A capital do Império Inca, Cuzco e sua sobreposição de Patrimônios; pré colombianos e espanhóis |
No âmbito da disciplina de História e Teoria da Arquitetura 1, na contextualização das civilizações da antiguidade pré clássica, uma outra sociedade também foi apresentada aos alunos fora do eixo euro-cêntrico, o Império Inca. Uma organização social com alto desenvolvimento tecnológico, que também se articula com um acontecimento que é uma dádiva do planeta, o Vale Sagrado do Urubamba no altiplano dos Andes, assim como as sociedades que se desenvolveram em torno dos rios Tibre, Eufrates e Nilo, no Oriente Próximo. Uma síntese referente a um tempo posterior ao período estudado pela disciplina, mais vinculado ao período da Reforma e da Contra Reforma do Maneirismo europeu, a inserção de uma cultura pré colombiana cumpre o papel de abrandamento da vertente euro cêntrica de nossa matriz arquitetônica e urbanística, buscando a multilateralidade do desenvolvimento cultural. O Império Inca, nos coloca diante de um relato histórico que problematiza a visão centrada numa unidirecionalidade evolutiva e hegemônica da cultura ocidental europeia, questionando e oferecendo a visão de uma diversidade de desenvolvimentos que reforça a ideia de reavaliação da linearidade evolutiva das sociedades humanas. A multipolaridade do desenvolvimento das civilizações humanas, que na verdade não podem ser avaliadas como mais capacitadas ou menos, simplesmente pela manipulação de tecnologias destrutivas, ou de guerra.
Enfim, a sucessão factual da série histórica não nos autoriza a novas arrogâncias e certezas desmedidas, mas demanda um outro pensar, agir e atuar, que não condene ou celebre de forma mecânica e automática os impasses e opções por que passamos, mas nos cobra a conformação de formas de monitoramento e medição constantes que pautem de forma continuada nossa ocupação. O fato, é que a sociedade Inca com um domínio mais apurado de técnicas agrícolas e colheitas muito mais generosas será derrotada pelo Império Espanhol, no massacre da Batalha de Cajamarca, em 16 de novembro de 1532 mostrando-nos que, na verdade, o domínio de artefatos de destruição e guerra (o mosquete e o canhão) determinaram a sua derrota. Apesar da inferioridade numérica da Espanha, pois segundo relatos eram 168 espanhóis, 62 cavalos, vários mosquetes e um canhão, contra 30 mil soldados incas acampados em Pultumarca, nas proximidades da cidade inca de Cajamarca, na região da cordilheira andina (2.720 metros de altitude), no norte do atual Perú, próximo a fronteira do atual Equador. Francisco Pizarro era o espanhol que recebeu a nomeação do rei de Espanha como governador e capitão geral para promover a conquista do Vice Reinado do Perú era então o comandante das tropas espanholas. As armaduras, capacetes e espadas metálicas, os cavalos, os mosquetes e o canhão, artefatos e técnicas de longo desenvolvimento foram confrontados com boleadeiras, arcos e flechas, armaduras de lã de alpaca e ornamentos de ouro e prata. Na verdade, além das fragilidades de suas tecnologias bélicas, havia uma guerra civil em curso no Império Inca entre dois pretendentes ao trono; Atahualpa e Huáscar, filhos do imperador, que reinvindicavam a coroa para si, e que, fragilizaram a resistência a conquista espanhola. Esse silenciamento, ou a supressão das culturas, comportamentos e hábitos dos incas impacta nossa compreensão daquilo que consideramos o patrimônio a ser preservado e referenciado, determinando a unidirecionalidade emburrecedora da colonização. A proteção, preservação e a reavaliação da forma como gerimos a ocupação do território conforma a memória que temos de nós mesmos, sendo importante para nossa identidade.
"O que protegemos ontem é o que temos hoje. O que protegemos hoje é o que teremos amanhã." reflexão apresentada na aula da arqueóloga e professora Mariana Peltry Cabral sobre a elegibilidade do nosso patrimônio a ser preservado, contrapondo as imagens da Igreja setecentista na Serra da Piedade no município de Caeté MG e o sítio arqueológico de Calçoene, de população pré colombina no Brasil, no estado do Amapá. PELTRY 2021
A redenção de Cam (1897) do pintor Modesto Brocco representa o desejo do Embranquecimento da população do Brasil |
O que a professora Mariana Peltry Cabral nos mostra é que a valoração daquilo que elegemos para ser preservado é de suma importância para a promoção da diversidade dos nossos modus vivendi, dos relatos e narrativas que nos conformam. Em nossa história há uma sucessão interminável de fatos e acontecimentos que foram arbitrariamente apagados, e, que contam formas diferenciadas de apropriação do território. O Quilombo de Palmares, na serra da Barriga, no estado de Alagoas, que representa uma outra forma de gerir um território, e que, é suprimido em 20 de novembro de 1695 com a morte de Zumbi, o que isso representa como Patrimônio para a História do Brasil. O sítio de Bom Jesus de Canudos, no sertão da Bahia, que abrigou a revolta de Antônio Conselheiro, que envolvia 5 mil domicílios e 20 mil pessoas, e que, também foi suprimido pela forças do Estado brasileiro em 1897, na nossa primeira república. Ou, a própria história da escravidão negra no Brasil, que é até hoje apagada e suprimida por nossos representantes conservadores, que desejam embranquecer nossa cultura, nossos hábitos e nossos procedimentos. Todos nos mostram, que a história verdadeira integral, como destacou Antonio Gramsci no Caderno 25 do Cárcere, aquele dedicado ao estudo dos grupos subalternos, no qual está escrito; “...todo traço de iniciativa autônoma por parte dos grupos subalternos deve ser de valor inestimável para o historiador integral.” GRAMSCI 1934 Q25. E, mais a tentativa de caracterizar o outro, o desconhecido, o dominado como bárbaro, que foi tentado de forma recorrente pela historiografia oficial deve ser questionado:
“...Este era o costume cultural do tempo: em vez de estudar as origens de um acontecimento coletivo, e as razões de sua difusão, de seu ser coletivo, isolavam o protagonista e se limitavam a fazer sua biografia patológica, muito frequentemente partindo de motivos não comprovados ou passíveis de interpretação diferente: para uma elite social, os elementos dos grupos subalternos têm sempre algo bárbaro ou patológico” GRAMSCI 1934 Q25
A cantaria Inca de pedra é até hoje um mistério de precisão e apuro construtivo |
Mas muito longe de qualquer idealização, a estrutura hierárquica da civilização inca não era exemplo no que concerne a dominação de outros povos; o termo Inca significa "governante" ou "senhor", que em quechua era usado para se referir à classe dominante ou à família governante. Os incas em si compunham uma porcentagem muito pequena da população total do império, provavelmente numerando apenas 15 mil a 40 mil indivíduos, mas governando uma população de cerca de 10 milhões de pessoas. A federação desses povos diferenciados e plurais desenvolveram tecnologias de medir o tempo notáveis, muito mais precisas do que as europeias, o que lhes garantia uma manipulação muito mais precisa dos procedimentos de seleção de sementes, plantio, desenvolvimento e colheita, garantindo os excedentes alimentares. Os calendários incas estavam ligados à astronomia e a observação dos astros como constelações, o sol e a lua. Os astrônomos incas entendiam os equinócios, os solstícios e as passagens do zênite, assim como o ciclo de Vênus, a estrela mais brilhante em nossos céus. Eles não previam eclipses, e certamente es espantavam e se maravilhavam com esses acontecimentos. O calendário inca era essencialmente lunissolar, pois dois calendários eram mantidos em paralelo, um solar e outro lunar. Com 12 meses lunares ficam 11 dias aquém de um ano solar completo de 365 dias, sendo que os responsáveis pelo calendário tinham que ajustá-lo a cada solstício de inverno. Cada mês lunar era marcado com festivais e rituais, tais procedimentos ainda representam mistérios para a nossa sociedade contemporânea, havendo hipóteses de que tais calendários - lunares e solares combinados - acabavam por representar maior sintonia com os ciclos do milho, da batata, da quínua, ou das suas criações, Lhamas e Alpacas. Aparentemente, os dias da semana não eram nomeados e os dias não eram agrupados em semanas. Da mesma forma, os meses não eram agrupados em estações. O tempo durante o dia não era medido em horas ou minutos, mas em termos de distância percorrida pelo Sol ou de quanto tempo levava para uma tarefa de plantio e de pastoreio.
Aspecto Geral de uma rua de Cuzco, a arquitetura colonial ibérica sobre a base da cantaria Inca |
Os incas fizeram muitas descobertas na medicina, eles realizavam trepanações bem-sucedidas, cortando orifícios no crânio para aliviar o acúmulo de fluido e a inflamação causada por ferimentos na cabeça. As taxas de sobrevivência eram de 80-90%, em comparação com cerca de 30% antes dos tempos incas. Os incas reverenciavam a planta da coca como sagrada e mágica, pois o mascar de suas folhas eram usadas em quantidades moderadas para diminuir a fome e a dor durante o trabalho, sendo também muito usadas principalmente para fins religiosos, nos festivais do solstício e em ritos de saúde. Possuíam também um complexo sistema de contabilidade ligado ao controle da produção de bens Agrários e Pastoris, que era o Quipu Inca, uma espécie de ábaco, feito a partir de uma sucessão de noz em fios de tecido. A tecelagem e a confecção de roupas a partir da lã de Alpaca e Lhama eram muito desenvolvidas, e até hoje ainda movimentam teares e apetrechos compartilhados pelas populações quechua e aymara no Equador, Perú e Bolívia. A alvenaria de pedra das cidades incas encontradas pelos espanhóis e ainda hoje presentes em cidades como Cuzco, Olantaitambo ou Machu Pichu representam um mistério com relação a forma do corte e seu acabamento final. Muitas pedras apresentam várias arestas, assentadas sem argamassa onde não é possível se quer se inserir uma lâmina fina de faca moderna. Há teorias que apontam para a maior adequação desses procedimentos construtivos às instabilidades geológicas dos Andes, inclusive o terremoto de 1986, na cidade de Cuzco revelou que o Convento dos Franciscanos estava sobre o Antigo Templo de Coricancha em homenagem ao Sol, e que, abriu um amplo campo de explorações arqueológicas na antiga capital Inca. Uma das imagens mais marcante das cidades do Vale Sagrado, na região de Cuzco, que receberam edificações ibéricas é justamente esta sobreposição de processos construtivos. Uma expressão particular e única do maneirismo ibérico, que combina uma interação, dominação e sobreposição mostrando-nos que no campo da cultura a fusão visual dos elementos é recorrente. Ao final, uma síntese única e particular, que numa analogia por exemplo, com uma escola de pintura, a Cuzquenha, que ocorre ao mesmo tempo e lugar, mostrando-nos que o hibridismo prevaleceu. A combinação de um lirismo com uma religiosidade exagerada e excludente acaba nos demonstrando um traço único de uma América Latina dramática, que aparece eternamente envolta num sonho utópico, que nos traga de novo a ingenuidade dos povos primitivos.
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