O edifício Aquarius do filme, tres andares de altura |
No filme, essa forma de habitar arcaica é constantemente desdenhada pela familia de Clara, a personagem de Sonia Braga, como insegura, inadequada e ultrapassada pelos modernos empreendimentos das torres em altura, que povoaram a praia de Boa Viagem e o Brasil de maneira tão agressiva e especulativa. Invariavelmente, nossas frentes marítimas ou nossos bairros mais valorizados passaram a receber essas imensas torres isoladas, que acabaram por representar o padrão do bem viver de nossas elites endinheiradas. Além de seu desenvolvimento em altura excessiva, a estrutura funcional alardeada é a do condomínio clube isolado da urbanidade, que passa a representar o controle da exclusividade para o bem viver nacional. Os impactos sobre a vizinhança e o espaço público adjacente são enormes, determinando uma sensação de insegurança na rua, que também foi potencializado pelo rodoviarismo dominante.
Edifício no bairro de Botafogo na rua 19 Fevereiro |
Mas o filme vai além na sua abordagem sobre a situação urbana brasileira, trazendo reflexões importantes sobre a forma como nossas cidades vem se reproduzindo, e gerando um espaço segregado em extratos sociais, com ruas dominadas pelo automóvel e o pneu, condenadas a baixos indices de interação social. Em vários momentos as cenas nos mostram como a geração de Clara, a personagem de Sonia Braga, veneroou e ainda venera o automóvel, seu glamour, sua capacidade de nos transportar fazendo-nos ouvir boa música. Já nas cenas iniciais, na reconstrução dos anos sessenta somos confrontados como essas máquinas que violavam até o espaço noturno de nossas praias, num uso arrogante e exclusivista. Mais contemporaneamente a reunião da familia de Clara, mostra-nos como cada um de seus filhos requisita novos carros cada vez mais potentes e com equipamentos sonoros de última geração. Num determinado momento a sobrinha de Clara, procurando nos albuns de fotos antigas da família, pergunta a seu pai, o irmão da protagonista, porque nos anos passados as pessoas tiravam fotos juntas com seus carros? A resposta é que "eles (os carros) naqueles tempos faziam parte da constituição da personalidade dos seus proprietários", dando-lhes características próprias.
Por último, a questão da segregação urbana também está retratada no filme de forma notável. Num passeio pela praia da Boa Viagem, com a visitante carioca, que aliás mora no Largo dos Leões, na Rua Mario Pederneiras, uma rua de escala notável na sua relação entre espaços públicos e privados no Rio de Janeiro, Sonia Braga explica a subdivisão entre o bairro de classe média alta e a favela de Brasília Teimosa. A fronteira, o limite, a cisão entre a classe média próspera e a auto construção da favela, que fornece a mão de obra de porteiros, empregadas domésticas, babás, etc... é a vala negra de esgoto, que corta a areia da praia. A precariedade de nossas infraestruturas mais básicas é o sinal para a mudança do território. Logo após na sequência, mais uma vez aparece a tipologia habitacional e sua interação com a urbanidade, agora no espaço da precariedade, numa festa, um churrasco dada por uma ex empregada de Clara que mora na favela de Brasília Teimosa; a laje, o terraço, o pavimento mais afastado da rua e da viela, também reconstroe essa distância do burburinho inesperado da vida urbana.
Enfim, o filme Edifício Aquarius é uma reflexão importante sobre o processo de construção e reprodução da cidade brasileira, um processo que tende a radicalizar a separação entre espaços privados e públicos, determinados por uma série de costumes e culturas, que vão desde a celebração da intimidade, a negação da surpresa da rua, o culto exacerbado do automóvel particular, a segregação social, e a produção da intimidade entre precariedade ou auto construção e o distanciamento ou alheamento da urbanidade. Ao final o principal protagonista do filme é esse edifício - Aquarius -, que não se alienava da urbanidade.
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