Afinal, vivemos uma nova era geológica denominada Antropoceno, na qual os impactos da atividade humana generalizada sobre o planeta atingem a dimensão de uma Era Geológica, fazendo-nos superar o Holosceno, decretando uma crise ecológica nunca vista. Ou, estamos diante do Capitaloceno, uma era na qual a produtividade capitalista, o extrativismo desenfreado, a expansão do imperialismo, a ampliação da mercantilização da vida atinge várias áreas do planeta, enfim uma ordenação social específica, que determina uma crise ecológica sem precedentes. As duas versões vem sendo debatidas, e trazem cada uma, um alinhamento ideológico, um critério de juízo sobre a Crise Ambiental que vivenciamos; o Antropoceno aparece como uma construção das ciências naturais, enquanto o Capitaloceno emerge de uma visão das ciências sociais. As duas conceituações não são excludentes, mas reforçam posicionamentos e alinhamentos ideológicos; o Antropoceno responsabiliza a humanidade como um todo pelo que alcançamos, enquanto o Capitaloceno responsabiliza os beneficiários de um sistema econômico, social e político, que emerge num determinado tempo histórico. As mudanças climáticas, a extinção de espécies animais, o advento de biomas naturais modificados e desequilibrados são frutos de um longo processo de autonomização da espécie humana em relação a natureza? Ou são produzidas por um desenvolvimento predatório, com excesso de desperdícios e não absorção de dejetos e subprodutos de um processo produtivo exponencial, cujo os beneficiários se restringem a uma minoria da humanidade? Há aqueles que se voltam contra a razão ocidental, eurocêntrica que a partir do século XV, se lançou a conquista do mundo, impondo uma lógica linear redutora, instrumental, incapaz de perceber a complexidade da vida. A modernidade, que frutificou no Renascimento, reconstruindo a ontologia da cultura greco romana que impulsiona uma racionalidade que se restringe a alcançar fins redutores e limitados. Que racionalidade é essa? A racionalidade é a mesma para toda a humanidade? Para Max Weber existiam dois tipos de racionalidades; uma mais completa ou integral era a ação racional valorativa, e outra mais limitada e restrita era a ação racional instrumental, o autor vinculava essa segunda racionalidade instrumental à modernidade. Há também em Jürgen Habermas, uma distinção importante entre razão instrumental e razão intersubjetiva; a primeira é dominada pela restrição individual ou interesses de grupos restritos e sua objetivação é ditada pela manipulação de meios adequados a fins. Enquanto, a segunda racionalidade contempla ou negocia com o coletivo e objetiva-se por valorizações morais e éticas, onde a gestão dos recursos disponíveis é problematizada e os benefícios são ampliados socialmente. Habermas ao contrário de Weber, se mantinha como defensor da racionalidade renascentista e iluminista da modernidade, partindo da ideia de Kant do universalismo da razão(1), além das identidades, e impulsionada pelo auto esclarecimento.
"Não podemos excluir de antemão que o neoconservadorismo ou o anarquismo de inspiração estética está apenas tentando mais uma vez, em nome de uma despedida da modernidade, rebelar-se contra ela. Pode ser que estejam simplesmente encobrindo com o pós esclarecimento sua cumplicidade com uma venerável tradição do contra-esclarecimento." HABERMAS, 2002, pág.8
Mas além, do Capitaloceno como expressão questionadora do Antropoceno, também surgiram outras expressões que além do Capitalismo localizam o problema em outras ordenações sociais como; o Faloceno (machismo), o Racismoceno (racismo), o Plantatioceno (colonialismo), ou ainda Necroceno (necrofilia). Enfim, o valor de todos esses termos emerge do mérito de identificar no conjunto da humanidade, os principais responsáveis ou beneficiários de uma racionalidade redutora instrumental de meios-fins, procurando distinguir em consequência, os principais prejudicados, a sub humanidade deixada ao largo pelo mesmo sistema produtivo. É claro as correspondências entre os impactos da crise climática e as atividades antrópicas principalmente as que decorrem da concentração de Gases do Efeito Estufa (GEE) na atmosfera, majoritariamente provenientes da queima de combustíveis fósseis, incrementados pelos processos históricos de industrialização decorrem ao final da distribuição desequilibrada de oportunidades fomentada pelo capitalismo, pelo machismo patriarcal, pelo racismo, pelo colonialismo, pelo imperialismo. No entanto, é necessário manter um certo cosmopolitismo da consciência humana geral, identificando que a maioria dos seres humanos são despossuídos e foram colocados à margem como uma sub espécie, que não desfrutou e segue sem desfrutar dos benefícios de uma ordenação sócio-cultural excludente, o capitalismo. É importante nesse contexto, a identificação do neoliberalismo hegemonizado pela globalização capitalista como promotor e responsável central dos riscos ambientais que corremos, de forma absolutamente diferenciada, pois são as populações do Sul Global que mais serão atingidas. O sistema de operação do neoliberalismo naturalizou, que um número pequeno de interesses particulares controle a maior parte da produção e reprodução da vida social no planeta, apurando benefícios individuais particulares, de maneira mais explícita a partir dos governos de Thatcher (1979) e Reagan (1981). Tudo isso fica atestado de forma clara pelo enorme crescimento da pobreza, da desigualdade social e econômica nas sociedades e entre nações, fruto da expansão capitalista, do imperialismo e da hegemonia financeira-produtivista. Enfim, é necessário reconhecer que as políticas de afirmação identitária não tem conseguido fazer frente, oposição consistente, ou construir alternativas ao módus operandi do neoliberalismo. A partir da perspectiva crítica da história é preciso começar a reconhecer que o mundo do trabalho - sindicatos, associativismo de categorias, partidos trabalhistas e ligas camponesas - eram mais eficientes na contenção dos interesses predatórios dessa minoria endinheirada, do que as políticas identitárias atuais. Será preciso combinar, com grande sensibilidade, uma convergência geral de revalorização do mundo do trabalho e das formas variadas de reprodução da vida, questionadoras do acúmulo desregrado de renda de uma minoria, e ao mesmo tempo, frutificar as lutas identitárias específicas dos subalternos do mundo. Uma busca aparentemente paradoxal, entre a homogenização dos despossuídos do mundo e a heterogenização das identidades variadas do mundo.
A modernidade carregada de colonialismo precisa ser superada, por uma modernidade sem colonialidades brancas, uma questão complexa, que não deve descambar para uma simplificação redutora, da mera desqualificação como um todo, da contribuição da Europa. A divisão pseudo científica da história "humana" em Idade Antiga (antecedente greco-romano), a Idade Média (preparatória ou crítica) e Idade Moderna (Renascimento Europeu) é uma ordenação ideológica redutora, que não corresponde a sua pretensão de ser "humana" ou universal. Uma parte dessa ordenação serve a reprodução da razão instrumental, com claras finalidades de reprodução do acúmulo do capital, do imperialismo e da concentração de renda. Há uma cruel lógica capitaneada pelo avanço tecnológico, que como assinalou Franz Hinkelammer opera como um bicicleta ergométrica, que independente da velocidade não sai do lugar. O ambiente no capitalismo globalizado e neoliberal transmite a impressão de mudança constante e inevitável, sem nada mudar, mantendo sempre a mesma catástrofe de exclusão e concentração de renda. O marco histórico das bombas de Hiroshima e Nagasaki em 1945, assinalam aquilo que alguns autores consideram como a ampliação da "natureza barata"(3) humana ou natural, quando se processa uma imensa expansão do capitalismo pelo mundo e da razão instrumental de meios e fins. A implantação de um raciocínio de guerra, afinal quanto custa a destruição da Amazônia? Segundo a racionalidade instrumental de meios e fins, apenas os custos da mão de obra, das serras elétricas, do transporte da madeira, e nada mais, pois a venda da madeira que consegue superar esses custos, se apresenta e mensura o lucro. Apenas, a partir daí, no segundo pós guerra (4), é que emerge a consciência dos limites dos recursos do planeta, da finitude da Terra, que apesar de já operar desde a exploração da prata em Potosí na Bolívia, ou do ouro em Minas Gerais no Brasil, nos séculos XVI e XVII, só alcançará nesse ponto a materialidade do estrago planetário, ou sua consciência. As consequências para o campo da arquitetura e do urbanismo são notórias e incontornáveis, pois fica claro a relação entre realidade e projeção, entre contexto e formulação do devir, entre terreno e projeto, entre cidade e plano, agora condicionada pelo "automatismo do mercado". Já não se fala mais em corrigir o mercado, em respeito a satisfação das necessidades humanas, na lógica neoliberal deve-se agora adaptar a "realidade" às imposições do mercado, como algo automático, insuperável e repetido ao infinito. Com isso, parece que estamos indo rapidamente em direção a um suicídio coletivo, dado por essas condições de operação pouco sustentáveis ambiental e socialmente. Afinal, o que será das próximas gerações? O esloveno Slavoj Zizek tem uma irônica e trágica colocação assinalando nossa corrente atitude suicida;
"a nós nos parece muito mais fácil imaginar o fim do mundo do que uma pequena mudança do sistema político. A vida na terra possivelmente vai acabar, mas o capitalismo de algum modo continuará." DUAYER 2023 pág.89
NOTAS:
(1) Imanuel Kant escreveu em 1784 um opúsculo denominado "Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolta", no qual se contrapõe a ideia de "sujeitos singulares" e o "conjunto da espécie" para a determinação de uma "liberdade da vontade", que acaba por conformar as disposições naturais para o uso da razão na humanidade.
(2) As epistemologias decoloniais do Sul Global, fomentadas por autores como; Enrique Dussel, Juan José Bautista, Franz Hinkelammert, Henry Mora Jiménez e Achille Mbembe.
(3) Jason Moore se refere a "Cheap Natures" para se referir a forma de apropriação do colonialismo, que explora naturezas humanas e naturais na periferia do mundo de baixo custo, numa atitude predatória de segregação.
(4) O primeiro autor a se referir ao Antropoceno no início dos anos 2000 foi o prêmio Nobel de Química, Paul Crutzen, segundo MOREIRA e GARRIDO, 2024 pág140. Os mesmos autores fazem referência a "Grande Aceleração", ocorrida após a década de 50, após as bombas atômicas como uma época de aceleração da industrialização e urbanização.
BIBLIOGRAFIA:
BAUTISTA, Juan José - Hacia la descolonización de la Ciencia Social Latinoamericana - La Paz, Rincón Ediciones, 2012
CHOMSKY, Noam - Como parar o relógio do Juízo Final? - São Paulo, Instituto do Conhecimento Liberta (ICL), 2023
DUAYER, Mario - Teoria Social, Verdade e Transformação: ensaios de crítica ontológica - Editora Boitempo, São Paulo 2023
__________, Noam - O lucro ou as pessoas - Rio de Janeiro, Bertrand Russel, 2002
DUSSEL, Enrique - 1492; el encobrimiento del otro - La Paz, Plural 1994
________, Enrique - Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão - Petrópolis, Editora Vozes, 2000
HINKELAMMERT, Franz e JIMÉNEZ, Henry Mora - Hacia una economia política para la vida - Costa Rica, San José, UNA Economía y Sociedad n.21 2005
MBEMBE, Achiles - Necropolítica: biopoder, soberania, Estado de exceção, política da morte - São Paulo, N-1 Edições, 2016
MOREIRA, Danielle de Andrade e GARRIDO, Carolina de Figueiredo - Uma nova época: Antropoceno ou Capitaloceno? Contexto histórico e desafios contemporâneos da crise climática - São Paulo, ICL, 2023
PIZA, Suze e LIMA, Bruno Reikdal de - Racionalidade e economia no fim dos tempos - São Paulo, Instituto do Conhecimento Liberta, 2023
HABERMAS, Jürgen - O discurso filosófico da modernidade - São Paulo Martins Fontes 2002
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