sábado, 11 de dezembro de 2021

Hans Georg Gadamer, a interpretação do mundo e a hermeneutica

Wassili Lepanto entrevista Hans George
Gadamer em 2000
O filósofo Hans-Georg Gadamer (1900-2002) é uma forte referência quando falamos da interpretação de textos ou da nossa capacidade de apreensão do mundo que nos rodeia, a partir de uma constatação simples e precisa; a interpretação se localiza num horizonte mútuo entre intérprete e coisa a ser interpretada. Isso significa assumir que a verdade ou a realidade, particularmente nas ciências humanas, não é reduzível a um método, mas aquilo que acontece no diálogo, expresso pela linguagem entre sujeito e objeto pesquisado. Tenho me aproximado de Gadamer, a partir do momento que passo a ministrar no Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU) da UFF a disciplina Seminário de Dissertação. Minha primeira aproximação, com esse filósofo se dá pela abordagem do problema da consciência histórica, e que foi diferenciado do estruturalismo, num texto, Os modos do Discurso da teoria da arquitetura de Carlos Antônio Leite Brandão, professor da UFMG. Neste texto, há a caracterização do modo hermenêutico como uma categoria de abordagem do fenômeno arquitetônico e urbanístico, seja em seu desenvolvimento histórico, na sua produção contemporânea, ou ainda como realidade a ser abarcada ou interpretada. É verdade, que desde minha tese de doutorado, Projeto, Ideologia e Hegemonia, em busca de um conceito operativo para a cidade brasileira, trabalho com a idéia de que o projeto e o plano são uma interpretação do real, que se arrisca no vir-a-ser a partir da análise do contexto, dos recursos, dos desejos e das expectativas de construção de um outro mundo. O que, sempre me posicionou diante do plano e do projeto, como ações que pretendem sintetizar o mundo existente, a partir de uma atitude prescritiva. A intenção e adequação do proposto - plano e projeto - nasce do diálogo das condições objetivas analisadas e interpretadas com as demandas do que o lugar quer vir-a-ser. Na verdade, nessa esfera há um forte investimento no prescritivo ou no prognóstico, que impulsionado pelo descritivo ou pelo diagnóstico se aventura a oferecer a figuração de um outro mundo.

"Para Gadamer, a verdade não é um método, mas simplesmente aquilo que acontece no diálogo. Atos de interpretação são dialógicos, uma conversação constante dentro da tradição. O intérprete projeta o significado provisional, mas estes são desarranjados e re-definidos quando os próprios preconceitos do intérprete são questionados pelo horizonte do texto ou pelo parceiro no diálogo. Basicamente, Gadamer alega que os significados nunca podem ser completos. Uma outra consequência da 'fusão dos horizontes' (1) de Gadamer é um relacionamento re-definido com o passado. Se todo entendimento é diálogo, então é tanto uma conversa com o passado quanto com o futuro." LAWN 2007, página13

Aqui inicialmente, é preciso destacar que a hermenêutica era historicamente desde a Idade Média a ciência da interpretação dos textos sagrados, particularmente os da Bíblia, ou dos textos do Direito Romano. Gadamer anda em direção a tradição da leitura, e por isso mesmo reafirma que estamos inexoravelmente imbricados na linguagem e na cultura, no entanto desdenha da ideia de que podemos desviar de nossos próprios pontos de referência para alcançar a verdade, que está muito presente no pensamento moderno particularmente a partir de René Decartes (1596-1650), no livro O Discurso sobre o Método, para bem dirigir a própria razão e procurar a verdade nas ciências. O Iluminismo considerava que a razão, separada da perspectiva histórica e cultural representava uma condição plenamente alcançável, a partir do rigor metodológico, Gadamer usa da ideia da interação entre objeto e intérprete como uma hermenêutica filosófica, e caracteriza o ganho dessa interpretação como um círculo hermenêutico. Destrona-se a razão, como posicionamento arrogante e absoluto, para recolocá-la numa posição de impulsionadora de uma revelação ou desvelamento em processo contínuo, onde intérprete e coisa interpretada entram no compartilhamento de horizontes mutuamente. Nessa questão, o discurso de Aristóteles sobre a sabedoria prática - phronésis - é uma clara referência para Gadamer, o filósofo grego afirmava que a medida, que nos tornamos moralmente orientados passamos a estar habituados a regularidades. Essas regularidades eram uma zona de conforto bloqueadora do verdadeiro conhecimento, que precisa se aventurar na busca de apreensão do real, com disposição de reconhecer sua parcialidade e eterna incompletude. É nesta tensão entre novidade e hábito que Gadamer situa o círculo hermenêutico, localizando o entendimento do mundo não na privacidade da consciência, mas sim através da nossa condição de estar ou ser no mundo. Gadamer foi aluno de Martin Heidegger (1889-1976) e, essa questão está presente em O Ser e o Tempo, havendo aqui a típica busca da essencialidade do fenômeno, que envolvia um certo mergulho na processualidade do pensamento, ou nossa interpretação, situada dentro de um horizonte mútuo entre intérprete e coisa a ser interpretada, que se relacionam e se modificam mutuamente. 

"Não podemos encontrar um ponto arquimediano fora da cultura e linguagem em nossa busca pela verdade, pois assim como nossos preconceitos, as condições de entendimento fazem parte daquilo que procuramos tornar compreensível. O questionamento de Gadamer do método racional rejeita a opinião de que a razão existe por trás da linguagem." LAWN 2007 página14 

Assim, tudo é interpretação e diálogo, podendo ser uma conversa com o passado, com o presente, assim como também, com o futuro, que só deixa transparecer seus vestígios na medida em que a experiência comum se desenvolve. Portanto, o que me parece, que Gadamer questiona no método é a existência de um ponto neutro euclidiano capaz de fazer que a razão se autonomize da linguagem, ou dos pré conceitos que carregamos. Ou mesmo, de sua capacidade de formular o futuro de forma convincente e persuasiva, sem os vestígios ou evidências que a história, a tradição e o passado nos indicam pela sua perspectiva. Enfim, acho que Gadamer é um filósofo da linguagem assim como Ludwig Wittgenstein (1889-1951), que consideram a língua como estrutura básica do nosso pensar, e portanto perpassada pelas limitações de cada uma das nossas construções linguísticas. Por isso, mesmo que há uma sútil distinção com o estruturalismo, que o texto de Carlos Brandão pontua, dizendo que o estruturalista se detém no signo, enquanto a hermenêutica se concentra no sentido. Há aqui um reconhecimento, de que o pensamento que toma sentido é justamente aquele que foi captado pela linguagem, expresso por palavras construtoras de sentido. A verdade, que para os gregos era denominada pelo termo "alétheia", onde "letheia" é o véu, e "a" sua retirada ou o seu "des", e, indicavam a processualidade da sua busca, como algo que se revela, se reportando à dinâmica de transformação do ser. Há uma relação complexa com a tradição e com nossas pré concepções, que são consideradas como presenças as quais não nos desvencilhamos de forma fácil. Na verdade, o livro mais importante de Gadamer, que tem como título; Verdade e Método de 1989, poderia ter sido Verdade ou Método, pois percebe-se uma clara tensão entre esses dois conceitos.

"A estrutura de Verdade e Método, como três grandes secções, é baseada, na realidade, em três experiências básicas da verdade: arte, entendimento histórico e linguagem. A parte 1 é intitulada: 'A questão da verdade quando emerge na experiência da arte'; a parte 2: 'A extensão da questão do entendimento nas ciências humanas' e parte 3: 'A mudança ontológica das hermenêuticas orientadas pela linguagem.'" LAWN 2007 página 84

Na verdade, me parece há uma sobrevalorização da ideia de experiência, ou do fenômeno, que se materializam no nosso confronto com a arte, com a história e com a linguagem, que poderia ser reduzido ao sentimento, à consciência do nosso tempo e à vontade de captar o real pela sua expressão. A verdade deve portanto ser algo experienciado, não podendo ser algo que observamos a uma certa distância, ou de maneira científica, classificada como objetiva, e colocada além da subjetividade, mas isso não significa ser enquadrado na filosofia empírica. Pois como reforça Gadamer na "experiência hermenêutica" somos constantemente surpreendidos pelo encontro entre o familiar, a tradição e o desconhecido. Daí a relevância e a sua atenção com o movimento constante e de certa forma insolúvel entre a parte e o todo diante de qualquer obra ou acontecimento, como a exploração das verdadeiras novas possibilidades abertas pela leitura de um poema. A cada vez que lemos o poema abrem-se novas linhas de questionamento e possibilidades, que ainda não apareciam expressas, como algo aberto e revelado, como na noção platônica de alétheia. Enfim, num campo como o da Arquitetura e do Urbanismo, dito das ciências sociais aplicadas, Gadamer nos oferece uma forma de enfrentamento da pesquisa não dogmática e bastante criativa, na qual a arte me parece cumpre um papel central.

(1) A ideia de "fusão de horizontes" está presente na proposição de interpretação de Gadamer, a partir da hermenêutica, onde há o horizonte do intérprete e o horizonte do texto, objeto, ou coisa a ser interpretada. A fusão seria um processo complexo envolvendo estranhamento e identificação entre sujeito e objeto, intérprete e texto, que culminaria na interiorização do sentido ou do significado no nível do hábito.


BIBLIOGRAFIA:

BRANDÃO, Carlos Antônio Leite - Os modos do Discurso da teoria da arquitetura - http://www.arq.ufmg.br/ia/teoria.html 
DECARTES, René - O discurso sobre o Método, para bem dirigir a própria razão e procurar a verdade nas ciências  - Editôra Hemus São Paulo 1998
LAWN, Chris - Compreender Gadamer - Editora Vozes Petrópolis 2007
LEÃO, Emanuel Carneiro - Martin Heidegger - Tempo Brasileiro Rio de Janeiro 1977

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