensura o lucro. Apenas, a partir daí, no segundo pós guerra (4), é que emerge a consciência dos limites dos recursos do planeta, da finitude da Terra, que apesar de já operar desde a exploração da prata em Potosí na Bolívia, ou do ouro em Minas Gerais no Brasil, nos séculos XVI e XVII, só alcançará nesse ponto a materialidade do estrago planetário, ou sua consciência. As consequências para o campo da arquitetura e do urbanismo são notórias e incontornáveis, pois fica claro a relação entre realidade e projeção, entre contexto e formulação do devir, entre terreno e projeto, entre cidade e plano, agora condicionada pelo "automatismo do mercado". Já não se fala mais em corrigir o mercado, em respeito a satisfação das necessidades humanas, na lógica neoliberal deve-se agora adaptar a "realidade" às imposições do mercado, como algo automático, insuperável e repetido ao infinito. Com isso, parece que estamos indo rapidamente em direção a um suicídio coletivo, dado por essas condições de operação pouco sustentáveis ambiental e socialmente. Afinal, o que será das próximas gerações? O esloveno Slavoj Zizek tem uma irônica e trágica colocação assinalando nossa corrente atitude suicida; 

"a nós nos parece muito mais fácil imaginar o fim do mundo do que uma pequena mudança do sistema político. A vida na terra possivelmente vai acabar, mas o capitalismo de algum modo continuará." DUAYER 2023 pág.89

NOTAS:

(1) Imanuel Kant escreveu em 1784 um opúsculo denominado "Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolta", no qual se contrapõe a ideia de "sujeitos singulares" e o "conjunto da espécie" para a determinação de uma "liberdade da vontade", que acaba por conformar as disposições naturais para o uso da razão na humanidade.

(2) As epistemologias decoloniais do Sul Global, fomentadas por autores como; Enrique Dussel, Juan José Bautista, Franz Hinkelammert, Henry Mora Jiménez e Achille Mbembe.

(3) Jason Moore se refere a "Cheap Natures" para se referir a forma de apropriação do colonialismo, que explora naturezas humanas e naturais na periferia do mundo de baixo custo, numa atitude predatória de segregação.

(4) O primeiro autor a se referir ao Antropoceno no início dos anos 2000 foi o prêmio Nobel de Química, Paul Crutzen, segundo MOREIRA e GARRIDO, 2024 pág140. Os mesmos autores fazem referência  a "Grande Aceleração", ocorrida após a década de 50, após as bombas atômicas como uma época de aceleração da industrialização e urbanização.

BIBLIOGRAFIA:

BAUTISTA, Juan José - Hacia la descolonización de la Ciencia Social Latinoamericana - La Paz, Rincón Ediciones, 2012

CHOMSKY, Noam - Como parar o relógio do Juízo Final? - São Paulo, Instituto do Conhecimento Liberta (ICL), 2023

DUAYER, Mario - Teoria Social, Verdade e Transformação: ensaios de crítica ontológica - Editora Boitempo, São Paulo 2023

__________, Noam - O lucro ou as pessoas - Rio de Janeiro, Bertrand Russel, 2002

DUSSEL, Enrique - 1492; el encobrimiento del otro - La Paz, Plural 1994

________, Enrique - Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão - Petrópolis, Editora Vozes, 2000

HINKELAMMERT, Franz e JIMÉNEZ, Henry Mora - Hacia una economia política para la vida - Costa Rica, San José, UNA Economía y Sociedad n.21 2005

MBEMBE, Achiles - Necropolítica: biopoder, soberania, Estado de exceção, política da morte - São Paulo,  N-1 Edições, 2016

MOREIRA, Danielle de Andrade e GARRIDO, Carolina de Figueiredo - Uma nova época: Antropoceno ou Capitaloceno? Contexto histórico e desafios contemporâneos da crise climática - São Paulo, ICL, 2023

PIZA, Suze e LIMA, Bruno Reikdal de - Racionalidade e economia no fim dos tempos - São Paulo, Instituto do Conhecimento Liberta, 2023

HABERMAS, Jürgen - O discurso filosófico da modernidade - São Paulo Martins Fontes 2002