A manutenção da brasa acesa como única forma de domínio do fogo |
"A cidade segundo sentença dos filósofos é como uma casa grande, e vice versa, a casa é uma pequena cidade... As coisas públicas pertencem a todos os cidadãos; é sabido que a importância e a razão de fazer cidades deve ser esta: que os habitantes vivam em paz, e dentro do possível livre de incômodos, livres de toda moléstia. E sem dúvida se deverá considerar e novamente examinar desde o princípio em que lugar, em que situação e com que muralhas se deve fazer." PATETA 1997 página77
A tomada de consciência da formulação de utensílios humanos a partir do barro |
"E finalmente ao eleger o sítio para construção da Vila deve se fazer todas aquelas considerações que se fizeram para eleger o sítio para a cidade: posto que a Cidade não é outra coisa que uma casa grande e, ao contrário, a casa é uma cidade pequena." Andrea Palladio Os quatro livros da Arquitetura 1570, página46 do livro II in PATETA 1997, página 77
A aglomeração de cabanas de uma tribo primitiva protegidas e resguardadas de inimigos pelo pântano |
"De fato, cada obra não apenas resulta de um conjunto de relações, mas determina por sua vez todo um campo de relações que se estendem até o nosso tempo e o superam, uma vez que, assim como certos fatos salientes da arte exerceram uma influência determinante mesmo à distância de séculos, também não se pode excluir que sejam considerados como pontos de referência num futuro próximo e distante. Basta lembrar a arte pré-histórica e primitiva..." ARGAN 1992 página 15
Imagem da cabana da tribo sedentária do filme A Guerra do Fogo, mostrando técnicas de vedação a partir do couro e do barro |
Ao longo do filme também percebe-se diferentes tipos de clãs e grupos humanos, que além de guerrearem entre si também se relacionavam, inclusive sexualmente, com diferentes conotações, que denotam que o intercâmbio humano entre diferentes bio-tipos é a verdadeira fortuna da humanidade. De certa forma, essa característica que será enfatizada com o sedentarismo e a revolução agrícola, ocorrida segundo a periodização dominante entre 18.000 e 4.000 anos antes de Cristo. Essa tendência é anunciada pelo filme como uma presença já existente entre os grupos humanos, e que será claramente impulsionada pela posterior revolução urbana, 4.000 anos antes de Cristo. Particularmente, no episódio que levanta a hipótese de cobrança e obrigatoriedade pelo grupo sedentário ao membro do grupo da caverna para que fertilize as suas mulheres mais gordas e avantajadas. Ao mesmo tempo, tal tendência está longe de ser romantizada pelo filme, como uma ética humana determinada naturalmente, pois há menção inclusive a práticas antropofágicas, que ocorreriam não entre os iguais, mas entre os diversos. Há, também uma certa diferenciação pré-conceituosa, no universo intra-comunidade, envolvendo portanto semelhantes no episódio, que claramente mostra o tratamento diferenciado às mulheres mais magras do clã, que são preteridas na pretensa seleção reprodutiva da tribo sedentária. O fato é que o filme claramente apresenta a hipótese de busca por uma seleção reprodutiva controlada, por parte da comunidade sedentária, que visa o aprimoramento da constituição física e estrutural das futuras gerações. Será, que tal episódio pode ser comprovado pelos vestígios e rastros deixados por nossos antepassados, nos sítios arqueológicos existentes? Ou, como uma ética das relações humanas deve incluir sempre como premissa o livre arbítrio e a escolha do indivíduo, frente até as determinações do grupo? Importante, destacar que o argumento ou narrativa é plausível, mesmo que pendente de comprovação factual pelo sítio arqueológico ou vestígio, mostrando-nos que a história, seja pré escrita ou pós escrita está aberta as nossas leituras e narrativas.
"Direi agora brevemente, o que é que creio que seja a arquitetura. Arquitetura em sentido positivo, para mim, é uma criação inseparável da vida e da sociedade na qual se manifesta; em grande parte é um feito coletivo. Ao construir suas habitações, os primeiros homens realizaram um ambiente mais favorável para suas vidas ao construir-se um clima artificial, e construíram de acordo a uma intencionalidade estética. Iniciaram a arquitetura, junto com os primeiros indícios da cidade; de essa maneira, a arquitetura é co-natural com a formação da civilização, e é um feito permanente, universal e necessário. Seus caracteres estáveis são a criação de um ambiente mais propício a vida e a intencionalidade estética." ROSSI, in PATETA 1997 página75
Mas, além da comprovação o fato é que somos uma espécie, que claramente apresenta fragilidades com relação a sua reprodução e manutenção, frente ao mundo natural, que foram compensadas exatamente pelo compartilhamento de saberes e tecnologias. Efetivamente, o ser humano nasce extremamente dependente das gerações mais velhas, forjando sua independência natural a partir dos cinco anos de idade ou mais, afinal sua conformação cerebral, por exemplo, estará plenamente constituída apenas a partir dos dois anos de vida, e, na dependência da recepção adequada de alimentos e proteínas. Mas, o filme explora claramente a marcação das diferenças entre os grupos humanos, que é feita por diferentes sinais corporais e faciais, tais como; mais ou menos pêlos, a presença de um certo prognatismo de sobrancelha e queixo ou sua ausência, a utilização de vestiário ou não, dentre outros. Esses grupos, dominam e possuem diferentes acessos a tecnologias de apropriação do fogo, mas também de construção de moradias e do seu agrupamento, bem como de sua defesa e do cultivo de plantas, frutos e sementes. É representativo da questão do domínio do território e da escolha do melhor local para a aglomeração de moradias - uma vila, ou mini cidade - no episódio da aproximação de um membro do grupo que vive em cavernas, do grupo, que já produz sua habitação, com uma estrutura de galhos flexíveis e vedação com peles, couros de animais e barro. O episódio nos mostra um representante de um grupo de estatura e compleição física mais avantajada (o grupo da caverna), que é capturado pelo pântano, e é submetido a uma sub imersão progressiva pelo alagado. Tal fato, denota o domínio da tecnologia da escolha do sítio para a aglomeração das barracas a partir de uma estratégia de defesa, a partir da utilização do alagado natural, que fragiliza os indesejados visitantes, desconhecedores das sutilezas do caminho seguro à vila. Como uma muralha da cidade medieval, ou como a Laguna da cidade de Veneza percebe-se a estratégia da escolha do lugar da aglomeração como um conhecimento, ou o domínio empírico experiencial da defesa da aldeia frente aos estranhos.
"A arquitetura consiste de algum modo em ordenar o ambiente que nos rodeia, oferecer melhores possibilidades ao assentamento humano, portanto, as relações que tem a missão de estabelecer são múltiplas, inter atuantes entre si; se referem ao controle do ambiente físico, a disposição de certas possibilidades de circulação, a organização das funções, de seu agrupamento ou segregação de suas relações; responde a certos critérios econômicos, se move em, e move, certas dimensões tecnológicas, provoca modificações na paisagem, etc... Mas organizar estas relações é algo completamente diferente de sua simples soma, é o significado que deriva do modo de lhe dar forma, é colocar-se dentro da tradição da arquitetura como disciplina, com um novo gesto de comunicação, com uma nova vontade de transformação da história." GREGOTTI in PATETA 1997 página 75
Enfim, o Filme a Guerra do Fogo coloca nos a questão de um debate fundamental inserido em nossa contemporaneidade; a quem pertence o desenvolvimento das técnicas, que criam um ambiente mais favorável a vida humana, com intencionalidade estética? A quem pertence o tijolo, a taipa de pilão, o solo cimento, a telha moderna de barro, a esquadria de madeira ou PVC, tecnologias, que assim como a geração do fogo foram gestadas pela humanidade num longo processo de compartilhamento. A arquitetura é um fato "permanente, universal e necessário", garantir que seu acesso seja universalizado a todos os membros da espécie humana, talvez seja o maior desafio colocado para o nosso ofício em nossos tempos contemporâneos. Tal objetivo é muito mais fácil de ser atingido, a partir da premissa da colaboração, solidariedade e do compartilhamento comunitário, do que pela competição desenfreada, ou pelo conflito de todos contra todos.
BIBLIOGRAFIA:
ARGAN, Giulio Carlo - História da Arte como História da Cidade - Editora Martins Fontes, São Paulo 1992
PATETA, Luciano - Historia de la Arquitectura, Antologia Critica - Editora Herman Blume, Madrid 1997
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