"Quando fiz o verso doía mais. Muitas coisas se amansam com a velhice... Assim escapo. Fica mais difícil me tornar veterana. Espero morrer caloura, como sempre me vejo."
Católica fervorosa caracterizou os cataclismas recentes de Mariana ou de Paris como purgativos, estágios necessários para ouvirmos os silêncios que sucedem aos desastres, pelo menos para reafirmar a pergunta pelo sentido da vida. Uma comoção-reflexão que não "se acabe com flores e velas sobre os cadáveres e fotografias sentimentais sobre filas de refugiados." Um repúdio veemente a hipocrisia da sociedade contemporânea dominada pelo espetáculo, que colada aos seus televisores enche seus olhos de lágrimas, para no dia seguinte permanecer operando de forma insana, cômoda e repetida. Enfim, uma convocação para reformar nossas vidas e comportamentos mecânicos e impensados. Diante de tudo isso ela afirma apenas uma certeza;
"... devo começar em meu coração, dentro da minha casa, a radical mudança para o amor, o perdão, a tolerância, para a atenção real para o meu próximo,.."
Adélia também não é feminista, não gosta da palavra feminicídio, enquanto nos distraímos com bandeiras, o crime segue atuando contra todos, para ela a verdadeira revolução é de outra ordem; moral, educacional, religiosa, civil e espiritual. O universalismo da poetisa começa no seu íntimo, em casa, na vizinhança. Nada mais kantiano. E, diante do aborto, tema complexo e espinhoso a poetisa não se reduz;
"Não há, fora da minha consciência, quem me proíba ou me libere para o aborto. Obedecer a lei - para o sim ou para o não - nunca é garantia de paz interior..."
Me lembrei de um lindo poema seu que li há muito tempo, que a partir desse momento me capturou para sempre na sua potente simplicidade cotidiana;
Casamento
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
( Adélia Prado )
(Do livro: Terra de Santa Cruz, Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 25.)
(Do livro: Terra de Santa Cruz, Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 25.)
Adélia Prado como outros poetas se distancia sempre da repetição e da comodidade, trazendo sempre o espanto e a surpresa, mas o que mais me impressiona é que ela se mantém sempre diante da banalidade do dia a dia. Mais especificamente para o país, a poetisa nos deixou na mesma reportagem do jornal, os seguintes versos;
Sofri e sofro em Minas Gerais e na beirado oceano.
Estarreço de estar viva.
Ó luar do sertão,
ó matas que não preciso ver para me
perder,
ó cidades grandes, estados do Brasil
que amo como se os tivesse inventado.
Ser brasileira me determina de modo
emocionante
e isto, que posso chamar de destino,
sem pecar,
descansa meu bem-querer.
Muito obrigado... Adélia Prado
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