Felipe na aula de informática do Centro de Desenvolvimento
Humaitá, seu colégio
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Por exemplo, ultimamente ele desenvolveu uma forma peculiar de me chamar a atenção, a partir de um farejo, que repete duas inspirações respiratórias pelo nariz, numa imitação do comportamento canino típico, que me parece tem esse sentido muito mais apurado do que nós. É estranho, mas Felipe age como se bastasse sentir o cheiro para pressentir ou mapear, como foi o meu dia, quando retribuo com a mesma sonorização, ele apenas ri, como se aquele nível de conecção fosse suficiente para estabelecer uma comunicação completa, voltando para seu mundo de silêncio. Nos últimos tempos, mais ou menos de uns três meses para cá, Felipe parece ter feito um voto de silêncio completo, não repetindo mais algumas das ecolalias* típicas suas, que ele repetia, como; "cadê o pinguim", ou "no copo...", ou ainda "fecha a geladeira". Elas derivaram de situações concretas demandadas ou cobradas ao Felipe em interações ou reprimendas de comportamentos seus, que ele próprio introjetou como suas. E, apesar dessa origem racional, essas repetições de palavras ou expressões me parecem muito mais tentativas de Felipe de chamar a atenção sobre si mesmo, num mundo que cobra cada vez mais de todos, uma ênfase de expressão num contexto cada vez mais sobrecarregado de mensagens, e, por isso mesmo, sem muita disponibilidade para a audição. É interessante assinalar, que a primeira das ecolalias corresponde a uma animação presente no Youtube, de nome Pingú, que retrata uma família de pinguins, e que ele busca de forma recorrente na internet de forma obsessiva. O interessante é, que a linguagem dos personagens dessa animação não é verbalizada, mas feita a partir de entonações variadas de grunhidos, que nos permite claramente entender o caráter e o sentido da interação. A segunda e a terceira, correspondem a uma reprimenda repetida por mim e meu falecido pai, quase ad infinito, para que Felipe não bebesse mais água direto da garrafa, mas usasse o copo, e não deixasse a geladeira aberta. O interessante é que a partir de um certo momento me parecia, que Felipe usava o artifício da repetição dessas reprimendas, para mais uma vez chamar atenção sobre si, esperando a repetição da ladainha com uma ponta de sorriso, e uma conclusão; "chamei a atenção para mim".
Existem algumas pesquisas, que apontam uma emergência de uma epidemia de autismo, principalmente nos EUA, onde o registro foi consolidado sobre a sigla TEA, Transtorno do Espectro Autista. A condição foi identificada em 1943, por um psiquiatra Leo Kanner nos EUA, e de forma simultânea na Austria por Hans Asperger, que distinguiram na sintomatologia autista o registro da causa biológica, por descobrir, e o das dificuldades que essa criança coloca para os pais. Mas, a partir dos anos cinquenta do século XX a notificação do distúrbio aumenta de forma progressiva e crescente. Em 1957, nos Estados Unidos, uma pessoa em cada cinco mil era considerada autista, já em 2002, uma em cada 150 era diagnosticada como autistas, dez anos depois, em 2012, os números subiram ainda mais, mostrando uma pessoa autista em cada 68. Hoje, a proporção está em um caso para cada 51 neuro normais, o que me parece uma classificação bastante elástica. A classificação se ampliou e se generalizou por um campo bem mais amplo, com a agregação da expressão Transtorno Invasivo do Desenvolvimento (TID), que são transtornos caracterizados por atrasos simultâneos na socialização e na comunicação. Os TIDs envolvem cinco transtornos; o autismo, a síndrome de Rett, uma anomalia genética, o Transtorno Desintegrativo da Infância, a Síndrome de Asperger, que são os autistas de alto rendimento, e o Transtorno Invasivo do Desenvolvimento sem outra especificação (TID-SOE). Essa profusão de siglas, tão ao gosto dos médicos contribuiu para a ampliação da recorrência dos casos, envolvendo inclusive pessoas com alto rendimento intelectual em determinadas áreas, como a Síndrome de Asperger, que apesar das dificuldades de comunicação e socialização, envolvem brilhantes matemáticos, economistas, e até um Prêmio Nobel**.
Além dessa ampliação, há uma grande quantidade de teorias para explicar esse aumento do número de casos, desde as comportamentais, como; generalização das vacinas, dietas com excesso de glúten ou lactose, alimentos industrializados, venenos organofosforados aplicados na agricultura, presenca de fungos intestinais, e outras. Até, as genéticas que envolvem a presença de distúrbios neuro-psicológicos nos pais, como o próprio autismo, esquizofrenia, ou epilepsia. Estranhamente, o autismo atinge um número muito maior de indivíduos homens, do que mulheres, para cada 4 autistas masculinos, há apenas a ocorrência de 1 no gênero feminino, o que também não possui explicação, mas que pode reforçar a hipótese genética. Há uma enorme gama de profissionais mobilizados para a compreensão do autismo; da medicina fisiológica, da psicologia, da psiquiatria, da educação, e da teoria do aprendizado. Mas, a pesquisa é complexa e extremamente dificultada pois o indivíduo está apartado da linguagem, algo fundamental ao ser humano, primeiro para sua auto compreensão, para sua expressão, e para a apropriação do mundo.
Nenhuma dessas informações reconfortam a nós, os pais, que permanecemos interagindo com esse espectro a partir de leituras sazonais e informações esparsas, que procuram dar sentido a uma atividade complexa no mundo contemporâneo, como a paternidade. Assim como no outro texto, presente aqui no blog, a vontade desse ensaio foi detonado por dois livros; um de Andrew Solomon, Longe da Árvore, pais, filhos e a busca da identidade, e outro Éric Laurent,A batalha do autismo, da clínica à política. O primeiro é um calhamaço de mais de 900 páginas, que o jornalista Andrew Solomon, que fez grande sucesso com o livro sobre a depressão, denominado; O demônio do meio dia, visita uma série de anomalias, estranhezas e excepcionalidades humanas para afirmar a diferença, em detrimento da deficiência. É um livro maravilhoso, sobre a capacidade do inusitado e do estranhamento, de nos tirar da zona de conforto, e nos empurrar para as incertezas e dúvidas, abordando as complexas expectativas dos pais, e o confronto com a diferença.
"Na concepção de Foulcault, a ideia de normalidade 'alegava assegurar o vigor físico e o asseio moral do corpo social; prometia eliminar indivíduos defeituosos e populações degeneradas e abastardas. Em nome da urgência biológica e histórica, ela justificava os racismos do Estado'. Desse modo, estimulava as pessoas fora da normalidade a perceberem-se como impotentes e inadequadas. Se, como Foucault também afirmou, 'a vida é o que é capaz de erro' e o próprio erro está 'na raiz do que faz o pensamento humano e sua história', então proibir o erro seria acabar com a evolução." SOLOMON 2013 página45
"Quando eu estava na faculdade, em meados dos anos 1980, era prática comum falar de 'diferentemente capacitado' em vez de deficiente. Faziamos piada sobre os 'diferentemente contentes' e os 'diferentemente agradáveis'. Hoje em dia, se você falar de uma criança autista, ela difere das crianças 'comuns', enquanto um anão difere das pessoas 'médias'." SOLOMON 2013 página43
NOTAS:
*Ecolalias são repetições de expressões e palavras descontextualizadas e sem sentido, que caracterizam algumas repetições dos autistas.
**O economista Vernon Smith, que ganhou o Nobel em 2002 está enquadrado dentro da Síndrome de Asperger
BIBLIOGRAFIA:
SOLOMON, Andrew - Longe da Árvore, pais, filhos e a busca da identidade - Editôra Companhia das Letras São Paulo 2013
LAURENT, Éric - A batalha do autismo, da clínica a política - Editôra Zahar Rio de Janeiro 2014
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