quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Flamengo, civilidade e o projeto do futebol brasileiro

A nova configuração do estádio do Maracanã, sem os setores
populares
Há tempos o Brasil é atacado recorrentemente por uma forte demofobia, uma certa recusa ou incompreensão das reações explosivas e irracionais da sua população frente a atitudes, projetos ou planejamentos, impostos pelo Estado. Na última quarta feira dia 13 de dezembro de 2017, durante a final da Copa Sul-americana, quando jogaram no Maracanã, o Flamengo, o time brasileiro com maior torcida no país, e o Independiente, um time argentino. Houve uma dessas explosões de vandalismo e incivilidade, que ninguém entende, e acabam por gerar novas manifestações demofóbicas, no Brasil. O confronto entre argentinos e brasileiros em estádios de futebol já é por si só, um forte motivo de alerta para as autoridades que possuem o monopólio da repressão, no Brasil e na Argentina. O histórico passional envolve episódios folclóricos, que tenderam na contemporaneidade a perder o lado anedótico e assumir um claro sinal de barbarie. No âmbito do Estado do Rio de Janeiro, onde se acumulam a bancarrota fiscal das suas contas, e a prisão de três ex-governadores e o presidente da sua Assembleia Legislativa, um deles exatamente por maracutaias no contrato de reforma do Maracanã, é no mínimo previsível a explosão, pelo acúmulo de uma série de frustrações e fracassos.  Os confrontos entre times locais já tinham sinalizado para as autoridades estaduais seu potencial explosivo, e é também sempre importante lembrar, que os funcionários desse mesmo Estado falido e com sua recente representação presa, ainda não receberam seus salários de setembro de 2017. Estive no Maracanã no primeiro jogo da final da Copa do Brasil, contra o Cruzeiro de Belo Horizonte, e já nessa ocasião houve invasão de torcedores sem ingresso, assim como vandalismos. A questão é complexa e não deve ser encarada de forma simplista e redutora, mas sem dúvida nenhuma ela é uma resposta a um planejamento de caráter elitista do nosso futebol.

A antiga configuração do Maracanã, com a "Geral"
Logo surgem expressões como; "a população não está preparada para as novas arenas esportivas", ou "o vandalismo comprova a necessidade de reeducação de grande parte da nossa população", ou ainda "estamos muito atrasados com relação a Europa no que se refere a civilidade nos eventos esportivos". Sem querer desmentir tais afirmações, mas na verdade apontando de antemão sua matriz preconceituosa, e localizada naquilo que Nelson Rodrigues já identificava como "nosso complexo de vira-latas". Aqui penso, que é fundamental inserir uma questão que me parece central nesse desenvolvimento, a ausência de participação mais ampla na definição de nossos planejamentos e projetos. Interessante também assinalar, que o futebol brasileiro pode ainda ser considerado hegemônico no mundo contemporâneo, uma vez que conquistou a maior quantidade de Copas do Mundo, até o presente momento. Apesar dessa condição, o que se percebe é uma incapacidade de pensar a si próprio com um planejamento específico e próprio, que definisse seus estádios de forma articulada com o nosso público e demanda particular. As novas arenas não contam mais com setores populares, como a "Geral" do Maracanã fomentadora em tempos passados de uma figura mítica no futebol carioca; o "Geraldino". Com ingresso mais barato, esses setores muitas vezes davam aos espetáculos no Brasil uma faceta particular, que muitas vezes era venerado por visitantes e turistas, como um espetáculo a parte. No entanto, esse segmento não foi contemplado no projeto dos´novos estádios para a Copa de 2014, penalizando os setores populares, e trazendo um planejamento e projeto de elitização do público, que me parece não se adequa a realidade e a demanda brasileira.

Interessante assinalar, que o modelo adotado é baseado em alguns países da Europa, tais como; Inglaterra, Espanha, Itália e França, onde o ingresso é caro e as arenas se tornaram mais exclusivas, deixando à população mais frágil economicamente assistir ao espetáculo pela televisão. A Alemanha, que na Europa talvez seja o único país que na média se aproxime da qualidade do futebol brasileiro, adotou um padrão diferente, que manteve os setores populares nos seus estádios. E, ao final da Copa do Mundo em seu país, retornou à configuração antiga de suas arenas, exatamente para abrigar os setores populares, que ainda tem acesso aos espetáculos de forma direta. Essa vertente exclusiva e elitista do plano e projeto brasileiro não se restringe ao futebol, mas na verdade permeia uma série de outros campos e acontecimentos de nossa história de forma clara. A Revolta da Vacina no começo do século XX, na mesma cidade do Rio de Janeiro é um desses exemplos, entre os dias 10 e 16 de novembro de 1904, ocorreram vários conflitos urbanos violentos entre populares e forças do governo (policiais e militares), que assustaram a cidade. As declarações de lado a lado, mostram nos como esse projeto pretende se instalar, sem a consulta ou a cooptação de grande parte de nossa população, gerando reações descontroladas; "Os pobres que se danem! Eles não podem impedir o progresso da cidade!". A declaração é do então prefeito Pereira Passos, que com esse tipo de pensamento pretendia impor as reformas urbanas do Rio de Janeiro no começo do século XX, sem qualquer consulta. Por outro lado, um dos capturados, famoso capoeirista, disse a um jornal na mesma ocasião: "Essas coisas são boas para o governo saber que a negada não é carneiro, não".

O que me parece importante ressaltar, é que com a modernidade aumenta de forma significativa nas sociedades a demanda por participação e cooptação dos planejamentos e projetos relevantes para o país, e assim devem ser pensadas e debatidas as novas configurações e ações, sejam no futebol, ou na saúde, ou em qualquer outro campo. Para isso cumpre um papel fundamental, as audiências públicas, os debates sobre o plano e projeto, e uma premissa básica, que parta de uma vertente enfática de busca pela inclusão da totalidade da sociedade brasileira.



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