segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Reflexões a partir de um concurso de projetos em Brasília

Primeiro colocado, arquiteta Camila Celin Vila Velha ES
Entre os dias 05 e 07 de dezembro de 2016 fui jurado de um Concurso de Projetos em Brasília, que pretendia selecionar uma proposta pra um terreno na cidade satélite de Santa Maria para uma edificação com unidades habitacionais de interesse social e com comércio. O concurso era organizado pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal (CODHAB/DF), que está vinculada a Secretaria de Gestão do Território e Habitação (SEGETH) de Brasília.  A reunião e os debates no processo de julgamento tiveram um nível excepcional, e acabaram suscitando uma reflexão importante sobre os conceitos de adequação e escolha entre os arquitetos, tanto do universo dos participantes, como também entre nós, os jurados. A composição da banca eram os arquitetos Manoel Balbino de Goiânia, Paulo Victor Borges Ribeiro, Rubens do Amaral, Marcelo Ulisses Pimenta de Brasília e eu Pedro da Luz Moreira do Rio de Janeiro. A coordenação do concurso era responsabilidade das arquitetas; Graziele Ferreira e Carla de Rezende Castanheira.

A primeira questão a ser destacada é o contexto da cidade de Santa Maria, um município que ainda não está com sua ocupação humana consolidada, tendo na oportunidade de um concurso de projetos, a possibilidade de refletir sobre o seu vir-a-ser. A cidade de Santa Maria apresenta o perfil típico de um município dormitório, que ainda orbita o Plano Piloto de Brasília em muitos aspectos, como; empregos, comércio, serviços, etc... A cidade num olhar rápido apresenta ainda uma baixa densidade, com um comércio ainda provinciano de primeira necessidade, com a maioria de suas edificações desenvolvidas em dois pavimentos. Há a ocorrência esporádica de desenvolvimentos em altura, entre sete e oito pavimentos, mas ainda de forma espaçada, e sem que isso ocorra e reforce seu antigo centro de comércio.

Segundo colocado arquiteto Ricardo Felipe Gonçalves São
Paulo SP
O adensamento habitacional é portanto bem vindo, mas em meu entendimento deveria ser buscado numa escala mais limitada, buscando não depender de soluções mecânicas como elevadores, que penalizam a sustentabilidade dos condomínios, com preços monopolizados. Nesse sentido constata-se como nossa legislação urbanística de maneira geral ainda celebra e induz uma ocupação precoce em altura, mesmo em Santa Maria dada pelo cone de desenvolvimento, expresso no edital do concurso. A crítica a essa postura vem se avolumando na sociedade brasileira, que começa a perceber como essa ruptura da escala de proximidade entre espaços públicos e privados dado pelo desenvolvimento excessivo em altura das edificações, prejudica a vida urbana. O recente filme Aquarius, rodado em Recife e comentado aqui nesse blog e o segundo premiado do concurso de Santa Maria, do arquiteto Ricardo Felipe Gonçalves de São paulo SP, trazem exatamente essa crítica a reclusão excessiva da torre frente ao solo da cidade. Com um desenvolvimento em térreo e mais três pavimentos, o projeto do arquiteto paulista demonstra como a proximidade entre os últimos pavimentos e o solo da cidade pode ser um fator de vitalidade urbana e de mútuo controle.

Terceiro colocado arquiteto Alexandre Luiz Gonçalvez
Belo Horizonte MG, mostrando os dois bolsões de
estacionamento adjacentes ao terreno
Outro aspecto da legislação urbanística de acento modernista e rodoviarista, também presente em Santa Maria, é a exigência de uma vaga de carro por unidade habitacional, e de uma vaga para cada loja comercial disponibilizada dentro do terreno. Tal fato, é ainda mais enfatizado, quando percebemos que no desenho de parcelamento da gleba, nos terrenos temas do concurso estão previstas dois bolsões de estacionamento adjacentes as futuras edificações, portanto com ampla oferta de vagas de carro. E, também pelo alto custo do metro quadrado da realização de pavimentos subterrâneos, para acomodar o grande número de vagas de estacionamento solicitado. Essa postura acaba determinando um caráter nefasto para as cidades brasileiras, uma celebração exagerada do automóvel particular, em detrimento de sistemas de transporte público. Esse rodoviarismo exacerbado acaba capturando grande parte dos recursos públicos investidos nas cidades, que a cada dia se veem mais dominadas por uma demanda que supera de forma rápida os investimentos realizados, gerando imensos congestionamentos.

Uma das Menções Honrosas, arquiteto Moacir Zancopé
Junior Curitiba PR
A segunda questão a ser destacada, e que foi muito debatida pelos membros do juri é a implantação urbana da nova edificação, que deve impulsionar uma urbanidade de maior utilização do espaço público da cidade, propondo a poli-funcionalidade que já estava expressa no programa na junção dos usos habitacionais e comerciais. A avaliação do pavimento térreo e de sua relação com o contínuo da cidade foi fundamental para classificar os projetos, a articulação bem estruturada entre o contínuo de lojas, núcleos de circulação vertical (portarias de acesso), e entrada de veículos foram avaliados a partir da constituição de uma legibilidade clara. Isto é, esses elementos deveriam estar dispostos de forma a permitir sua fácil identificação, não apenas para os futuros habitantes do organismo arquitetônico, mas também para os eventuais estrangeiros, ou primeiros visitantes. Enfim, a articulação entre espaços públicos, semi-públicos (condominiais) e privados deveriam possibilitar uma leitura fácil e universal.

Outra das Menções Honrosas Diogo Erdmann Valls
Porto Alegre RS
O terceiro aspecto intensamente debatido pelos membros do juri foi a interrelação entre expressão gráfica e adoção de métodos construtivos, que racionalizassem a edificação, percebendo-se no âmbito dos concorrentes um afastamento do domínio efetivo de questões relativas ao canteiro de obra, e uma super valoração da expressão gráfica dos projetos. Essa na verdade não é efetivamente uma questão restrita ao universo desse concurso, mas que na verdade envolve o próprio desenvolvimento da cultura arquitetônica em nosso país, e de certa forma em todo o mundo, interessando as escolas, as entidades e ao recém criado Conselho de Arquitetura e Urbanismo. Do ponto de vista do ensino de arquitetura, é claro em nossa contemporaneidade a super valoração dada as novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), que se desenvolveram enormemente, possibilitando uma simulação muito mais adequada das futuras intervenções.  As apresentações, perspectivas e simulações das futuras edificações evoluiram quase ao ponto de confundir a fotografia do objeto realizado, com sua simulação. No entanto, é preciso reconhecer, que a representação em arquitetura e urbanismo cumpre um papel analógico de pensar o construído com antecedência, mostrando como a obra se realiza, em sua complexa operatividade, fator que me parece em declínio frente a sedução das imagens, que muitas vezes não resolvem os problemas construtivos efetivos.

Exatamente nesse aspecto, percebe-se uma certa fragilidade entre todos os projetos apresentados ao concurso, um certo afastamento do nosso ofício das implicações e condicionantes da escolha dos sistemas construtivos. No tema da habitação de interesse social, nos manuais de orçamentação mais recentes celebra-se a adoção da solução de alvenaria armada como uma das opções mais baratas para esse tipo de programa. No entanto, a adoção conjunta dessa solução de alvenaria armada com o pilotis de estrutura de concreto independente envolve um complexo problema estático, da transmissão de cargas homogeneamente distribuídas das paredes portantes, para uma estrutura pontual, que trabalha com deformações variadas de suas peças. Um problema para o qual, a solução da transição pode representar custos significativos, e que a maioria dos projetos apresentados não parecia ter qualquer grau de consciência.

Enfim, a participação no Concurso Nacional de Projetos de Arquitetura e Complementares para edifícios de uso misto em Santa Maria foi uma oportunidade para uma série de reflexões sobre a adequação, a escolha, a inserção urbana, o vir-a-ser das cidades brasileiras, a proximidade entre as áreas públicas e privadas, a representação de arquitetura a partir das TICs, e as metodologias construtivas. Reflexões que demonstram o caráter cultural da arquitetura e sua importância na definição do projeto de país que queremos construir, onde afinal haja maior inclusão dos extratos fragilizados de nossa sociedade. Abaixo o link da CODHAB/DF, onde podem ser acessados todos o projetos premiados, bem como a ata do júri.

http://www.codhab.df.gov.br/concursos/eum-santa-maria/resultado

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