terça-feira, 4 de outubro de 2016

Mais uma vez Jürgen Habermas em Para a reconstrução do Materialismo Histórico

Mais uma vez volto ao texto do filósofo alemão Jürgen Habermas, Para a reconstrução do Materialismo Histórico, uma das mais importantes reflexões do nosso tempo contemporâneo, por abordar a evolução social de nossos sistemas de interação, ou governos. No último texto, aqui mesmo nesse blog, no dia 16 de setembro de 2016, abordei o livro sobre o aspecto do didatismo contínuo que a experiência da interação humana traz para seus participantes. Os textos do livro são datados da década de setenta. num tempo no qual ainda não havia sido produzido o desmonte do estado de bem-estar social. pelo neo-liberalismo. Essa condição traz para os textos uma percepção generalizada de desenvolvimento positivo, que para Habermas significa a ampliação de formas de vida democráticas e de emancipação do indivíduo. Havia nos anos setenta, a percepção de ampliação das formas de regulação do mercado, e a inclusão social promovidas pelas formas de ordenação governamental, pelo menos no espaço da Europa, Japão e dos EUA.

"Com as fraquezas funcionais do mercado e os efeitos colaterais disfuncionais do mecanismo de mercado também desmorona a ideologia burguesa baseada na troca justa. Por outro lado, surge uma necessidade intensificada de legitimação: o aparelho do Estado, que agora não assegura mais apenas os pressupostos para a existência do processo de produção, mas toma a inciativa de intervir em tal processo, precisa ser legitimado nos domínios crescentes da intervenção estatal, sem que agora houvesse a possibilidade de recorrer à existência de tradições que foram soterradas e desgastadas no capitalismo concorrencial." HABERMAS, 2016 página431

Havia então um declínio do capitalismo concorrencial e uma forma de regulação das sociedades avançadas baseadas no fordismo, no domínio monopolista da economia, e no keynesianismo, que começou a desmoronar com a ascensão de Tatcher e Reagan no final dos anos setenta. Nesse contexto era fundamental a existência do Estado, regulando as interações humanas e arrecadando impostos para promoção do estado de bem-estar social. O reconhecimento, o acato das ordens, e as estruturas burocráticas do Estado eram reconhecidas e identificadas como ordenadores das interações humanas, e necessitavam ter legitimidade para operar. O livro, como já visto, está subdividido em quatro secções; a primeira Perspectivas filosóficas, seguida de Identidade, depois Evolução, e por último Legitimação, agrupando textos de diferentes motivações.

Agora, me concentro sobre a secção da Legitimação, um dos problemas mais agudos dos sistemas de governo representativos, pois medem a qualidade da relação entre governados e governantes, e que no Brasil dos últimos anos assume uma dimensão dramática. Ou metaforicamente, a capacidade de lobos se transmutarem em cordeiros, ou a delegação conferida a chacais para cuidar de rebanhos dóceis, ou ainda a variação entre passividade e ativismo de cidadãos e seus representantes.

A última eleição do ano de 2014 já apontava algumas fragilidades nesse quadro; a vitória do Partido dos Trabalhadores de Dilma Roussef foi por pequena margem e garantida por votos do Nordeste do país, o que soou para o eleitorado pré conceituoso do Sul/Sudeste, como fragilidade. Nossa história recente registra a manipulação, que os eleitores dessa região do país foram submetidos, notadamente durante a Ditadura Civil e Militar, elegendo a ARENA partido de apoio ao regime de exceção, que se aproveitava de uma certa minoridade do cidadão nos afastados grotões do país. Em nossa contemporaneidade de um Brasil urbanizado, arrisco a identificar os grotões alienados nos bolsões de pobreza de nossas cidades, grandes médias e pequenas, estejam elas no Amazonas, ou no São Paulo.

Mas o que me parece fundamental na reflexão de Habermas, sobre a legitimação é o seu reconhecimento de uma ordem política específica e escolhida que alcança a estabilidade na ordem de dominação. Segundo o autor, na tradição ocidental a legítima dominação foi difundida pelo império de Roma na antiguidade, e sofreu uma crise de legitimidade a partir de movimentos proféticos e messiânicos, típicos de sociedades tradicionais, como o da expansão do cristianismo primitivo, na Israel da época de Jesus. Na Idade Média européia revoltas de camponeses, artífices e comunidades urbanas aconteceram muitas vezes vinculadas a movimentos heréticos, como a seita panteísta de Irmãos e Irmãs do Espírito Santo em 1300 ao longo do Reno, ou os Franciscanos radicais do norte da Itália no século XIV. Invariavelmente, existem nesses movimentos a construção de uma identidade, que consolida uma legitimidade alternativa ou questionadora, que determina um nós da revolta, diferenciado de um eles da manutenção do status quo. Com a modernidade, que traz a dissolução do pensamento mítico, das figuras cosmológicas, religiosas e ontológicas do pensamento, a legitimidade passa a ser reflexiva, e constituída a partir da classe social;

"Não causa surpresa que as oposições de classes estejam na base dos diferentes fenômenos de deslegitimação; pois a organização estatal da sociedade é a condição mais importante de uma estrutura de classes no sentido de Marx...Se as legitimações convencem, se são críveis, é algo que certamente depende de motivos empíricos; mas esses motivos não se formam independentemente da força de justificação, a ser analisada de maneira formal das próprias legitimações... O que é aceito como razão que tem força para construir consenso e, com isso, formar a motivação, depende sempre do nível de justificação exigido." HABERMAS 2016, página387,388

Para Habermas, com a modernidade os processos identitários inerentes a legitimação deixam de ser narrativos e passam a ser argumentativos, podendo ser advindos de argumentações teóricas e práticas, mas sendo portanto decisivo que o nível de justificação se torne reflexivo. Na modernidade, com as teorias contratualistas de filósofos como Hobbes, Locke e Rousseau rompe-se com o estado de natureza ou o instinto, assumindo o contrato social, que institucionaliza a dominação justa ou reconhecida pela maioria. E, aqui o discurso se torna complexo, pois as democracias contemporâneas com a celebração da alteridade e da expressão individual fragmentaram o discurso identitário em tal ordem gerando tipologias tais como; democracias identitárias ou de conselhos. Habermas ainda menciona Schumpeter e sua redução da democracia a um método de escolha das elites, ou ainda os pragmáticos, ou os idealistas, ou os basistas. Todos na verdade se expõem a uma crítica justificada, uma vez que confundem a justificação da dominação, com a organização da dominação, eleição e operação, governo e governabilidade são distintos.

"Logo, podemos facilmente objetar o que Rousseau já sabia: que nunca existiu e também nunca existirá uma verdadeira democracia." HABERMAS 2016 página394

E, aqui voltamos a questão da democracia brasileira no seu estágio atual de legitimação, e sua forma de operar, aquilo que se convencionou chamar de presidencialismo de coalizão parlamentar, onde o presidente depende do Congresso. Os governos do PT não mudaram a matriz de funcionamento e de operação do presidencialismo de coalizão das gestões conservadoras anteriores, apesar de terem tido uma justificação reflexiva da dominação sem precedentes. Essa justificação reflexiva foi construída a partir da constatação de que era necessária a promoção de um país com maior equidade, onde se promovesse maior distribuição de renda. No entanto, a continuidade com a forma de operar dos governos anteriores, num país com baixo nível de transparência sobre as ações do governo, como; contratação de obras, implantação de projetos de infraestruturas sem suas pré figurações precisas, desenvolvimento de programas de promoção social, junto com a contínua erosão dessa mesma intransparência determinada pela ampliação dos mecanismos judiciais de controle, fizeram a exposição pública de práticas pouco republicanas dos governos do PT. Nossa crise política está aí localizada, e apesar de serem necessários ajustes, esses não significam o abandono de uma busca por uma sociedade com maior equidade de oportunidades, que me parece ficou sem um agente localizado no nosso espectro político, extremamente fragmentado.

A democracia pressupõe ajustes contínuos, e como afirma Rousseau ela talvez nunca seja alcançada em sua face verdadeira e completa, mas vale a pena buscar por ela.

BIBLIOGRAFIA:

HABERMAS, Jürgen - Para a reconstrução do Materialismo Histórico - Editora Unesp 2016 São Paulo