"Odeio os indiferentes [...] acredito que viver significa tomar partido. Não podem existir os apenas homens estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes." GRAMSCI
Capa do livro Projeto e Utopia de manfredo Tafuri |
Há muito que a objetividade produtivista luta pela captura da projetação e do planejamento, o gerenciamento e as metodologias de desenvolvimento de planos e projetos ficam presas ao desenvolvimento comportado e mediocrizante, soterrando as aspirações, desejos e promessas dos agentes envolvidos em nome do cumprimento de uma meta, que ao final perde substância, e frustra expectativas. E, na verdade é esta substância forjada pelo próprio processo - desejos, vontades de novas práticas e aspirações de novos mundos -, que nos interessa; o engendramento de uma outra existência que passa a ser compartilhado, na medida em que o plano e o projeto avançam. Mas isso significa considerar as ações de Plano e Projeto como autônomas, ou intelectualmente críticas e livres das determinações impostas pelo sistema produtivo geral. A alienação do trabalho e pelo trabalho envolve os mais diversos profissionais, que seguem numa reprodução repetida e pouco criativa de práticas, mesmo em atividades que cobram dos agentes inovação e novos procedimentos como no campo da arquitetura e do urbanismo. Aqui há necessidade de reflexão sobre o momento doutrinário e o momento manual ou operacional de se pensar o vir-a-ser, a distinção dos dois momentos não significa a perda de correlação, mas sua representação integral aonde decisão e ato correspondem a uma interpretação histórica plena e consciente. Desde o século XV, no renascimento italiano e mesmo na Idade Média tardia era esse o debate entre as artes liberais e mecânicas, onde a consciência do agir se articulava com a leitura histórica do processo humano geral. Tais questões povoam o Tratado de Re Aedificatoria de Leon Battisti Alberti (1404-1472), que fustiga a questão da auto determinação coletiva dos povos, a partir do plano e do projeto.
"Dera-se conta de que aqueles fatos rompiam a tradicional relação existente entre o momento doutrinal e o momento operacional e manual da arte; não havia mais continuidade, e sim distinção e correlação de dois níveis, o da idealização, ou da teoria, e o da prática. Entre os dois momentos, existe a mesma relação que, no agir "histórico", há entre a decisão e o ato, uma relação pela qual o ato não tem valor a não ser que dependa de uma decisão da mente, assim como, a decisão não tem valor a não ser que se cumpra no ato. Explica-se, assim o propósito albertiano de trazer a arte de volta a mímese clássica; se a imitação deve ser um processo intelectivo, e não apenas mecânico, é preciso que não seja cópia, mas representação, e obedeça às leis, ao princípio teórico da representação como modo de conhecimento." ARGAN 1992 página109
Seria isso possível, ou uma utopia delirante? Para tal, o planejamento e a projetação precisam abandonar a indiferença e se comprometer com a política, pensada a partir do pressuposto de que ninguém deve ser deixado a margem. Antonio Gramsci, considerava a previsibilidade como um direito humano, uma condição que na verdade nos humanizava a medida que se tornava acessível a todos, na verdade, ele considerava, àqueles que não a desfrutavam viviam sobre condições inumanas. Realmente, a incapacidade de pensar sobre uma nova residência, um outro bairro, ou até uma outra cidade, ou mesmo uma viagem, um filho, um casamento, ou uma aposentadoria bloqueia nossa humanização, nos mantendo sem o devido desfrute do desenvolvimento humano. Recentemente, o poeta Mia Couto escreveu um belo texto sobre o medo, em clara contraposição a esperança, dizendo nos da fomentação pelo poder instituído da disseminação dos riscos de se pensar outros mundos. A onda conservadora, que se estabeleceu no mundo recentemente trabalha exatamente com o medo de outras possibilidades de existência humana; o socialismo, o comunismo, uma sociedade mais solidária e democrática devem ser desacreditadas pelo medo ao inusitado. O medo não é um bom companheiro, quando pensamos o nosso futuro, principalmente porque o poder instituído está sempre a promover o medo em relação aos novos poderes, sejam eles; a des hierarquização da sociedade, a democracia radical, ou a busca por maior equidade. "Para fabricar armas é necessário antes produzir inimigos", e não há melhor inimigo, que o desconhecido, o outro que não conhecemos, sejam "eles"; os chineses que comem crianças, Karl Marx e suas ideias, ou Paulo Freire e a pedagogia do oprimido. Há no mundo contemporâneo, uma presença imensa de dados sem sentido manipulados pelas Big Techs, que nos apresentam a eles a partir de interesses comerciais pouco transparentes, que só ampliam essa sensação do medo.
"A invenção da propaganda dirigida por parte do Google foi pioneira em termos de sucesso financeiro, mas também assentou o alicerce de uma consequência muito maior: a descoberta e elaboração do capitalismo de vigilância. Seus negócios se caracterizam como um modelo de publicidade, e muito foi escrito acerca dos métodos de leilão automatizados do Google e outros aspectos de suas invenções no campo da publicidade on-line. Com tanta verborragia, esses desenvolvimentos são ao mesmo tempo superdescritos e subteorizados." ZUBOFF 2020 página 83
O medo, a partir do Atentado das Torres Gêmeas em Nova York, generalizou e oficializou o acesso às nossas privacidades, colocando nosso cotidiano mais íntimo disponível para as Big Techs, que os comercializam a nossa revelia de forma intensa. Nos novos negócios engendrados pelas novas tecnologias há também a presença da alienação, agora não só do trabalho, mas também de nossas buscas e interesses, que passam a ser vendidos a nossa revelia. Nos manuscritos econômico-filosóficos que foram escritos por Karl Marx (1818-1883) entre março e agosto de 1844 em Paris, portanto quando tinha apenas 26 anos, e quando o autor acabara de ser exilado da Confederação Alemã, por seus artigos no jornal Rheinische Zeitung, a Gazeta Renana (1). Há nos Manuscritos uma importante abordagem sobre questões que partem da economia política a partir de categorias dos mundos da vida, tais como; salário, ganho de capital (lucro) e renda fundiária e chegam a uma visão mais genérica e absoluta de ordem filosófica. A visão de Marx persegue a desnaturalização de práticas gerais cotidianas dos industriais, dos trabalhadores e dos proprietários de terra, que enxergam os processos de lucro, exploração do emprego e valorização de forma mecânica e natural. Mas, que na verdade, precisavam de um arcabouço artificial de leis e normas estabelecendo as novas formas capitalistas da subjetividade, indo contra as noções de Comum e de Solidariedade, que estavam e ainda estão arraigadas em nosso senso compartilhado de justiça. A categoria da alienação é confrontada com os pensamentos de Hegel e Feuerbach, e passa a ser historicizada na sua processualidade sócio material, como trabalho onde não há mais reconhecimento do trabalhador.
"A alienação do sujeito recebe um novo trato: deixa de ser a objetivação universal e necessária (como em Hegel, que identifica objetivação com alienação) e não se reduz a um produto da consciência (como em Feuerbach). Se em Hegel a supressão da alienação equivale a supressão da objetivação, nos Manuscritos a objetivação só é alienação em condições históricas determinadas - nas condições próprias à existência histórica da propriedade privada (com suas conexões com a divisão do trabalho, a produção mercantil e o trabalho assalariado). Se em Feuerbach ela se mostra privilegiadamente na consciência religiosa, nos Manuscritos esta é, antes, uma dentre várias condições sócio históricas muito determinadas." NETTO 2020 página 104
E aqui, é preciso firmar que essas condições sócio materiais não impactam apenas o trabalho braçal e mecânico, as artes mecânicas, mas também o trabalho intelectual, ou as artes liberais, que de certa forma, escapavam dos manchesterianos Marx e Engels. De acordo, com Manfredo Tafuri (1935-1994), o que era necessário era (re)historicizar os processos, formas e possibilidades do trabalho intelectual, que sempre esteve ligado às condições impostas pela evolução do desenvolvimento capitalista. Por isso, TAFURI (1985), assim como FORTINI, viu na atividade de investigação histórica (que as vanguardas modernas desde o Renascimento sempre rejeitaram como uma pré-condição de seus projetos) a ferramenta mais poderosa para interrogar os efeitos do desenvolvimento capitalista sobre a agência e a atuação intelectual. Para (re)historicizar as mentalidades intelectuais significava que o local político da luta era o pensador trabalhar a si mesmo em termos de suas qualificações, seus modos de ser especializado, sua capacidade de conectar informações e gerar formas sintéticas, em cada ciclo de produção, pois o sistema sempre definiu um novo mandato para o papel social de intelectuais. Para TAFURI (1985), tal análise deveria fornecer uma forma inevitavelmente ideológica, pois essa presença no sistema seria insuperável, fazendo da compreensão uma possibilidade sempre parcial para a ação (intelectual). Nesse sentido, é interessante observar como, hoje, as reflexões de TAFURI (1985) vêm inesperadamente (e paradoxalmente) estar muito próximas, por um lado, de slogans neoliberais, como "trabalho criativo" e a pretensa autonomia do plano e do projeto. E, por outro lado, e de forma não mais paradoxal, para as discussões do movimento pós-Operaístas da Itália dos anos oitenta sobre as possibilidades de cognições do trabalho como centro dos modos de produção pós-fordistas. Mas enquanto essas posições absorveram completamente o produtivo status de conhecimento, o crítico italiano concentrou a atenção na pressão dos pontos dentro do desenvolvimento capitalista na cultura intelectual, problematizando o desenvolvimento. É impressionante as conexões levadas a cabo pelo crítico italiano, num mundo anterior a emergência da hegemonia neo-liberal, que hoje vivemos e do qual, parece que não nos desvencilhamos.Essas são questões complexas, que na verdade envolvem; alienação, objetividade, subjetividade, construção utópica compartilhada, que povoam as ações do plano e do projeto desde tempos imemoráveis. O que me parece claro é o enorme retrocesso que sofremos nesse campo desde a emergência do neoliberalismo, as décadas de sessenta, setenta e oitenta do século XX apontavam novas possibilidades produtivas, mediadas por um profundo reformismo, que hoje aparece solapado pela ética do capitalismo único. Tais condições tem determinado imensos índices de concentração de renda, e uma sensação de proximidade de um desastre de escala planetária, onde o futuro das próximas gerações é colocado em risco por um desenvolvimento predatório. O campo do plano e do projeto precisa problematizar essas questões urgentemente, do contrário estaremos caminhando para a supressão do mosso gênero.
NOTAS:
(1) O Rheinische Zeitung foi um jornal de um cunho reformista e liberal, que se opunha ao autoritarismo prussiano, na cidade de Colônia. O jovem Marx escreveu textos contra a censura da imprensa, o conflito entre o arcebispado de Colônia e o governo, a legislação sobre o divórcio, a miséria dos vinhateiros do Mosela e a questão do furto de madeira naturalmente caída nas florestas recém cercadas, que haviam sido criminalizados pelas leis burguesas, que já foi comentado aqui no blog. Em outubro de 1842, Marx se transforma no editor chefe da Gazeta Renana, nesse momento o número de assinantes do jornal que era de 800, em novembro sobe para 1.800, e em dezembro para 3.400 assinaturas.
(2) AURELLI 2010, num texto com o título de, Recontextualizing Tafuri's Critique Of Ideology, aponta as iniciativas da Olivetti, na busca de outro arranjo produtivo; "O protótipo cultural desta onda do reformismo socialista foi a afirmação de Adriano Olivetti na revista da empresa "Comunità", de uma tentativa de transformar uma fábrica em um campus cultural que elevou a produção como possível habilidade de uma sociedade socialmente sustentável e culturalmente articulada na comunidade. Olivetti envolveu não apenas gerentes, mas também artistas, designers e escritores no trabalho em sua fábrica. A intenção da Olivetti era demonstrar, por um lado, a natureza intrinsecamente racional da produção e por outro a possibilidade de um novo humanismo social baseado no desenvolvimento da indústria." (tradução minha do texto original a seguir); "The cultural prototype of this wave of socialist reformism was the affirmation of Adriano Olivetti's "Comunità," an attempt to transform a factory into a cultural campus that elevated production as the possibility of a socially sustainable and culturally articulated community. Olivetti involved not only managers but also artists, designers, and writers in the work at his plant. The intent of Olivetti was to demonstrate on the one hand the intrinsically rational nature of production and on the other the possibility of a new social humanism based on industrial development."
BIBLIOGRAFIA:
ARGAN, Giulio Carlo - História da Arte como História da Cidade - Editora Martins Fontes São Paulo 1992
AURELLI, Pier Vittorio - Recontextualizing Tafuri's Critique Of Ideology - Anyone Corporation, https://www.jstor.org/stable/41765325
NETTO, José Paulo - Karl Marx, uma biografia - Boitempo São Paulo 2020
TAFURI, Manfredo - Projeto e Utopia, arquitetura e desenvolvimento do capitalismo - Editora Presença Lisboa 1985
ZUBOFF, Shoshana - A era do capitalismo de vigilância, a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder - Editora Intrinseca Rio de Janeiro 2020
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