sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

A disciplina História e Teoria da Arquitetura 1 e a Antiguidade Pré Clássica Euro cêntrica


A região do crescente fértil, o entorno das dádivas pluviais
do Tigre, Eufrates e Nilo

Dentro do programa da disciplina História e Teoria da Arquitetura 1, o período da antiguidade pré clássica, antes da Grécia e de Roma, que envolve as civilizações do chamado crescente fértil. a Mesopotâmia e o Antigo Egito, são fundamentais para estabelecer os diversos padrões de ocupação do território do planeta pelo homem. A presença da generosidade do acontecimento dos cursos fluviais, como; o Tigre, o Eufrates e o Nilo são determinantes para o desenvolvimento de tecnologias de semeadura, desenvolvimento e colheita de alimentos, que permitiram a essas sociedades acumularem excedentes jamais observados de alimentos. A interação entre homem e natureza se manifesta a partir da observação dos ritmos dos corpos hídricos, dos níveis de insolação e da manipulação de sementes ou de espécies animais domesticadas agregadas como novos conhecimentos humanos, que impulsionam a obtenção de farta alimentação. A presença de abundância de água, altos índices de insolação e a manipulação humana diversificada de tecnologias de medição do tempo garantem uma produtividade inusitada, mostrando e fixando os tempos mais adequados de semear, desenvolver e colher, na agricultura, ou de pastorear, reproduzir e ordenhar na domesticação animal. Tecnologias de armazenamento, comércio e intercâmbio se estabelecem, determinando graus elevados de acessibilidade a confortos e comodidades, que acabam transmitindo a falsa impressão de distanciamento do homem para com o natural. O acúmulo de excedentes alimentares permite a essas sociedades o desenvolvimento de uma complexa divisão social do trabalho, impulsionando a sofisticação da vida e fazendo surgir; sacerdotes, escribas, arquitetos, poetas, músicos, etc. O registro escrito permite a contabilidade precisa das safras de grãos, das quantidades de proteína animal obtidas, da documentação do cotidiano imediato, essas sociedades desenvolvem uma iconografia particular que as identifica, impulsionando a sensação de pertencimento aos seus membros. Acaba por emergir uma forte identidade visual, que caracteriza essas sociedades com manifestações únicas de sensibilidade, que se expressam na forma das colunas de sustentação, das esculturas, da música, dos grafismo pictóricos.

“O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele se confronta com a matéria natural como com uma potência natural [Naturmacht]. A fim de se apropriar da matéria natural de uma forma útil para sua própria vida, ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporeidade: seus braços e pernas, cabeça e mãos... Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potências que nela jazem latentes e submete o jogo de suas forças a seu próprio domínio.”. (MARX, 201 página 326-327)

Uma outra questão também foi apresentada para os alunos, de forma a ampliar a compreensão do papel das cidades na ordenação das sociedades humanas, a Revolução Urbana, que ocorreu na história humana como um grande alavancador do intercâmbio social. As cidades superam a escala das Fátrias, lançando os humanos num intercâmbio muito além de seus clãs, determinando uma interação pessoal de culturas, costumes e crenças muito diferenciadas. Cada clã, família ou fátria muitas vezes dominava processos tecnológicos específicos, que a partir da sua intensa interação social propiciada pela cidade trará um grande impulso ao desenvolvimento humano. As cidades ampliam as transformações humanas sobre o território, criando além dos abrigos uma diversidade de tipologias construtivas, tais como; templos, locais de reunião, armazéns, muralhas, ruas, praças, poços e fontes. Há uma ampliação da artificialização da vida, pela arquitetura e o urbanismo, que passam a subverter os ciclos naturais do nosso planeta, construindo uma existência que tende a superar os condicionantes naturais; diferenciação entre dia e noite, amenização dos calores e frios intensos, proteção da chuva e das intempéries.

“Cada sociedade, a partir de um certo nível evolutivo, tem que possuir sua própria arquitetura. Uma sociedade sem pintura ou sem tragédia é perfeitamente imaginável, e até existiu diversas vezes; mas não uma sem edifícios.” LUKÁCS, Gregory

Essas condições não são alcançadas sem conflitos, dominações e controles, a mera coleta ou extrativismo só foi superada na medida em que se estabelece um centro que gerencia a produção em armazéns e construções que se apropriam do acúmulo de excedentes. Se estabelece um controle que é político, que forjou conquistadores hábeis, habitantes da cidade, que protegiam e se apropriavam dos excedentes determinando que o núcleo urbano se apoderasse de domínios cultivados. Nasce a representação do poder, a cidade, um local produtor de mercadorias não naturais, transformadas pelo artezanato humano, que domina um entorno fornecendo-lhe proteção e identidade. Nasce a regulação, proteção e gestão do território por um ente edificado denso, no qual florescem o controle, a taxação de impostos, o armazenamento da produção, surge embrionário a estrutura controladora e burocrática do Estado. A Cidade-Estado, a representação do poder expresso numa iconografia funcional e simbólica, onde estão a muralha, o palácio, o templo, os armazéns, que também produz a construção de uma identidade da população que passa a ser seu cidadão. A divisão social do trabalho entre moradores urbanos e produtores agrícolas permanecerá na história humana durante longo período, com clara predominância da população rural, até a Revolução Industrial. Apenas nesse ponto mais recente de nossa história, meados do século XIX, que a população urbana encontra as primeiras condições de superar a população rural, iniciando uma grande transformação que só se materializará no final do século XX, quando, pela primeira vez a população urbana superou a rural.

“A agricultura somente superou a coleta e se constituiu como tal sob impulso (autoritário) de centros urbanos, geralmente ocupados por conquistadores hábeis, que se tornaram protetores, exploradores e opressores, isto é, administradores, fundadores de um Estado. A cidade política acompanha, ou segue de perto, o estabelecimento de uma vida social organizada, da agricultura, e da aldeia. “ LEFEBVRE, 2004 página 21

Gráfico presente em LEFEBVRE, referente a passagem
do agrário ao urbano

O gráfico presente no livro A revolução urbana de Henri Lefebvre nos mostra a tendência das sociedades ocidentais em direção a completa subordinação do agrário ao urbano, que representa uma Implosão-Explosão, onde o rural se urbaniza, e a cidade se dispersa pelo mundo. Condição típica da nossa contemporaneidade, quando segundo Lefebvre opera uma grande confusão, "na qual passado e o possível, o melhor e o pior se mistiram." LEFEBVRE 2004 página27 A realidade urbana opera no sentido de revolucionar de forma contínua as formas de produção, sem, no entanto ser suficiente para transformá-las completamente. O que é importante, no contexto da disciplina de História e Teoria da Arquitetura 1, para os alunos é que o urbano mesmo em seu estágio embrionário insere a festa da interação entre diferenças, marcando para o início da história a promessa da sua transformação. A arquitetura e urbanismo comprovam o intercâmbio de tecnologias construtivas que se constituem como um Bem Comum, algo que não pode ser cercado e privatizado, apesar de uma minoria privilegiada que quer manter estes saberes como sua propriedade. Além das tecnologias, há a questão da apropriação das imagens, que essas construções monumentais geram na população; uma identidade locacional que acaba por promover a identificação de um lugar único no cosmo geral e indiferenciado do planeta, uma humanização da paisagem, que gera identidade entre população e lugar.

“O que nos interessa em nosso contexto é que as emoções desencadeadas agora já não se enlaçam só com o fato geral e objetivo da segurança, mas que são produto imediato do modo aparencial visual da muralha (altura, massa, etc.).” (LUKÁCS, 1982, v. 4, p. 95) 

TEMPLO DE LUXOR: A) Avenida das Esfinges;
B) Pilone de Ramsés II; C) Obeliscos de Ramsés II; D) Colossos;
E) Pátio de Ramsés II; F) Colunata de Amenófis III;
G) Pátio de Amenófis III; H) Sala do Nascimento;
I) Santuário de Alexandre Magno;  J) Sala Hipóstila;
K) Vestíbulo; L) Câmara (sancta sanctorum)
Médio Imperio - Tebas


A partir dessas reflexões de base se apresentam as construções que chegaram ao nosso conhecimento destas civilizações; o Templo Alto de Uruk, o Zigurate de Ur, O Zigurate e a Muralha de Nama, a cidade de Khorsabad. Todas sítios arqueológicos atuais da Mesopotâmia (atual Iraque e Irã) mostrando-nos a permanência parcial da monumentalidade e a completa incapacidade de resistir ao tempo das habitações comuns. Na sequência se mostram as grandes obras do Antigo Egito dentro de uma cronologia geral; o período Arcaico, o Antigo Império (3.200 a 2.200 a.C.), Médio Império (2.200 a 1580 a. C.) e Novo Império (1.580 a 1.085 a. C.). Nessa subdivisão histórica geral se destaca a predominância no Antigo Império da cidade de Mênfis na fox do Nilo com o Mar Mediterrâneo, e a partir do Médio Império a predominância da cidade Tebas no médio Nilo. Foram também mostradas as principais realizações construtiva do Império Egípcio, as antigas mastabas, a pirâmide escalonada de Djoser, as pirâmides de Queóps, Quéfren e Miquerino no Antigo Império, nas proximidades de Mênfis. E, os templos de Luxor e Carnac nas proximidades da cidade de Tebas, e o Templo de Abu Simel no médio Império. Este último próximo a atual barragem de Assuan, na atual da fronteira do Egito com o Sudão, obra de infraestrutura do Estado Egípcio contemporâneo, que foi traslado para uma cota mais alta, para se evitar seu alagamento pelo Lago Nasser. Importante salientar, que estes exemplos estabelecem um padrão específico da arquitetura e da cidade, frente a outras artes, uma certa presença da abstração e distanciamento da imitação ou mímesis da natureza, das artes pictóricas. O ambiente humano, para sua convivência desenvolve-se numa imagética presa a sua necessidade de ficar em pé, ou de se auto sustentar, mostrando-nos que os esforços construtivos se subordinam a tectônica.

“Não é da imitação que dependem a beleza e a graça da arquitetura, porque se assim fosse ela deveria ter mais beleza quanto mais exatas fossem estas imitações. As colunas não recebem a aprovação do gosto quanto mais se parecem ao tronco de uma árvore que servia de coluna às primeiras cabanas” PERRAULT, Claude - Ordonnance des Cinq Espèces des Collones


Por último, foi destacado para os alunos o papel da mulher na sociedade egípcia, que segundo os historiadores foi exercido de forma afirmativa e tinha praticamente os mesmos direitos dos homens, o que não ocorria em outras civilizações da antiguidade. Segundo estes historiadores, elas chegaram a postos, posições e papéis, que só foram alcançados pelas mulheres novamente na nossa sociedade contemporânea. Apenas como exemplo, o casamento no antigo Egito era considerado importante para as mulheres. As garotas egípcias costumavam se casar na faixa dos 12 anos, enquanto os garotos tinham entre 15 e 19. Elas também podiam se divorciar, caso sofressem algum tipo de maltrato, por exemplo. Nesse caso recorriam aos seus familiares e pediam ajuda para intervir no casamento. O divórcio era algo simples e não necessitava de muito tempo para a sua obtenção. Entre os principais motivos de divórcios estavam os maus-tratos, o adultério e a infertilidade. Esta condição coloca para a nossa contemporaneidade uma interessante questão, que desnaturaliza a diferença entre os sexos e a coloca na condição de uma ordenação societária imposta pela produção humana de subalternidades. O determinismo biológico é problematizado de forma crítica, mostrando-nos de que a produção da relação hierárquica entre os gêneros é uma determinação da ordenação social. A questão foi abordada pelo conjunto de textos disponibilizados para os alunos, dentre os quais destaco o de Maria Mies, Origens sociais da divisão sexual do trabalho; a busca pelas origens sob uma perspectiva feminista. Texto que questiona fortemente as determinações "naturais", biológicas ou anatômicas na gestação e origem das sociedades patriarcais.

"Quando as mulheres começaram a se questionar sobre as origens da relação hierárquica entre os gêneros, elas constataram rapidamente que nenhuma das antigas explicações apresentadas pela ciência era suficiente. Pois todas as explicações veem a assimetria social e a hierarquia entre os gêneros como algo, em última análise, biologicamente determinado – e isso significa estar fora do
alcance de processos de transformação social. Esse determinismo biológico velado ou explícito – resumido na declaração de Freud de que anatomia é destino – é provavelmente o maior obstáculo no caminho do conhecimento das causas para a divisão desigual do trabalho entre homens e mulheres." MIES 2002 página840

Enfim, se debruçar sobre os resultados arquitetônicos e urbanos destas sociedades antigas traz-nos a uma reflexão importante sobre o nosso presente, nos fazendo pensar sobre os engendramentos que condicionam o nosso futuro. Uma transtemporalidade típica do planejar e projetar, tão presente nas ações de arquitetos e urbanistas, que olha para a tradição, tira dela lições, problematiza nossa atual existência, e projeta novos arranjos espaciais capazes de abrigar uma outra sociedade. Ao final, porque não podemos imaginar um outro futuro? Porque não podemos pensar na ordenação espacial de uma sociedade, onde os gêneros colaboram em solidariedade, e não mais em disputa?

BIBLIOGRAFIA:

LEFEBVRE, Henri - A Revolução Urbana - UFMG Belo Horizonte 2004
LUKÁCS, Gregöry - Marx e Engels como historiadores da literatura - Editôra Boitempo São Paulo 2016
MARX, Karl - O Capital, crítica da economia política - Boitempo São Paulo 2013
MIES, Maria - Origens sociais da divisão sexual do trabalho; a busca pelas origens sob uma perspectiva feminista - Revista Direito e Práxis UERJ Rio de Janeiro 2002
PERRAULT, Claude - Ordonnance des Cinq Espèces des Collones