O texto a seguir é fruto da leitura do livro de Leonardo Benevolo e Benno Albrecht, que tem como título; "As Origens da Arquitetura", uma obra notável impulsionadora de questões fundamentais para operação da projetação contemporaneamente. Já, há alguns anos sou responsável pela cadeira de Teoria e História da Arquitetura 1 (THArq1) na Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU-UFF), que abarca um período longo, entre o advento da espécie humana, ou das primeiras manifestações de expressão pictórica nas cavernas ou de marcação territorial no Paleolítico (2,5 milhões de anos antes de Cristo), até o Renascimento Italianos nos séculos XIV, XV e XVI na era cristã. Um período extremamente extenso e complexo, no qual a humanidade constrói, transmite, apaga, recupera e retoma técnicas construtivas diversificadas, que interagem com várias formas de organizações sociais, constituindo o patrimônio da humanidade. Essa noção de Patrimônio Construído Comum, que perpassa esse longo período carrega a ideia de que a experiência humana em sua auto construção, ou na ampliação de sua humanização é um processo contínuo compartilhado, onde as tecnologias são apropriadas pela ideia kantiana de História Comum da Humanidade. Essa disciplina THArq1 era ministrada pelo Professor Juarez Duayer, que gentilmente forneceu me todo seu material didático e de trabalho, e a quem, sou extremamente grato por seus apontamentos, bibliografia e conceituação. Aqui nesse texto, pretende-se abordar o grande período da Pré História, que se refere ao tempo anterior a Idade Antiga, quando ainda não há escrita. Já houve aqui no blog, uma abordagem desse período no texto de 13 de outubro de 2021; "O filme a Guerra do Fogo e a disciplina de Teoria e História da Arquitetura 1 (THArq1)", que aborda o citado filme do diretor Jean Jacques Annaud de 1981. Esse imenso período, conforme mostra a cronologia de 200.000a.C até 4.000a.C., que está subdividido em três partes. O primeiro período, o Paleolítico quando a espécie humana é caracterizada pelo nomadismo e por atividades extrativistas como a caça e a pesca e pelo aparecimento dos primeiros utensílios de pedra. O segundo trecho é o período do neolítico, quando ocorre a revolução agrícola, quando se desenvolve o início da fixação dos grupos humanos em sítios específicos em assentamentos classificados como aldeias. O terceiro período nomeado como Idade dos Metais, quando aparecem os primeiros utensílios de ferro e cobre, a metalurgia, e a Revolução Urbana, que determina uma aceleração incrível da apropriação de tecnologias pela humanidade, até alcançar o advento da escrita, que determina o final da pré história e o início da História. Esse período, apesar de distante é de suma importância para a arquitetura, o urbanismo e o paisagismo, por representar o advento da modificação do meio natural e o desenvolvimento da construção do abrigo, da casa, da cidade e da paisagem humana. É o período de artificialização ou da desnaturalização do humano, tanto pela confecção de utensílios, como pela formulação do abrigo, como um lugar que se constrói. Inicia-se aí a humanização do homem, que se manifesta na sua autonomização com relação ao meio natural, uma diferenciação que não mais reconhecerá na natureza a capacidade de abrigar e acolher a sua espécie. Começa um processo de acumulação contínua de tecnologias, saberes e pensamentos, que produz uma capacidade crescente de compreensão do mundo natural que passa a ser manipulado para seu próprio proveito e conforto. Emerge a arquitetura, o urbanismo, o paisagismo e a manipulação territorial em benefício do grupo humano, que pelas Revoluções Agrícola e Urbana materializam uma fenomenologia humana, parcialmente destacada da animalidade. Nesse sentido, em 1881, o arquiteto William Morris nos forneceu uma das mais precisas definições do que é a arquitetura, o urbanismo e o paisagismo, numa palestra intitulada, "The Prospects of Architecture in Civilization".
"Arquitetura é uma concepção ampla, pois abarca todo o ambiente da vida humana. Não podemos subtrair-nos a ela enquanto fizermos parte da sociedade civil, porque a arquitetura é o conjunto das modificações e alterações introduzidas na superfície terrestre como vistas as necessidades humana, com a única exceção do deserto puro [...] citação de William Morris em BENÉVOLO e ALBRECHT 2002 pág.7
A ideia de constituição de uma sociedade colaborativa humana, que desemboca numa sociedade civil regrada e pautada por princípios de convivência, que garantem, e ao mesmo tempo promovem a autonomização do homem frente ao natural, identificando aí uma força diferenciadora. E, que concentram nessa atitude, nesse ambiente construído, modificado e adequado a sua existência, a seu comportamento diferenciado com relação ao natural, o próprio fator de uma reprodução da espécie autonomizada. E, prosseguem Leonardo Benévolo e Benno Albrecht, destacando o afastamento da tradição de certas definições culturais arraigadas da arquitetura, que destacaram a diferenciação entre necessidade e contemplação estética, como fenômenos distintos. E, mais ao fato de que as transformações humanas do meio natural estão carregadas de um espírito empreendedor impossibilitado de distinguir necessidade e arte no fazer humano.
"[...]A uma ideia restrita de arquitetura, historicamente qualificada, continua ser fiel, como se sabe, um grupo ínfimo de arquitetos contemporâneos, por um intuito programático preciso" BENÉVOLO e ALBRECHT 2002 pág.7
Essa definição materialista da arquitetura, de William Morris, que é compartilhada por alguns profissionais e pensadores do século XIX, e que questiona claramente a postura idealista, que encara o ofício como uma manifestação cultural compartilhada pela humanidade como um todo. E, que se distancia do posicionamento mais corriqueiro, idealista, que considera arquitetura e as transformações "introduzidas na superfície terrestre", apenas aquelas, que possuem intencionalidade estética, longe do império da necessidade. Nessa visão, necessidade e intencionalidade estética se misturam, mantendo-se a utilidade operacional e contemplativa dos objetos num interação dialética. Instrumentação e contemplação se somam a partir da capacidade de pré imaginar ou pré figurar - planejar e projetar - antes de realizar, como uma forma de problematizar as escolhas e assim refletir sobre o sentido. Liberdade e necessidade interagem de forma contínua e progressiva, gerando a auto problematização de sua própria existência, das tecnologias já inventadas e as que ainda devem ser inventadas para seu benefício próprio e do seu grupo. Há aqui, um embrião do desenvolvimento futuro da cultura arquitetônica, que se materializará na exposição do Museum of Modern Art (MOMA) de 1964, com curadoria de Bernard Rudovski, denominada "Architecture without Architects", que demonstra o vínculo intrínseco entre construção e cultura pulverizada e compartilhada. Um dos méritos dessa exposição do MOMA foi a apresentação de conjuntos construídos, como determinados vilarejos nas Ilhas Gregas ou em vilarejos africanos, que demonstravam uma profunda interação entre meio ambiente natural e humano, onde a parte e todo conformavam uma expresividade integral. Essa posição, me parece derivar da atitude romântica que nasce da crítica a razão universalista do Iluminismo francês, que resistia a reavaliação do gótico, da Idade Média ou do particular, como uma expressão única de um gênio espontâneo, muito além dos cânones.
"O estudo da arquitetura passada serviu sempre para estimular a criatividade contemporânea. Basta recordar, no passado próximo, a redescoberta do gótico pelas vanguardas inglesas - John Ruskin, William Morris - da segunda metade do século XIX a releitura do classicismo nas universidade americanas - Rudolph Wittkower, James S. Ackermann, Joseph Rykwert - e por Loui I. Khan e seus discípulos; a reavaliação das vanguardas no início do século XX pelos movimentos revisionistas europeus; a curiosidade omnívora de James Stirling por qualquer achado do passado." BENÉVOLO e ALBRECHT 2002 pág.9
São atitudes que comprovam a permanência do romântico de forma trans temporal, como um posicionamento humano, que muito além de estar localizada num determinado espaço, a Europa Central, o mundo Germânico, ou num determinado tempo, o último terço do século XVIII até a primeira quadra do século XIX perpassa ou corresponde a um estado de espírito da humanidade. O espírito romântico seria a negação da possibilidade de um pensamento absoluto, simétrico, bem arranjado e comportado, que criasse uma ordem racional universalmente inteligível. Esse seria por excelência o mundo do longo período do Paleolítico, quando os padrões estão por ser estabelecidos e a humanidade não tem consciência de si própria. Quando olhamos para nossa cronologia, na Figura 1, percebe-se que os acontecimentos figurativos que chegaram até nós estão concentrados nos períodos; Finais do Paleolítico, a partir de 40.000a.C., Neolítico e na Idade dos Metais, quando a atividade humana ganha capacidade de representar o mundo exterior. Pinturas rupestres nas cavernas, em Lascaux na França, na serra da Capivara no Piauí, Ordenações de Menires em Carnac, Dólmens variados pelo mundo, Stonehenge na Inglaterra, dentre outros, testemunham uma vontade de marcar o território, de domínio sobre a caça, ou de controle do tempo. Nessa observação, há uma clara aceleração da História Comum da Humanidade, chegando até a passagem entre a aldeia e a cidade, da Revolução agrícola à Revolução urbana, como entidades conceitualmente muito diferentes quantitativa, mas principalmente qualitativamente. Na cidade, que difere da aldeia por sua ruptura com o provincianismo das famílias próximas, nasce um cosmopolitismo de convivência entre a diversidade de humanos, propiciando um incrível desenvolvimento tecnológico, pela aceleração do compartilhamento entre diferentes. Emerge uma didática da cidade, que impõe a convivência com a diversidade, a ampliação do respeito a uma certa privacidade única e particular, obtida a partir do anonimato da grande cidade. Um aprendizado com a presença da diversidade entre seres humanos; de crenças, costumes e tecnologias, que é gerador de curiosidades e portanto de um intenso desenvolvimento científico, artístico, poético e político para a humanidade. Mas sigamos com calma;
"Os artefatos físicos arquitetados pelo homem e ainda visíveis compreendem aquilo que não desapareceu no naufrágio das esperanças passadas, consumidas pelo tempo e pelo acaso. Permitem-nos a nós, descendentes afastados, um contato direto, face a face, com os nossos antepassados, transpondo o abismo do tempo. A partir de uma certa época, os artefatos são acompanhados de monografias, que, do ponto de vista histórico geral, estabelecem a diferença entre pré história e história. Mas os objetos construídos tem uma eloquência direta própria, que impressiona de igual modo os olhos de todas as gerações, e que pode passar por cima de qualquer diferenças de culturas e tradições." BENÉVOLO e ALBRECHT 2002 pág.9
A presença silenciosa, sem uma base textual explicativa das Pinturas Rupestres nas cavernas, em Lascaux na França, na serra da Capivara no Piauí, Ordenações de Menires em Carnac, Dólmens em partes variadas do mundo, Stonehenge na Inglaterra, dentre outros, aparecem como enigmas, que nos desvendam a nós mesmos como humanos. Elas parecem ser possíveis através de um longo desenvolvimento, que se processa no Paleolítico e nos marca a morfologia corporal, a configuração atual da mão humana, a postura ereta e a adaptação das cordas vocais marcam o longo processo da transformação e do alcance da condição humana. Emergem três limiares importantes da condição humana. O primeiro, a capacidade de se colocar a si próprio e os objetos exteriores num espaço unitário, compreendido pelos limites da visão humana e por sua possibilidade de ser descrito e apropriado, seria a consciência de si e sua localização espacial. O segundo, a capacidade de denotar simbolicamente os objetos, as coisas e a vida de uma maneira geral, indicando e nomeando aos outros próximos a localização e o tipo. E, o terceiro a capacidade de colocar sobre um suporte qualquer - grutas, pedras, areias, e outros - a representação imagética de qualquer objeto visível, como sustentação e comprovação de seus relatos particulares. Esses limiares são compartilhados e trocados entre os grupos humanos, iniciando um processo infindável de acumulação de experiências e vivências particulares, que vão se desenvolvendo em técnicas, poéticas e abstrações, que explicam o mundo. Essas experiências transcendem o indivíduo, ganham o grupo e passam a ser compartilhadas por gerações, que se sucedem e compartilham técnicas e relatos que sempre são aprimorados ou eleitos; objetos cortantes, objetos que apiloam, objetos que armazenam, vestimentas, etc... O desenvolvimento de trabalhos coletivos, onde as capacidades, as características etárias, sexuais e morfológicas de cada um são medidas e avaliadas, iniciando o processo de divisão social do trabalho. A comunidade ganha em coesão e interação, a medida que alcança objetivos e fins compartilhados de forma comum, realizados a partir do esforço conjunto, muitas vezes realizados em torno de ritmos e cantos, a partir de uma divisão social do trabalho embrionária, medindo e avaliando os potenciais particulares de cada um.
É a esse patrimônio comum, que a partir dos 40.000 anos do Paleolítico aparecem para nós hoje em dia, como uma capacidade de abstração e representação, nos mais diferentes substratos como uma arte, tal qual a nossa. Como bem enfatizaram vários críticos, como Giulio Carlo Argan, Ernst Fischer, Bruno Zevi dentre outros, esse fenômeno - a Arte - não nasce primitivo, como esperando evoluir, onde não há possibilidade de qualquer juízo evolucionista. Ela nasce nos maravilhando, como que carregando uma euforia identitária, que invade todos os campos da experiência humana afirmando para todos o advento de algo específico do humano. As interpretações funcionalistas reduzem a sofisticação das representações, a uma necessidade do ganho de coragem para enfrentar feras e manadas que precisam ser caçadas. Ou a entonação de ritmos e cantos, a música primitiva, que suavizavam as tarefas a serem realizadas para se alcançar um maior conforto, mas que já nascem com essa capacidade de gerar empatia dos trabalhos comuns. Certamente, ela também está presente, mas também não se restringem a esse ganho de coragem, ou de entorpecimento há nessas manifestações um compartilhamento de uma capacidade já consciente dos mistérios da vida, da morte, da luz, das trevas, do medo, da coragem, do amor, do ódio. Enfim, uma síntese descritiva feliz dos dramas humanos diante do mundo, no qual o olhar aparece como sentido privilegiado, que nos indica ou permite conhecer melhor, nunca inteiramente mas sempre com um reconfortante sentido de progresso. Nessas representações planares começa a emergir um controle embrionário do espaço e a compreensão de sua capacidade de nos transmitir um sentido. Elementos como uma montanha, um riacho, uma árvore e uma vegetação começam a criar conjuntos, que nos conferem uma compreensão do caminho, uma legibilidade, a identidade de um lugar, que passam a ser valorados. A movimentação passa através desse patrimônio descritivo que identifica particularidades e valores a ser feita com maior segurança, mapeia-se a água, as manadas, os frutos, as ervas, os perigos e os confortos. Logo, já no neolítico emerge a vontade de interferir nesse território formulando a construção de cenários humanizados, marcas na paisagem que assinalam o cemitério das saudades dos antepassados queridos e venerados, pois a morte sempre nos relembra de nossa origem animal, cíclica e misteriosa.
"A modificação do terreno, sobre o qual o homem tem caminhado há centenas de milhar de anos é, por sua vez, rica em implicações intelectuais e emocionais. A imutabilidade da paisagem é um atributo divino, cuja lembrança sobrevive frequentemente nas tradições religiosas subsequentes. Perturbá-la não pode ser um ato desencantado, mas tem um duplo valor: de transgressão de uma ordem existente e de imposição de uma nova ordem. Assim como a referência constituinte dos objetos construídos, é a linha vertical, a referência constituinte do que está agarrado à terra é o plano horizontal. Todos os projetos devem transformar a complexidade tridimensional da superfície de apoio na simplicidade de uma série de planos horizontais, separados por paredes verticais no escarpadas inclinadas. A dialética entre planos horizontais colocados a alturas diferentes põe em evidência um principio importante para toda a história da arquitetura que se segue: as medidas em elevação - as alturas -tem um peso diferente das medidas horizontais - comprimentos e larguras - e atraem uma vez mais a força da gravidade, que dificulta os movimentos em subida e facilita os movimentos em descida. Uma pequena distância entre SO níveis em elevação origina um efeito grandioso, em comparação com as distâncias existentes no terreno plano. A arquitetura das movimentações de terras adquire assim um papel central nos novos cenários inventados pelo homem, e, sobretudo, regula a colocação das construções de todos os tipos em relação ao suporte territorial. Para qualquer construção, pode escolher-se entre três situações, mantê-la ao nível do terreno circundante, elevá-la a um nivel superior ou encaixá-la um nível inferior; para realizá-las é preciso recorrer a três operações diferentes: aplanar o terreno, juntar material para obter uma elevação, ou retirar material para obter uma escavação. Se for possível, essas três operações tornam-se complementares, de modo a compensar entre si as movimentações de terras." BENÉVOLO e ALBRECHT 2002 pág.24
Essas operações correspondem a grande maioria dos sítios arqueológicos encontrados e pesquisados hoje em dia, nas mais variadas culturas e quadrantes do planeta no neolítico, cumprindo segundo teorias recentes; formas de contar o tempo para ordenar a colheita, tais como o nascer do sol, ou o por do sol, ou o solstício de inverno, ou solstício de verão. Arranjos articulados construtivos, paisagísticos em pedras, que muitas vezes envolvem territórios extensos e variados, tais como os túmulos sepulcrais na Dinamarca, ou os menires de Carnac na França, ou Stonehenge na Inglaterra, ou o sítio arqueológico em Caçuenes no estado do Amapá no Brasil. Enfim, antes de produzir sua própria habitação o homem do neolítico desenvolve implantações paisagísticas notáveis que permanecem para nós como enigmas, que são reduzidas por nossa razão instrumental; a formas de contar o tempo.
BIBLIOGRAFIA:
BENEVOLO, Leonardo e ALBRECHT, Benno - As Origens da Arquitetura - Edições 70 Lisboa, 2002
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