sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

O filme, O Jovem Marx

O filme O Jovem Marx, do diretor haitiano Raoul Peck, co-escrito com o francês Pascal Bonitzer é uma das mais interessantes sínteses sobre o complexo pensamento do filósofo alemão do século XIX, que construiu uma das mais convincentes teorias sobre o nosso mundo. O filme é uma produção franco-alemã, mas foi recebido pela crítica brasileira de forma depreciada, como "hollywoodiano demais" (André Miranda - O Globo), ou, "paradoxal, muito bom e muito ruim" (Inácio Araújo - Folha de SP). Hollywoodiano, talvez seja um conceito gerador de mistificação, ou de celebração excessiva, ou ainda de uma espetacularização esvaziada de qualquer profundidade. Mas, para mim o longa é competente, se utilizando da linguagem do cinema com suas potencialidades e limitações, para construir uma das figuras mais complexas do século XIX. Paradoxal, esse sim, me parece um termo mais ajustado, que talvez espelhe de melhor forma a figura retratada, um pensador brilhante, reconhecido por seus pares no século XIX, mas incapacitado de prover sua familia com o sustento adequado. O que fica claro é, que há por parte de Raoul Peck e de Pascal Bonitzer um esforço de produzir um relato sintético, assumindo riscos tanto da mistificação, quanto da endemonização do personagem principal, Karl Marx. Talvez a melhor explicação venha de uma fala de Raoul Peck, quando lançou seu primeiro filme de maior projeção; Eu não sou seu negro, no qual explicita sua vontade de fazer cinema;

"Nunca quis fazer filmes para contar histórias, pois o cinema para mim era uma forma de fazer política." Raoul Peck

Na verdade, Raoul Peck constroe seu filme em torno de eventos da vida de Marx, não seguindo qualquer rigor histórico, mas dando ao espectador comum a noção da construção de um pensamento complexo e crítico, em evolução, no qual as discordâncias são afirmadas de uma maneira agressiva e mesmo arrogante frente ao liberalismo, ao anarquismo e até ao socialismo. E, é esse esforço de diferenciação, frente a essas diversas correntes, que vão conformando o pensar de Marx e Engels, num movimento de crítica constante. Os eventos foram claramente selecionados como fragmentos, para que o espectador tenha noção sobre conceitos complexos e profundos, a partir de um relato que cresce em direção ao Manifesto Comunista (1848). O filme é conformado por blocos de acontecimentos, que vão construindo o perfil do personagem, com a presença mais próxima, constante e influente no inicio de sua mulher Jenny von Westphallen, da nobreza de Trier e num segundo momento do parceiro de textos e reflexões, Friederich Engels, filho de um rico industrial alemão com tecelagens na Inglaterra.

Assim a primeira narrativa, ou primeiro bloco do filme, para explicar o conceito de comum, é usado um artigo de 1842, que Marx escreveu, ainda de forma isolada, no Rheinische Zeitung, um jornal de Colônia, no qual ele chegou a editor chefe, que abordava a proibição do mesmo ano, na Renânia impedindo a coleta de lenha caída naturalmente nas florestas comuns e nas terras privadas. A prática fazia parte do cotidiano entre os pobres de um país frio como a Alemanha, desde tempos imemoráveis e também se manteve após 1807 com o fim da servidão na Renânia, para o aquecimento das casas e cocção da comida. Em 1840, o governo prussiano proibe com uma lei a coleta de lenha, porque os fornos das industrias passaram a pagar pela lenha caída naturalmente, um bom preço aos proprietários de terra. Marx em seu artigo menciona e mapeia o interesse de classe por trás da lei, apontando a privatização de um acontecimento natural, que era a queda de galhos nas florestas da Renana. Aquilo, que era coleta até então passa a ser roubo com a ampliação da noção de propriedade privada. Interessante mencionar, que a repressão sobre essa prática da coleta de gravetos e lenha naturalmente caídos, chegou a se estender às florestas comuns, sem propriedade definida. A citação de Montesquier no filme aponta a corrupção do ato de interesse de classe da lei. Importante, ainda mencionar que Marx escreve o artigo sobre uma prática, que representava cinco sextos de todos os processos judiciais da Prussia.

"Marx utilizaria a própria linguagem da lei para miná-la, expondo o absurdo e a hipocrisia de um sistema que permitia que o dono da terra reinvindicava o que Marx chamava de "dádiva da natureza". Ele declarava  a lei tão pendente para o lado dos donos da terra que "só nos surpreende que o dono da floresta não tenha permissão de aquecer seu forno com os próprios ladrões de lenha."" GABRIEL 2013 página 68

O filme mostra um debate na editoria do Rheinische Zeitung, no qual alguns companheiros apontam a contundência e a radicalidade do artigo de Marx, como causadora da presença policial nas portas do jornal. Na verdade, na história real o Rheinische Zeitung foi fechado no ano de 1843, mas por conta de outro artigo que atacava o tzar da Russia, Nicolau I, que solicitou pessoalmente a intervenção do governo da Prussia na publicação. O jornal, a partir da chefia editorial de Marx pulou de 400 para 3.500 assinaturas, com uma posição meticulosa na apresentação dos fatos, profundo em suas análises mas sempre abordando o cotidiano mais banal, e zombeteiro no tom. Mas o que conta para a linguagem cinematográfica é o didatismo da mensagem e sua concisão, onde fica clara a convergência de interesses entre burguesia e Estado, para impulsionar o sistema do capital.

Assim o filme se desenvolve numa sucessão de eventos didáticos, quase como blocos independentes, que pretendem indicar a construção da doutrina marxista. A deportação para Paris e apresentação a Engels na casa do editor Ruge, que foi co-editor dos Anais Franco-Alemães com Marx, e que tinha pouca simpatia pelas posições socialistas. O ambiente boêmio de Paris e uma certa atitude Dandi e bon vivant de Engels. O amor de Jenny e seu desprendimento com relação a seu status de nobre em Trier, e sua depedência a criada governanta Lenchen. A arrogância de Marx frente a companheiros de luta, como na editoria do jornal da Renânia, ou com Phroudhon, Bakunin, Wietlig e outros. A interpretação ou a transformação do mundo pelos filósofos no diálogo Marx e Engels. A ética burguesa e operária com relação ao casamento, a geração de filhos e a família no diálogo de Jenny e Mary Burns (companheira de Engels). Esses e outros vão construindo o panorama, que é coroado pelo Manifesto Comunista, escrito com a colaboração de Engels, e a presença de Jenny e Mary Burns, que pontuam a edificação da teoria marxista, expressão com a qual Marx não concordava. Ao final o filme explode na música de Bob Dylan Like a Rolling Stones, com cenas do século XX, Fidel e Guevara, as manifestações de maio de 1968 em Paris, Allende, e até Reagan e Thatcher, como que consequências desse manifesto dos dois jovens no distante século XIX.

Há no filme uma fragmentação que nos permite a construção quase particular, sejamos leigos ou experts, de uma imagem do esforço de Marx e Engels, no distante século XIX, para compreender um mundo em transformação. Ao final, há um diálogo entre Marx e Engels, no qual o segundo cobra a entrega do Manifesto Comunista, pois já deveriam ter entregue, fazendo eco a fama de postergação na entrega dos trabalhos contratados, que acompanhou Marx até o fim da vida. Antes de uma irônica previsão do futuro dos dois por parte de Engels, Marx se declara cansado de escrever folhetos, manifestos, e panfletos, se mostrando interessado em escrever livros, "uma tarefa que demanda tempo". Sem dúvida, a menção se refere ao O Capital, uma obra muito mais complexa e desafiadora para ser sintetizada num filme. Mas será que Raoul Peck e Pascal Bonitzer, seguindo uma estratégia bem hollywoodiana pretendem lançar um novo filme? Aguardamos, então o velho Marx.

BIBLIOGRAFIA:

GABRIEL, Mary - Amor e capital, a saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução - Editora Zahar Rio de Janeiro 2013

Nenhum comentário:

Postar um comentário