domingo, 25 de maio de 2025

György Lukács


José Paulo Netto é um dos marxistas mais preparados no nosso cenário intelectual brasileiro, seu recente Karl Marx, uma biografia é um esforço notável para apresentar a trajetória do filósofo alemão do século XIX, ao Brasil contemporâneo. O rigor de sua investigação para produzir esse livro emerge claramente da sua convicção de que a contribuição marxiana continua presente em nosso horizonte de pensamento contemporâneo. A mesma atitude é observada no Prefácio da Estética: as peculiaridades do estético, volume 1, recém lançado também pela editora Boitempo, 2023. Essa investigação ampla é também complementada problematizada e desenvolvida principalmente pelas reflexões internacionais de; Engels, Lenin, Gramsci, Luckács, Mandel, Lefebvre, Metzaros, Harvey, e muitos outros. E, no âmbito nacional destacam se também a colaboração e problematização de pensadores marxistas como; Florestan Fernandes, Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho, Luiz Werneck Vianna, Mário Duayer, Juarez Duayer, Marcos del Roio, Milton Santos, e muitos outros. A tarefa não é nada fácil, pois apesar da enorme magnitude e profundidade da Estética de Luckács, ainda não houve por parte da crítica a devida atenção que essa obra merece, principalmente por sua problematização do nosso tempo contemporâneo. Mas, a forma de Karl Marx: uma biografia de José Paulo Netto é quase exaustiva na compilação de citações e referências, que nos guiam num labirinto de informações, questionamentos e interrelações com os conteúdos abordados, fazendo com que o texto principal tenha menos páginas do que a parte das notas. A mesma formatação se repete na sua apresentação ao livro de György Luckács (1885-1971), Estética, no qual o número de páginas do texto (65 páginas), contrasta com a parte das citações que possui (71!) Nessa condição, transmite-se a impressão de uma "investigação" em andamento, de certa forma fragmentada, transformando a síntese inerente à "exposição" em uma grande dificuldade, em clara confrontação com uma citação de Marx, compilada por ele mesmo na nota 262.

"Menciono aqui a anotação marxiana de 1873: "deve-se distinguir O modo de exposição segundo sua forma do modo de investigação. A investigação tem de se apropriar da matéria (Stof) em seus detalhes, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e rastrear seu nexo interno. Somente depois de consumado tal trabalho que se pode expor adequadamente o movimento real. Se isso é realizado com sucesso, e se a vida da matéria é agora refletida idealmente, o observador pode ter a impressão de se encontrar diante de um construção a priori" MARX 2013, pág.90, citado em NETTO 2023, pág. 132

Essa configuração transmite também e espelha a complexidade da construção do pensamento, tanto de Marx, como também, a diversidade de confrontações, sínteses e articulações levadas a cabo por Lukács até a síntese da Estética I, a peculiaridade do estético , que foi publicado em 1963, não só na sua formação, mas também na sua vivência no conturbado século XX. Essa vivência, naquilo que hoje é conhecido como a Europa Central e Oriental, na passagem do século XIX para o XX, onde emergiu a crítica romântica a cultura do capitalismo, a Kulturkritic.  Filho de um banqueiro de Budapest teve uma formação jurídica, teve também uma estreia precoce (17 anos) na imprensa húngara (1902). A primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa, a breve comuna da sua Hungria, na qual foi o Comissário da Cultura, a publicação de História e Consciência de Classe, o livro sobre o pensamento de Lenin, publicado logo após a sua morte, a ascensão de Stálin no comando da URSS, a segunda Guerra Mundial e a vitória soviética comprovada pela chegada de suas tropas em Berlim, antes dos aliados, a emergência da Guerra Fria, os expurgos de Kruschev dos crimes de Stálin, a crise do sistema soviético frente a crescente burocratização e o declínio do desenvolvimento. Todos acontecimentos vivenciados por Luckács, no conturbado século XX, que claramente confrontou; uma economia de assumido controle estatal planejada que transformou um país atrasado numa potência mundial, contraposta a uma ordenação dissimulada de controle estatal que incentiva a iniciativa privada monopolizada e a desregulamentação. Enfim, Lukács teve uma vivência impressionante, marcada pelos complexos acontecimentos do final do século XIX até a década de 70 do século XX, uma vivência notável num tempo conturbado e complexo. Uma afirmação curta e sintética talvez represente as lutas em que ele esteve envolvido, durante todo o século XX, que o aproxima do filósofo italiano Antônio Gramsci (1891-1937), seu contemporâneo, seis anos mais novo, mas morto antecipadamente de forma brutal pelos maus tratos nas prisões de fascistas de Mussolini.

"A política é apenas o meio, a cultura é o objetivo." LUCKÁCS, 1919 em MERQUIOR, 1987, pág.91

O Marxismo possui alguns continentes de imensas dimensões, sem dúvida Lukács e Gramsci fazem parte deles junto com; Engels, Lenin, Trotsky, Rosa Luxemburgo, e outros. A vertente política estava muito mais presente no filósofo italiano, que passou a se dedicar a uma reflexão mais aprofundada filosoficamente, a partir de sua prisão, com os emblemáticos Cadernos de Cárcere. Mas, Lukács também atuou politicamente, após o esforço notável de escrever entre 1912 e 1914, A Heidelberg Aesthetik, incentivado por Max Weber para se habilitar como filósofo universitário na Alemanha, após isso assumiu o cargo de Comissário do Povo da Educação e Cultura na breve comuna húngara de 1919, dirigida por Bela Kún. Segundo MERQUIOR 1987, num certo tom irônico que lhe era peculiar, Lukács nessa época era influenciado pelo coletivismo de George Sorel (1847-1922), pelos livros Reflexões sobre a violência, e A Ilusões do progresso, ambos de 1908, combinando um socialismo ético, desprezo pelo Estado, uma ética de convicção e uma certa ânsia ligada a Dostoievsky. O fato é que num artigo no jornal radical, Livre Pensamento escreveu um texto intitulado "O bolchevismo como problema moral", no qual pontuava o difícil equilíbrio entre a bem-aventurança de uma sociedade sem classes e o barbarismo da violência. Uma semana após esse artigo György Lukács entrou para o Partido Comunista Húngaro, junto com Béla Balázs (1884-1949), Bela Fogarasi (1891-1959) e Ljena, que eram membros do Círculo de Domingo de Budapeste ou Escola Livre de Humanidades de Budapest, que também teve a participação de Karl Manheim (1893-1947), Arnold Hauser (1892-1978), Bela Bartok (1881-1945), Michael Polanyi (1891-1976). Ilustres companhias, que se destacariam em diversos planos, e que nos mostram a dimensão e o nível dos debates que conformou o pensamento de Lukács.

Sobre os primórdios do desenvolvimento de György Lukács, a partir de LÖWY, 2020, percebe-se a presença de um certo misticismo judaico-cristão típicos do movimento romântico anti-capitalista, que era muito comum na parte centro-oriental da Europa. Lukács pertencia a uma família judia assimilada de Budapeste, seu pai era banqueiro e foi nobilitado pelos Habsburgo, uma classe, que sempre representou um certo Burguês, filisteu repugnante. O romantismo germânico anti capitalista investia fortemente contra a ciência e a avareza dos novos tempos modernos da Europa, negando o Iluminismo, e sua gente urbana, artificial e sofisticada, celebrando a inocência das pequenas comunidades rurais.

"György Luckács era nascido em uma família da alta burguesia judaica assimilada de Budapeste, Lukács sempre se identificou essencialmente com a cultura alemã. Apaixonado pelo romantismo, esboça, em 1907-1908, o plano de uma obra intitulada O Romantismo do Século XIX, e seu primeiro trabalho importante, A Alma e as Formas (1910), baseia-se particularmente em escritores ligados ao romantismo ou ao neo-romantismo; Novalis, Theodor Storm, Stefan George, Paul Ernst etc. Essa dimensão "romântica anticapitalista" (a expressão é do próprio Lukács) não desaparece de seus escritos, mesmo após sua adesão ao comunismo: por exemplo, seu ensaio "A Antiga Cultura e a Nova", de 1919 está carregado de uma profunda nostalgia das culturas pré-capitalistas quc Lukacs opõe ao caráter "destruidor de cultura" do capitalismo. Um detalhe divertido, mas bem a característico, ilustra a permanência de uma sensibilidade romântica: um dos primeiros decretos de Lukács como comissário do povo para a Educação foi instituir (em abril de 1919) a leitura de contos de fadas em todas as escolas e hospitais de crianças do pais. E nesse quadro espiritual que se desenvolve o interesse de Lukács pelo pensamento místico, tanto cristão quanto judaico (ou hinduísta!). É provável que - como muitos outros intelectuais de cultura alemã, judeus ou não - tenha descoberto o universo espiritual da religiosidade judaica mística graças aos livros de Buber sobre o hassidismo. Em 1911, escreve a Buber manifestando sua admiração por suas obras, que lhe propiciaram "uma grande experiência vital" (ein grosses Erlebnis), em particular o Baal Schem (1908), saudado como um livro "inesquecível". A correspondência entre Buber e Lukács prosseguiu até 1921, e uma troca de cartas em novembro/dezembro de 1916 sugere que um encontro pessoal entre os dois ocorreu nessa ocasião em Heppenheim (aldeia onde vivia Buber). Em 1911, Lukács publica um comentário sobre os livros de Buber numa revista húngara de filosofia sob o título "Misticismo Judaico", no qual compara o Baal Schem a Mestre Eckhart e Jacob Böhme. Nesse texto, o único que Lukács haveria de escrever sobre um tema judaico (e que não fará jamais traduzir ou reeditar), atribui uma grande importância ao hassidismo na história das religiões da época moderna: "O movimento hassídico, que teve em Baal Schem sua primeira grande figura e em rabi Nakhman a última, foi um misticismo primitivo e poderoso, o único grande e verdadeiro movimento desde o misticismo alemão da Reforma e o espanhol da Contra-Reforma." Um dos aspectos que mais o atraem no hassidismo (tal como Buber o apresenta) é a aspiração messiânica: em seu caderno de anotações de 1911, reproduz alguns trechos das obras de Buber, entre os quais uma passagem de Geschichten des Rabbi Nachmans (Histórias do Rabi Nakhman) (1906), que fala da espera do Messias em Jerusalém. Alguns anos mais tarde, num outro caderno, dedicado a Dostoiévski, refere-se à ideia de que o Sabá é a "origem do mundo por vir" ou o reflexo da redenção ao citar uma frase do livro Die Legende dels Baalschen (A Lenda de Baai Schem, 1908)." LÖWY, 2020 pág.150 e 151

Outro livro notável de sua lavra é História e Consciência de Classe: estudos sobre a dialética marxista, um livro que será renegado pelo próprio autor, e que está demonstrado no prefácio que escreveu em 1967 para que a obra fosse republicada. Apesar disso, essa obra terá um enorme impacto em vários pensadores importantes da época, mas Lukács a considera excessivamente idealista e hegeliana. No entanto, o capítulo dessa obra intitulado; A reificação e a consciência do proletariado, que se desdobra em 3 partes; 1 O fenômeno da reificação; 2. As antinomias do pensamento burguês; e 3. O ponto de vista do proletariado me parece ser um esforço notável de entender o sujeito revolucionário em nosso mundo contemporâneo, uma clara crítica as abstrações do sistema hegeliano. Para ARAÚJO 2022, a Ontologia do ser social será uma resposta aos equívocos de História e Consciência de Classe, pois a formulação do citado prefácio crítico de 1967 é contemporâneo da concepção do livro sobre a Ontologia. Sobre História e Consciência de classe, um livro escrito e publicado em 1923, que coleta artigos escritos entre 1919 e 1922, época em Lukács entra para o Partido Comunista Húngaro, e que de certa maneira, compartilhava a expectativa generalizada de uma onda revolucionária comunista na Europa Central;

"A esmagadora maioria dos analistas de Luckács acata, na avaliação deste livro, a tese ulteriormente esposada por seu autor: HCC é um perfeito resumo das ideias que defendeu de 1919 a 1922. Independentemente do debate sobre esse aspecto, o que todos aceitam é a excepcional importância do livro, uma obra prima do marxismo. # Os oito ensaios de dialética marxista que compõem HCC tematizam objetos distintos, mas estão vinculados por uma perspectiva teórica e política que lhes confere uma singular coerência e unidade. No plano teórico, Luckács dirige a polêmica em duas frentes: contra o marxismo vulgar da II Internacional e sua vertente revisionista (Bernstein) e contra o positivismo acrítico das ciências sociais "burguesas". Em face de ambos, ele realça o marxismo ortodoxo (que nada tem a ver com a dogmática) consistente na rigorosa aplicação da dialética materialista, necessariamente revolucionária. No plano político, Luckács participando das expectativas de uma iminente revolução em escala mundial, defende ideias inspiradas em Rosa Luxemburgo (tanto sua teoria da acumulação do capital quanto suas propostas acerca do papel organizador do partido comunista). # Neste livro, em que Luckács faz uma leitura fortemente hegeliana de Marx, capturam-se temas marxianos que só se tornariam conhecidos nos anos 1930 (quando se publicam os Manuscritos de 1844), como o da alienação. É assim que Luckács formula sua teoria da reificação que tanto influiria sobre os pensadores da "escola de Frankfurt" (Theodor Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse), sobre Henri Lefebvre, Leo Kofler, Lucien Goldmann e Karel Kosic, entre tantos. E a permanente atualidade de HCC - atestada contemporaneamente, por infindáveis polêmicas que envolvem , entre muitos, István Mészáros, Laura Boella, Louis Althuser, Lucio Colletti, Kostas Axelos -, não passa de um índice de sua relevância para a cultura revolucionária moderna. # De acordo com o Luckács de 1923, há uma fratura ineliminável entre o marxismo e a "ciência burguesa": a sociedade só pode ser estudada a partir do ponto de vista da totalidade" capaz de resolver as formas sociais em seus processos, ora, na sociedade moderna, apenas as classes representam o ponto de vista da totalidade, mas somente o proletariado, partindo dele, pode conhecer a realidade, já que "a sobrevivência da burguesia pressupõe que ela jamais alcance uma clara compreensão das condições de sua existência". NETTO 2023, pág. 37 e 38

Esse depoimento de José Paulo Netto contrasta com as opiniões de José Guilherme Merquior, dando-nos a clara relevância de HCC

"Lukács é tido, corretamente, como fundador do marxismo ocidental. Mas posteriormente o próprio Lukács teve pouca influência no movimento que inspirou. Depois de História e consciência de classe, ele deixou, em grande parte, de ser um marxista ocidental. Conservou, naturalmente, inúmeros traços idealistas: um apego duradouro à totalidade e uma epistemologia dualista. Seu velho desprezo pela ciência e pela razão analítica também sobreviveu, embora atenuado. Mas ele abandonou a posição de Kulturkritik exacerbada - tanto assim que descobriu diversas virtudes no passado capitalista, distinguindo, em matéria de arte e cultura burguesas, boas e más tradições, tradições progressistas e tradições reacionárias, Embora constitua flagrante injustiça sugerir que ○ melhor de sua obra entre 1923 e, digamos, 1963 (data da publicação da sua admirável Estética), pactua com os crassos dogmas do marxismo-leninismo, a verdade que Lukács)se aproximou cada vez mais do que marxismo-leninismo conservou do marxismo clássico. E foi então que ele acabou trocando messianismo utópico dos seus primeiros tempos por uma visão dialética da história - a visão, por exemplo, que informa essa obra-prima de crítica literária que é O romance histórico (1938: publicado em 1955). Mas, em conjunto, sua vigorosa luta contra as tendências irracionalistas, combinada com sua firme rejeição da arte avant-garde, deixou-o a léguas de distância da segunda terceira gerações do marxismo ocidental.  Já foi de rigueur menoscabar a alta polêmica de A destruição da razão (1954), de Lukács como uma peca de sectarismo stalinista. Adorno sugeriu que, igualando irractonalismo e decadência, Lukács simplesmente dera as mãos aos ideólogos fascistas. Essa rejeição, no entanto talvez seja precipitada. Culpa por associação não ế critério aceitável para descartar teorias, seja de que espécie forem. Os fascistas foram notoriamente enamorados de Nietzsche. Devemos, então, condenar Nietzsche apenas só por causa disso? O certo é que existe um problema do irracionalismo, dentro e fora do pensamento ´burguês'. E a relutância do marxismo ocidental em enfrentá-lo diz muito sobre o próprio marxismo ocidental." MERQUIOR 1987 pág.134 e 135

Percebe-se no depoimento acima, que mesmo o conservador José Guilherme Merquior reconhece os méritos da reflexão lukacsiana e o coloca em outro nível no esforço geral de compreensão do mundo da modernidade, do conturbado século XX. O fato é que a obra de Lukács nos cobra uma leitura aprofundada e minuciosa, pois sua complexidade é de difícil síntese didática, um esforço substancial para entender o nosso tempo.

BIBLIOGRAFIA: 

ARAÚJO, Paulo Henrique Furtado de - O trabalho na Ontologia - artigo no livro NACIF, Cristina Lontra e KAWAHARA, Ivan Zanatta, orgs. - Introdução à ontologia do ser social de Georg Lukács - Rio de Janeiro, Consequência, 2022

LÖWY, Michael - Redenção e Utopia: o judaísmo libertário na Europa Central (um estudo da afinidade eletiva) - Sâo Paulo, Prespectiva, 2020

LUCKÁCS, György - Estética: a peculiaridade do estético, volume 1 - São Paulo, Boitempo 2023

MERQUIOR, José Guilherme - O Marxismo Ocidental - Rio de janeiro, Nova Fronteira, 1987

NETTO, José Paulo - Apresentação Luckács: o longo caminho até a Estética - São Paulo, Boitempo 2023

NETTO, José Paulo - Luckács, uma introdução - São Paulo Boitempo 2023

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